Jovem Médica
Redação
Publicado em 2 de janeiro de 2016 às 21:02 | Atualizado há 9 anos– Ôpa, êba, êba!
– Fala, mestre.
– Bolsa rompeu, primeiro bebê, está sentado.
– Cesárea.
É uma sexta-feira chuvosa. Chego quinze minutos depois e aguardo a paciente. Recebo, examino e imediatamente encaminho-a para o centro cirúrgico, o pezinho esquerdo está querendo sair. Vou adiantando os procedimentos, o anestesista pergunta-me se pode bloquear, a mesa do auxiliar está montada, também. Vou escovar e ela chega.
Vou passando o caso, o nome da paciente, do bebê e até do papai. Gosto disso. Medicina é pessoal. Parto ainda mais. Nem noto que a sombra dos seus olhos está mais bonita, um tom degradé de roxo com púrpura da metade de dentro para fora. Quando ela se aproxima, os cílios estão longos e tão delineados quanto a sobrancelha. Enquanto ela se apresenta para a paciente, sempre suave, carinhosa e assertiva, eu sou paramentado. Luva sete e meio.
Com a roupa de centro cirúrgico, todos somos iguais. Humanos vestidos no saco monocromático dos capotes. Ela não, tem um quê de elegância. Seu cheiro é sentido quando se aproxima. Francês. Sem brinco, sem adereços, sempre atenta e correta no que tange aos riscos de contaminação. Começo a incisão à Pfannenstiel, ela comenta sobre a simetria do corte.
Muito cuidadosa, auxilia-me célere e segura. Eu, que muito falo o tempo todo, nos momentos que antecedem a extração fetal, calo-me. Assim como nos pontos principais de todas as cirurgias. É sintomático, o bebê vai nascer. É um pélvico completo, está difícil. Faço a primeira manobra, de Rojas, e o ombro desprende com esforço. Depois passo para a manobra de Bracht e a cabeça permanece dentro do útero. Ela rapidamente amplia a incisão e eu complemento a extração com a manobra de Mauriceau, em que meu dedo indicador vai fundo fletindo a cabeça da menininha. Nasce.
Não chora. Ela entrega para a pediatra, e essa começa as manobras de reanimação. Enquanto isso o sangramento aumenta. A pediatra pede ajuda e o anestesista tem que equilibrar a pressão. Sem titubear a jovem médica vai. Fico sozinho no campo. Pinço o vaso de primeira. Hemorragia cessa. O bebê chora. Alívio e alegria.
A doutorinha vai escovar novamente, e retorna. Pergunto-lhe aonde ia. Estava num jantar com o namorado. Eu que nunca penso em compromisso algum e coloco os pacientes sempre em primeiro lugar, paro um pouco. Vou explicar as manobras, como todo bom professor, digo algo em francês. Ela responde em italiano. A paciente está bem, a bebezinha idem e o pai, pasmo. Encostado na parede, desfaleceu e ninguém viu.
Nenhuma sequela, tudo lindo; como ela diz. Não sem antes caprichar na alça do nó do seu lado. Digo que vou explicar o ocorrido à família e também cumprimentá-los. Ela pede uma carona e peço-lhe que me encontre lá embaixo, na recepção. Não deixo de elogiar a conduta da doutora à família, ela praticamente salvou a criança de alguma sequela ou algo pior.
Quando após me vestir com o onipresente coturno, a calça que vi primeiro e uma bata indiana que em casa uso, eu a vejo. A jovem médica está mais bela do que nunca em seu vestido amarelo, drapeado, com finas alças. O brinco delicado todo rico em detalhes. Não faço nenhum comentário.
– O senhor acredita que o rapaz não me esperou para o jantar?
Fico pensando nestes dois breves anos de convívio. Quantas vezes já a chamei nas mais inusitadas horas e ela veio sorrindo. Nem todas as pessoas tem esse compromisso. Nova geração de médicas dispostas e disponíveis. Será que esse moço não vê isso? O quão grande ela é e o quanto denota sua responsabilidade e deveres? Um dia vou parar, eu sei. E só quero que minhas pacientes – e até eu – sejam atendidas por uma mulher tão valorosa e bonita.
– Doctor Jones, como ficou o nome da “beiba”?
– Lidyane, doutora.
JB Alencastro é médico e escritor)
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