Cotidiano

Como funciona a economia do Califado

Diário da Manhã

Publicado em 24 de novembro de 2015 às 17:08 | Atualizado há 3 dias

Helvécio Cardoso

O mundo o chama de “Estado Islâmico”. Ingleses e americanos chamam-no “Isis”. Eles próprios se denominam “Daech”. Não é uma organização terrorista como outra qualquer, como a Al Qaeda, por exemplo, nem mesmo um partido armado, como o Hezbollah. É algo bem pior e muito mais perigoso. Daech mantém o controle total de um território do tamanho de metade da França e mais ou menos do tamanho do Reino Unido, entre a Síria e o Iraque, e quer expandir seus domínios ao Irã. Pelo menos 10 milhões de pessoas habitam o território. Seria uma população maior se milhares de sírios não tivessem abandonado suas casas para não cair nas garras das novas autoridades.

Daesh proclamou no território ocupado um “estado islâmico”, ou “califado”, em que o Corão é a lei civil e penal. Um estado absolutamente teocrático, onde a mesquita tem a palavra final, decide sobre a vida e a morte de cada um. Onde a mesquita está sob as ordens soberanas de Abu Bakr Al-Baghdadi. Ele governa autocraticamente o país – digamos assim – com o auxílio de sete ministros, dos quais o das finanças é um certo Abu Salah. Alem de gerir as finanças “nacionais”, cabe a ele superintender a administração dos emires ( prefeitos ou intendentes municipais) e os chefes de tribos instaladas nas províncias. É um sistema altamente descentralizado, que fora estabelecido por Abu Sayyaf, dirigente de finanças que morreu recentemente em um bombardeio lançado pelos americanos.

Nenhum país do mundo reconheceu o Califado. Embora sua expansão territorial tenha sido aparentemente contida, o poder continua firme nas mãos do Daesh. Ante a evidência de que o Califado é um fato, aumentou a curiosidade do mundo sobre como o novo estado se mantem e como seu “governo” custeia suas despesas, que não são poucas. Sendo, como de fato é, um estado bizarro, com práticas de gestão financeira e administrativas absolutamente desconhecidas do mundo ocidental, não se pode saber com exatidão como as coisas funcionam por lá. As “contas públicas” não são publicadas. O “orçamento”, pois deve haver algum, também é desconhecido e não passa pelo controle de qualquer corte de contas. A divisão entre setor público e privado é muito tênue, se é que existe.

Contudo, o país não é comunista. Sabe-se com alguma segurança que a propriedade privada continua sendo respeitada pelo regime. O comércio varejista está sob absoluto controle de particulares. Tanto que a maior fonte de receita, que gera cerca de 800 milhões de Euros, é a iniciativa privada, via impostos arrecadados mediante praticas de extorsão.

Se não sabemos sequer se há alguma coisa semelhante a um Banco Central. Sabe-se que o Dinar, emitido pela autoridade monetária iraquiana, é aceito em transações correntes. O Euro também circula por lá. Fora isso, como podemos formar ideia do que seja a economia do Califado? Mariane Rabrou, editora de Economia do diário parisiense Le Figaro, o mais antigo da França, publicou na edição de quinta-feira da semana passada, uma ampla reportagem sobre a conjuntura econômica do Califado. É, talvez, o melhor relato sobre o assunto já publicado na imprensa ocidental.

Tudo na matéria de Rabrou é estimativo. Ela se baseia em estatísticas publicadas antes do advento do Daech, quando técnicos ocidentais ainda podiam circular pela região, tanto da síria como do Iraque. Cotejadas com outras informações, obtidas junto a refugiados, e até por meio de fotos tiradas por satélites, foi possível compor um quadro da situação econômica local.

A parte iraqueana do Califado nada em petróleo e gás. Duas refinarias trabalham dia e noite produzindo gasolina, diesel, querosene, nafta e outros derivados. Essas refinarias não só satisfazem as necessidades locais como ainda geram divisas. A maior parte da produção de derivados, e também de óleo cru, é descaminhada através da Síria e da Turquia. O presidente russo, mister Putin, já denunciou inúmeras vezes esta atividade ilegal. Já mostrou fotos – tiradas pelos satélites russos – de caravanas quilométricas de caminhões escoando a produção petrolífera do Califado. Bons liberais, os gerentes do Daech sabem que preço baixo inibe todo escrúpulo moral e elide toda e qualquer restrição ideológica. Todo mundo está comprando a preço de banana o petróleo do Califado. Isto, certamente, concorre para o achatamento do preço do barril nos mercados globais.

