No confessionário a ONU, o papa e Nietzsche
Diário da Manhã
Publicado em 29 de outubro de 2015 às 22:28 | Atualizado há 1 semana
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
(Nelson Mandela)
Inocente e livre, a andorinha pousou e se serviu do vinho no ninho da águia.
A História vai contar se Obama é testemunha do papa, o papa é testemunha do Obama ou se os dois, nesta jogada sociopolítica e de cunho econômico mundializado, são testemunhas de Jeová.
O representante maior da instituição milenar, a Igreja Católica Cristã, argentino Jorge Mario Bergoglio, esteve em Nova York, a sala-de-estar americana, montada em vidraças vulneráveis, voltadas para e contra o resto do mundo. Se o cristianismo é a religião da compaixão, de acordo com o livro O Anticristo: “A compaixão se opõe às paixões tônicas que elevam a intensidade do sentimento vital: ela age de maneira depressiva.” (NIETZSCHE, Grandes Obras, p. 7)
Na visita política à sede nas Nações Unidas a manobra e logística de guerra da Igreja de Cristo em arrebanhar as ovelhas cristãs perdidas para o poder evangélico instalado no terreiro da Águia. Sobre esta disputa por seguidores e fieis, Friedrich W. Nietzsche define o protestantismo enquanto “a hemiplegia do cristianismo – e da razão…”. No púlpito da sede mundial da ONU, Francisco levantou a pauta de discussão ligada à manipulação, segundo ele ‘interesseira’, da Carta das Nações Unidas no sentido de dar algum (todo) suporte legal a guerras planejadas e de ‘intenções espúrias’. E continuou na sua discursiva crítica: “Diante do silêncio, vergonhoso e cúmplice, é nosso dever enfrentar o problema e acabar com o tráfico de armas”, vaticinou o papa, o homem comum (com profissão de padre) que se recusa a vestir o sacerdote endeusado e trajado em ouro da Igreja Antiga atolada em incontáveis e inconfessáveis pecados, que sempre andou na contramão da História.
Tacada ideológica ou sabe-se lá reconhecimento e confissão, históricos, em nome da instituição milenar pontuou: “Nenhuma religião é imune a diversas formas de aberração individual ou de extremismo ideológico.” Sobre o ideal da austeridade do gestor da instituição católica Ocidental, Nietzsche, em sua obra Genealogia da Moral nos traz: “Que significam os ideais ascéticos? Entre os artistas, nada ou muitas coisas diferentes; entre os filósofos e os sábios, alguma coisa como faro e instinto para as condições preliminares e mais favoráveis a uma elevada espiritualidade.” (Grandes Obras, vol. 20, p. 92)
Pausando o discurso político enquanto fala de liderança religiosa, como quem dança as notas de um tango, em crise e argentino, mesclado ao bolero, bolivariano-cubano – alardeou a centenas de chefes de Estado presentes o fenômeno social mundializado da efemeridade urbana e suas terríficas mazelas quanto aos Direitos Humanos. Desmascarando a sociedade contemporânea fraticida, trouxe o tom da música composta em pauta socialista com as notas mais altas do estilo democrático ao criticar a dança desigual, e de passos trocados, da coletividade mundializada: “Tratemos os demais com a mesma paixão e compaixão com que queremos ser tratados.”
Nestes termos pediu ainda o fim da pena de morte imposta como castigo ao povo americano, discurso moralista das instituições do Estado, neste caso, representadas pelo verso e reverso da moeda capitalista de um mesmo Estado. No prefácio de A Genealogia da Moral, Mioranza destaca que: “Para conseguir inculcar no homem todos esses princípios fabricados a partir de uma vontade de poder de alguns, surge a moral que distingue não-valores de valores ou a inexistência de valores diante daquilo que deve ser realmente considerado e tido como valor.” E sobre a relevância político-institucional a respeito de todos esses valores (elementos de vida e também de busca por um sentido da vida) Nietzsche releva: “São aferidos valores amorais ou uma moralidade. Mas por quem? Por quem tem verdadeiramente autoridade para isso? Ou por quem quer simplesmente dominar os outros, seja por meio de princípios físicos, psicológicos, religiosos?” (Grandes Obras, p. 10)
O papa pontuou em seu discurso – político e de comprometimento com o futuro – o apelo ao fortalecimento e garantias dos direitos do homem e do planeta. A ética dos desfavorecidos – que estrutura a Encíclica Laudato si – urge soluções filosóficas para um mundo pós-moderno, cujos valores éticos, banalizados, estruturam a sociedade extremamente consumista, imediatista e viralizada. Bergoglio insiste em que: “O desafio ambiental que vivemos e suas raízes, humanas, nos interessam e afetam a todos.” Segundo o dirigente católico a humanidade urge por soluções referentes ao abuso e a destruição do ambiente onde seres humanos, acompanhados por um processo de exclusão incontrolável, assistem ao “prolongamento do drama e toda essa situação de exclusão e desigualdade, com consequências claras ao povo cristão e tantos outros povos”. A humanidade trazida à tona da discussão, pelo papa, e a humanidade que, segundo Nietzsche, em O Anticristo: “Não representa em absoluto uma direção ao melhor, ao mais forte, ao mais elevado no sentido como se acredita hoje. O progresso é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa. O europeu de hoje, em valor, fica muito abaixo do europeu da Renascença.” (Grandes Obras, vol. 52, p. 21)
