Crenças populares no senso comum
Redação
Publicado em 20 de outubro de 2015 às 00:41 | Atualizado há 9 anosSegundo Allan Kardec, a evolução da humanidade deve muito ao cristianismo, seja na forma do catolicismo que combateu o paganismo, seja na forma do espiritismo que combateu o materialismo. Assim a sociedade de hoje é a evolução da sociedade do passado e a sociedade do futuro será a evolução da sociedade de hoje, apesar de a humanidade não ter evoluído globalmente, mas de forma setorizada.
Partimos dessa premissa para enfocar a relação de continuidade entre catolicismo e espiritismo segundo o senso comum, tal como se manifesta no campo do folclore espiritual, presente nos mitos e lendas, nas crendices e superstições, rezas e benzimentos que compõem o sincretismo religioso que prevalece em regiões de cultura arcaica como é o Vale do Paranã, zona de intersecção entre os estados de Goiás e Bahia.
A lei da predestinação
Neste pequeno universo parece que a lei da predestinação vem colada às pessoas e aos fatos e contraria qualquer raciocínio sobre o princípio da causalidade (relação causa e efeito). Reina aqui a concepção de que o homem cumpre um determinismo natural e está subordinado à lei do destino traçado por Deus. O comportamento essencialmente subjetivo situa as criaturas no mundo do acaso e todos vivem espontaneamente segundo a vontade de Deus (aqui um deus feito à imagem e semelhança de cada um). Os passos de êxito ou fracasso dependem de um fator preponderante que se chama sorte.
A vida, pois, se constitui num fenômeno de eterna embromação. Na literatura oral transparece uma visão nihilista em relação ao trabalho, como forma de sacrifício que não gera a devida recompensa. “Peça muita sorte a Deus, / se muita não lhe foi dada, / se console com o que é pouco, / pouco é melhor do que nada. / Mais vale quem Deus ajuda / do que quem faz madrugada.” No plano conjugal, quando os destinos de duas pessoas se atrelam, dizem que a sorte do marido depende da sorte da mulher. Quando esta tem boa sorte, o marido é bem sucedido e prospera nos negócios. Quando a mulher tem a sorte embaraçada, o marido é quem paga o pato. Invertendo-se os termos dessa posição machista, quando o marido tem a sorte embaraçada, quem paga o pato é a mulher.
A tessitura da vida
Acredita-se que os homens no início tinham sido macacos (teoria evolucionista de Darwin). Acredita-se, sem o saber, no conceito de Orígenes de que as almas receberam corpos como castigo. Acredita-se (efeito de doutrina católica) no castigo de toda a humanidade pelo pecado de Adão. Acredita-se na ressurreição da alma e que os corpos dos condenados depois da morte, arderão eternamente no Inferno, mas as almas dos pecadores arrependidos irão para o Purgatório.
Tenta-se explicar a complexidade da vida ou desvendar os seus mistérios, fazendo, por exemplo, vir ao mundo uma criança a poder de rezas ou simpatias, pensando-se as feridas, curando-se as doenças ou desfazendo-se situações difíceis, basta que haja para isso, a conveniência da aplicação de expedientes mágicos. Para casos de doenças em pessoas ou animais, recorre-se ao curandeiro que receita garrafadas ou pensa as feridas, enquanto o benzedor intercede no mesmo sentido com seus recursos hierológicos.
No plano existencial, a vida orienta-se por princípios práticos. Acredita-se, por exemplo, no valor da não-beleza (para não dizer da feiúra). O homem não precisa ser bonito nem rico: basta ser honesto e trabalhador. Riqueza não é qualidade e pobreza não é defeito. A mulher não é vista pela beleza nem como objeto de desejo, mas de utilidade doméstica: basta saber cozinhar, lavar e passar. Segundo o dito popular, beleza não bota mesa.
Crianças na categoria de anjo
Nascida uma criança, se acometida do “mal de sete dias” (mal de umbigo), não escapa. O último recurso possível é uma promessa, que, todavia, não salva a vítima de morte predeterminada: a promessa pode ter a força de causar o adiamento da fatalidade para um período de sete semanas, ou sete meses, ou sete anos e assim sucessivamente – somando-se ou multiplicando-se os prazos com um cálculo feito na base do número 7 – de modo que se poderá fazer uma previsão do dia inevitável da morte. Na verdade, o mal de sete dias seria conseqüência de uma infecção decorrente do corte do umbigo com alguma tesoura ou outro instrumento enferrujado.
Os recém-nascidos que morrem sem mamar, se batizados, viram anjos Serafim. (O anjo Serafim foi quem morreu sem ter sido amamentado). As crianças falecidas até sete anos de idade pertencem a outras categorias de anjos. (Isto confere com a instrução da Igreja católica, de que a criança até sete anos vive em estado de graça). Mas os anjos nesta segunda condição, antes de entrarem para o Céu, deverão passar pelo Limbo a fim de lançar todo o leite materno, proveniente do pecado. As crianças que morrem sem batismo (reflexo de doutrina religiosa), devem também permanecer no Limbo até o Dia de Juízo, para serem arrebatadas ao Céu.