Além do petróleo e do gaz, o Califado é rico em fosfato, trigo e sorgo e algodão, além de produzir frutas secularmente apreciadas na Europa: damasco, figos etc. Lá tem fábrica de cimento portland e outros insumos para a construção civil, destinados à exportação. Outras fontes menores de receita, mas não menos importantes, são o tráfico de obras de arte antiga, pilhadas em sítios arqueológicos, e o resgate de reféns. É por isso que, ao contrário da Al Quaeda, que depende de doações externas, o Daesh é totalmente autônomo em termos financeiros. Sua capital, Mossul, com mais de dois milhões de habitantes, é a segunda maior cidade do Iraque. Segundo o economista Charles Brisart, que compilou todos os dados disponíveis, a receita orçamentária do Daech chega mais de 2,5 bilhões de euros anualmente.

Jean-Charles Brisard, especialista em financiamento do terrorismo e presidente de um centro de estudos do terrorismo, explica que, apesar do gigantismo de suas receitas, o Daech tem uma despesa igualmente monstruosa. Ele informa que os soldados do exército vencem soldo de 300 dólares mensais, e a tropa engaja pelo menos 200 mil praças, sendo cerca de 20 mil as tropas de elite. Os que tombam em combate legam pensões aos familiares. Os mutilados também recebem pensão. Há, também, muitas despesas para manter funcionando, com nível suportável de eficiência, os serviços públicos básicos. Gasta-se também um dinheirão em propaganda – com videoclipes com padrão hollywoodiano de produção – para recrutar militantes no mundo inteiro.

Não por acaso os países do G-20 vêm pleiteando medidas de combate ao financiamento do terrorismo. O estrangulamento econômico do novo estado talvez venha surtir mais efeito do que as ações militares, até agora totalmente ineficazes.

Além do tráfico de antiguidades, Daech está implicado em contrabando de cigarros, drogas ( naturais e sintéticas), órgãos humanos, contrafação de grifes, documentos falsos, enfim, tudo que possa satisfazer os vícios e as taras ocidentais, já que para os muçulmanos Maomé proibiu todos esses pequenos prazeres terrrenos. Louise Shelley, professora da George Mason University (Virginia), especialista em terrorismo, citada por Le Figaro, Daech está ministrando aos seus guerreiros uma tal captagon, a nova droga sintética da moda, que é uma espécie de anfetamina que dopa a faculdade de sentir medo. Sob efeito de captagon os soldados e os terroristas ficam doidões e topam qualquer parada, morrendo com um sorriso de satisfação nos lábios.

As armas? Segundo le Figaro, não só o Daech se apoderou dos abundantes arsenais existentes na região, outrora fornecido pela ex-Urss, como ainda repassam muitas delas para organizações amigas que travam a Jihad na África e outros locais da Ásia.

Mas o negócio mais infame atualmente administrado pelo governo do Califado é o da “escravidão sexual”. Le Figaro, com base em uma publicação iraquiana, informa que moças cristãs e yazides capturadas são reduzidas à escravidão para fins libidinosos. Nem crianças escapam. Ao preço de tabela, meninas de menos de 10 anos são vendidas 138 euros. Moças de 20 anos valem 104. As de trinta saem por 75. As quarentonas podem ser adquiridas por 35 euros. Daesh também é acusada de vender órgãos humanos para transplante. Eles são retirados dos cadáveres de reféns executados e até mesmo de seus próprios soldados caídos em combate.

Resgate de reféns representa 2% da receita orçamentária do Daech. Eric Denecé, diretor de um Centro Francês de Pesquisas, conta a Le Figaro que só a França, em 95% dos casos, vem aceitando pagar resgates, “o que alimenta o terrorismo sem fim”. Donativos representam 2% das receitas. Quem faz doações ao Califado. Le Figaro, sem dar maiores detalhes, afirma que tais doações provêm da Arábia Saudita e do Qatar, além, é claro, de doações via internet para laranjas do regime.

Apesar de sua incipiência, Daesh é considerado, pelos especialistas, um estado até muito bem organizado. A economia local, com todas as suas escandalosas práticas mercantis, parece funcionar eficientemente, ou, como poderia dizer Pareto, “otimamente”. Como é possível? A mão invisível por certo aloca otimamente os recursos, regulando a oferta e a demanda. É um exemplo, talvez edificante, de como o liberalismo escreve certo por linhas tortas.

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