Opinião

Burcas invisíveis

Diário da Manhã

Publicado em 28 de novembro de 2015 às 23:11 | Atualizado há 9 anos

A semana que passou foi marcada, entre outros fatos marcantes, pela passagem do Dia Internacional de Eliminação da Violência contra as Mulheres, com o lançamento da Campanha UNA-SE pelo fim da violência contra as mulheres, pelo Secretário Geral das Nações Unidas.

No Senado, tivemos um evento chamado Congresso Nacional pelo fim da violência contra a mulher. Na Fundação João Mangabeira, órgão de estudos do Partido Socialista Brasileiro, PSB, tivemos um debate, transmitido pela TV João Mangabeira para todo o Brasil, sobre o assunto.

No contexto do processo civilizatório brasileiro o tema é dos mais sérios. Os dados que nos chegam sobre a violência contra a mulher são tão contundentes que chegam a ser chocantes.

E as causas desse quadro de violência são de variadas ordens econômicas, sociais, históricas, religiosas, políticas e culturais. Nessa complexidade destaca-se o fator cultural que, no Brasil, tem alimentado, através dos anos, uma postura da sociedade sobre o machismo e, consequentemente, sobre o domínio masculino na relação com a mulher.

De fato, na sociedade brasileira, a mulher é vista como uma figura para ser direcionada pelo homem. Ela é quase posse do homem, daí a ideia de que o companheiro pode dispor dela, e do seu corpo, para a prática da violência, seja moral, psicológica e, principalmente, física.

No debate da Fundação João Mangabeira foi ouvida a expressão burcas invisíveis, que me inspirou no título deste artigo.

Qualquer instrumento de pesquisa na internet informa que a “burca é uma veste feminina que cobre o corpo, até o rosto e os olhos, porem nos olhos há uma rede para se poder enxergar”. Com mais destaque sabemos que a burca é usada pelas mulheres do Afeganistão e do Paquistão e por outras culturas muçulmanas.

Nós, do mundo ocidental, vemos na veste um instrumento de opressão das mulheres. No Brasil, especialmente, onde as nossas mulheres estão acostumadas a desfilar os seus corpos dentro de minúsculos biquínis pelas nossas praias e a vestir, livremente, os mais diferentes modelos de roupas, a burca soa como opressão.

Porquê, então, uso a expressão burcas invisíveis. Para dizer que a mulher brasileira não é oprimida pelo uso visível de uma burca, mas sofre, subliminarmente, inúmeros tipos de opressão, que, a meu ver, funcionam como “burcas invisíveis”.

As burcas invisíveis da mulher brasileira estão tipificadas nos vários tipos de violência sofridas por ela: física, psicológica, moral, sexual, patrimonial, cárcere privado e tráfico de pessoas.

Antes de citar os dados do Mapa da Violência, lançado nesta semana, quero dar, ligeiramente, um panorama mundial da violência sofrida pela mulher. Não é, portanto, um fenômeno apenas brasileiro.

As pesquisas indicam que metade das mulheres latino-americanas é vítima de algum tipo de violência, em algum momento de suas vidas.

A Organização Mundial de Saúde informa que de 85 a 115 milhões de meninas e mulheres são submetidas a alguma forma de mutilação genital por ano, em várias partes do mundo.

O Instituto do Terceiro Mundo informa que, há dez anos atrás, pelo menos 50% das mulheres árabes casadas eram espancadas por seus maridos ao menos uma vez ao ano, e 25% a cada seis meses. E essa situação não mudou substancialmente na atualidade.

Diagnóstico do Banco Mundial aponta que a prática de estupro e de violência doméstica são causas preponderantes da incapacitação e da morte de mulheres na idade produtiva, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento.

No Brasil, especificamente, como veremos no Mapa da Violência, lançado nesta semana, a cada quatro minutos uma mulher é agredida dentro do seu próprio lar, por pessoas com quem mantém relações afetivas.

Em 2013 foram mortas no Brasil 4.762 mulheres, em comparação a um total de 1.353 em 1980. Um aumento de 252% – nosso país tem uma taxa de 4,8 homicídios por cada 100 mil mulheres. É a quinta maior taxa do mundo, num universo de 83 países.

Isto significa que a cada hora e meia foi registrada a morte de uma mulher vítima de violência. Ou, a cada mês, 396 homicídios.

Desses crimes, 55,3% foram cometidos em ambiente doméstico. E que 33,2% dos homicidas eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas.

O fundamento para as pesquisas do Mapa da Violência foi a Lei nº 13.104/2015, a Lei do Feminicídio. Por feminicídio “foram entendidas as agressões cometidas contra uma pessoa do sexo feminino no âmbito familiar da vítima que, de forma intencional, causam lesões ou agravos à saúde que levam à sua morte”

Poderíamos continuar citando muitos outros dados, como o que indica que as mulheres negras são as maiores vítimas desse feminicídio no Brasil.

Portanto, ao olharmos as burcas muçulmanas e nos horrorizarmos, lembremos que ao nosso lado alguma mulher pode estar sendo vítima das burcas invisíveis brasileiras.

 

(Lúcia Vânia, senadora (PSB), ouvidora geral do Senado e jornalista)

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