A criança quando nasce é geralmente banhada em água com limão, deixando-se cair um pouquinho dágua no olho, que é para crescer de olho limpo. O umbigo é tratado com azeite de mamona (usando-se para tanto uma peninha de galinha), até quando seca e cai a tripa (dentro de sete dias). O recém-nascido, para que venha a ter sorte privilegiada, ao ser banhado pela primeira vez, deve-se adicionar à água do banho uma peça de metal precioso: ouro – para ficar rico, prata – arrimidiado (palavra não dicionalizada), que quer dizer bem de vida. O umbigo do recém-nascido deve ser enterrado nos seguintes locais: 1. À porteira do curral – para ser fazendeiro. 2. À porta da igreja ou ao pé do cruzeiro – para que fique religioso. Caso o umbigo seja deixado à toa e rato roer – o menino fica ladrão. Se deixado nos panos da criança e água da fonte carregar – será desprotegido da sorte.
Rezas e benzimentos
Vale observar que em termos de cultura regional e no aspecto geoeconômico, o Vale do Paranã está em igual importância para Goiás tal como o Vale do São Francisco está para a Bahia e Minas. Nessas duas microregiões a presença do folclore como expressão da alma popular, ilustra a importância de um interseccionismo cultural entre os três estados limítrofes. No tocante ao valor das rezas e benzimentos, vale mencionar um recente artigo do jornalista Jávier Godino sobre “Chico Xavier e os bichos” (Diário da Manhã, 9-9-15), com o seguinte registro.
Conta ele que, certa feita, um casal de fazendeiros procurou o conceituado médium buscando orientação sobre como agir para afugentar cobras de sua propriedade, declarando que já haviam perdido em sua fazenda muitas rezes e cavalos, e que corriam eles mesmos sérios riscos de serem picados por elas. Segundo o articulista, Chico Xavier, demonstrando compreender bem o drama dos solicitantes, assim orientou: “Coloquem nitrato de prata, aos montinhos, nos lugares mais comuns onde elas costumam aparecer. Às vezes, dá resultado. Se não adiantar, procurem um benzedor.”
Chico Xavier, percebendo que logo lhe pediriam para ir à fazenda realizar ele mesmo as rezas e benzimentos sugeridos, antecipou, bem humorado, que de nada adiantaria: com a sua presença as cobras não iriam embora. E comentou a propósito: “Tem gente que não acredita mas eu, que sou do interior de Minas Gerais, conheço inúmeros casos de bons resultados com a benzedura. Levem o benzedor à fazenda. Mesmo se cobrar, paguem o que pedir e, quando ele fizer suas orações, as cobras irão embora. O benzedor, naturalmente, é médium de fluidos materializantes. Ao orar, os espíritos que cuidam da Natureza utilizarão esses fluidos, tocando as cobras dali para uma região de menor perigo.”
Almas passíveis de perdão
No município de Posse, ouvi a história de um vaqueiro que tinha morrido fora da graça de Deus. Certa ocasião, ao lidar com o gado, ficou tomado de raiva e esfaqueou uma vaca que morreu em decorrência disso. Jamais revelara esse fato a ninguém. Depois de morto, sua alma passou a tocar boiada todas as noites, causando assombração. Tudo começava com o toque de um cincerro que vinha se aproximando, alteando, se intensificando, e uma voz aboiava: “Eh boi! volta boi! volta vaca! volta boi! volta vaca!” No outro dia, foram ao local para verificar a veracidade do fato. Veio a assombração com o mesmo gemido: “Volta boi! Volta vaca! Volta! Volta!” Aquela voz só deixou de aboiar quando o patrão perdoou o finado.
Causos como esse têm variáveis e adaptações, sempre enfatizando o valor do perdão como forma de redimir um crime. Os que morrem com alguma dívida material ou espiritual, ficam penando até obter o perdão do credor, para poder ganhar a salvação. Aquele que não perdoa, será também condenado. Se o defunto for para o inferno, para lá também irá quando morrer aquele que não perdoou. Abstraída a ideia de inferno como lugar fixo, a mesma pena de provação é também prevista na crença espírita, mediante processo reencarnatório. Na visão espírita, a reencarnação faz parte da justiça divina, dando sempre nova oportunidade de reparação das culpas e de autoaperfeiçoamento do espírito. Injusta seria a condenação eterna, visto que o espírito existe para servir aos designos de Deus.
Nessa ordem de exemplos, surgem casos semelhantes. Por exemplo, do vaqueiro que havia furtado uma novilha do patrão. Quando morreu passou a praticar visagens na beira das estradas. Certo dia, um velho vaqueiro armou um pouso por ali e resolveu assar um pedaço de carne. No meio da noite, ouviu uma voz gemida: “Não assa essa carne! não assa essa carne!” O velho vaqueiro insistiu no ato, com indiferença. De repente veio uma ventania, varreu a carne, apagou o fogo, escorraçou o animal. Dentro de uma tocha de luz aparece o defunto que lhe revela o furto, pedindo que intercedesse junto ao patrão para perdoá-lo.
Essas em linhas gerais, algumas observações sobre crenças subjacentes na hierologia popular documentada na região do Vale do Paranã, no leste goiano fronteira com a Bahia, objeto de estudo desenvolvido no livro Intersecção Goiás-Bahia, deste autor, já disponível em segunda edição.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])
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