Ao escancarar “a norma confundida com um simples instrumento para ser utilizado quando for favorável e para ser ignorado quando não for”, o mais novo São Francisco da Igreja Católica engendrada na Era pós-moderna colocou em xeque os 70 anos de existência das Nações Unidas os quais demonstram, na atualidade, a ineficácia das normas internacionais além do seu não cumprimento, ou seja, “uma fraude” de consequências humanitárias imprevisíveis quando “da ética e um direito baseados na ameaça de destruição mútua – e, possivelmente, de toda a humanidade”. Sobre o idealista, assim como o padre, que tem em suas mãos (e não só em suas mãos!), a obra O Anticristo denuncia: “O puro espírito é a pura mentira… Enquanto o padre for visto ainda como uma espécie superior de homem, ele que é por profissão negador da vida, não haverá resposta à pergunta: O que é a verdade? A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado consciente do nada e da negação é visto como o representante da verdade.” (NIETZSCHE, idem, p. 27).
Com um só tiro (articulado e certeiro) o papa acertou e feriu de morte o alvo das certezas efêmeras de um capitalismo contemporâneo, globalizado e politicamente incorreto, gerenciado por formas ultrapassadas de governos velhos. Do alto de sua autoridade bíblica e representante de Estado, Francisco disparou: “Se é verdade que a política deve servir à pessoa humana, não pode ser escrava da economia e das finanças.” Numa análise histórico-política e resenha das conversas sobre as notícias frescas de um mundo veloz que trilha o descompasso lento e gradual da (des)organização (des)igual e violenta, moribunda, bélica e comercial a banda goiana e punk, Lobinho e os 3 Porcão, na letra da música Mutilados, alardeia: “Os velhos fazem guerras para os jovens morrer.”
São as batalhas às quais não se chamam guerra e de questionável cobertura legal. Pregando a paz e o acordo mundial pelo planeta e os seres vivos, Francisco avisou: “É preciso lutar por um mundo sem dispositivos nucleares, aplicando plenamente o Tratado de não Proliferação de Armas, na letra e no espírito, rumo a uma proibição total desses instrumentos.” Amarrando sua fala cristã ao discurso da ciência política sobre a estratégia e logística de guerra atuais, trouxe à tona o fato de que a Carta das Nações Unidas “deve ser respeitada e aplicada com transparência e sinceridade, sem segundas intenções, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para disfarçar intenções”.
A Caixa de Pandora, de forças maléficas incontroláveis, prejudica gravemente as populações indefesas e o meio ambiente enquanto espaço comum e mundializado de diversidades culturais e biológicas. Numa retomada de valores tradicionais, os quais nascem a partir da instituição patriarcal e patrimonial da Igreja Cristã, o papa referiu-se ainda ao mundo de consumo intensificado por valores banais, descartáveis e globalizados – em plena metamorfose histórico-estrutural – ao enfatizar a importância do núcleo familiar: “Não posso esconder minha preocupação com a família, que está ameaçada, talvez como nunca, desde o interior e desde o exterior.”
Enrustido na força do cifrão atrelado ao lucro obtido a qualquer preço – que explora gente e capital –, o ser social pós-modernizado, submete-se às atrocidades dos ‘gerentes do mundo’. Cidadãos imaculados que calçam couro italiano costurado por mãos infantis ‘modernamente escravizadas e exploradas’ pelo sistema econômicopolítico capitalista, mundializado, endossado na caneta de ouro, diplomática e burocrática, a qual detém e demanda o poder dos canhões da guerra a laser, covarde, ianque e eletrônica, ferramenta bélica atualizada pelos ditames da Organização das Nações Unidas a qual fomenta a falácia da igualdade e respeito às diversidades, segundo o papa “unidas pelo medo e desconfiança generalizada”.
Ao manifestar-se enquanto militante político alimentado no espírito anti-capitalista e ‘revolucionário cristão’, e estruturado no discurso da Teologia da Libertação, Francisco, atual líder reformador do Vaticano, traz no discurso e em seu bojo a denúncia já escancarada, há séculos, pelo filósofo alemão Karl Marx, de que: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” O sistema capitalista caminha parâmetros e rumos da logística mundial que permeiam acordos internacionais e beneficiam a hegemonia dos grandes, fomentam as mazelas econômicas internacionais ao mesmo tempo em que se tornam incapazes de enxergar, reconhecer e respirar a força e direitos inerentes aos pequenos.
Amarrado aos grilhões da censura aos direitos pertinentes ao livre discurso, Leonardo Boff de estar sentado à frente da TV e degustando um saco de pipoca – sem religião nem sal – assistindo a tudo e a todos, talvez na certeza do empoderamento ao reverso, ou seja, aquele conquistado pelo tempo que passa e reconhece e (in)valida todas as histórias, incluindo a sua própria história. E ele afirma: “Muitos se têm perguntado que pelo fato de o atual papa Francisco provir da América Latina, seja um adepto da Teologia da Libertação. Esta questão é irrelevante. O importante não é ser da Teologia da Libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade.” (https://leonardoboff.wordpress.com/2013/04/26/papa-francisco-e-a-teologia-da-libertacao/)
Segundo o papa o efeito social deste dominó brutal, detona o “desejo egoísta e ilimitado de poder e bem-estar material, leva ao abuso dos recursos materiais disponíveis e à exclusão dos fracos e com menos habilidades, quer por terem capacidades diferentes (deficientes) ou porque estão privados dos conhecimentos e instrumentos técnicos adequados, ou possuem capacidade insuficiente de decisão política”. A exclusão econômica e social é uma total negação da fraternidade humana e uma grave violação dos Direitos Humanos e do meio ambiente. Os mais pobres são os que sofrem essas violações por três razões graves: são descartados pela sociedade, são ao mesmo tempo obrigados a viver do descarte e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente. Esses fenômenos formam, hoje, a tão difundida e inconscientemente consolidada cultura do descarte.
Diante do discurso católico-cristão de base político-moderna falado por Francisco, o qual critica e pontua importantes fatos históricos e contemporâneos a respeito da realidade concreta à qual se submete toda a sociedade moderna e consumista, Nietzsche traz a seguinte visão filosófica: “É preciso dizer quem sentimos como nossa antítese: – os teólogos e tudo o que tem sangue de teólogo nas veias – toda a nossa filosofia… É necessário ter visto toda essa funesta fatalidade de perto, melhor ainda, é preciso tê-la experimentado em si, é preciso ter praticamente sucumbido a ela para compreender que isso não é qualquer brincadeira.” (O Anticristo, p. 26)
Ponderações e crenças, articulações dos grandes poderes aliadas a inexplicáveis milagres, pequenas chances de sobrevivência na luta diária do proletariado. Assim caminha a (des)humanidade, prega a instituição, articulam os gerentes das diferenciadas formas de guerra e perpetuam-se as mazelas sociais que, antes de serem unicamente humanas, são incontestavelmente históricas.
Fato relevante a ausência dos nativos expulsos de suas terras – roubadas do México pelos ianques –, na sede da ONU. A história e sua realidade, hoje, nos contam dos ‘red necks’ e brancos – ‘americanos civilizados’ – os quais tomaram sua propriedade livre para cobri-la em asfalto e mataram seus animais, o meio de vida de que dispunham promovendo o escambo de sua cultura por carros. Hoje, a comunidade urbanizada ‘dá de comer’ aos antigos donos da terra – a migalhas e em ‘quarters’ – sacados do alforge capitalista que derrama hipocrisias de uma civilização abençoada pelo papa em visita o Congresso da Águia.
A tribo, reduzida a tenda, sem poder político, faz parte do jogo da mídia que não desmascara a instituição político-religiosa no sentido de quebrar os muros erguidos a cimento e/ou aço – que fomentam a migração clandestina de uma legião refugiada e faminta espalhada pelo planeta. Há que mudar este discurso e falácia e devolver a terra aos homens que se cobrem com penas nos moldes da ética. Lá e aqui, no terreiro do Brasil, onde se mata e corrompe, especulando e roubando nossos índios – e o que é pior, tudo registrado em selfies, na mesma medida e hipocrisia de uma justiça cega dos olhos e da alma incapaz de conter o genocídio indígena em seu próprio quintal.
Um papa moderno e contundente com sede de mudanças sociais o qual assegura – no discurso forte e impregnado de socialismo – contesta a gestão da instituição do Estado globalizado e desigual quantos às suas contradições e vulnerabilidade social na forma direta do diálogo pelo viés da crítica, realidade concreta e que sobremaneira remete à contradição, bem ao estilo de Nietzsche.
E o pulso… ainda pulsa!
(Antônio Lopes, assistente social; mestrando em Serviço Social/PUC-GO; pós-graduando em Filosofia/Nova Acrópole; aluno especial em Direitos Humanos/UFG)
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