Opinião

O dia em que Getúlio matou Allende

Redação

Publicado em 5 de agosto de 2015 às 22:07 | Atualizado há 9 anos

Pode parecer sem pé e sem cabeça o título do livro do jornalista Flavio Tavares que tomei de empréstimo e acabei de ler de um só folego. Mas, não. Tem sua razão de ser. Flavio Tavares conta que encontrou Salvador Allende em agosto de 1954 na China. Ambos em viagem patrocinada pelo recente governo comunista chinês: ele um jovem líder estudantil e Allende senador e vice presidente do Senado chileno. Tavares ficou sabendo do suicídio de Getúlio pelos jornais. Estupefato comentou com Allende o trágico incidente. Tavares percebeu que a atitude drástica de Getúlio tinha causado profundo impacto no senador chileno. No dia seguinte ao reencontrá-lo Allende queria saber mais sobre o suicídio e entender o contexto político e o porquê de Getúlio ter tido um desfecho tão trágico. A atitude de Getúlio saindo da vida para ganhar a história não deixou de abalar emocionalmente o senador chileno: esta a impressão que deixou no jornalista.

Dezenove anos mais tarde, eis que Allende agora presidente do Chile, resiste com metralhadora (ganhou de presente de Fidel Castro) em punho em pleno palácio da Moneda ao bombardeio aéreo dos militares golpistas. De súbito deve ter lhe vindo a memória o gesto de Getúlio: como ele, não se entregou, também entrou para a história.

Flavio Tavares foi um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador americano sequestrado pelos militantes das organizações da luta armada durante o regime militar. Desde a década de 50 seja como jornalista ou mesmo como militante de esquerda esteve presente nos principais episódios que aconteceram no país. No livro conta sua relação com o poder e com seus personagens: Getúlio, Jango, Lott, Juscelino, Jânio e, até com Guevara. Descreve uma narrativa objetiva da escalada da direita sob a batuta de Carlos Lacerda, o seu clímax com a ofensiva da Republica do Galeão que fechou o cerco sobre Getúlio e acabou por isolá-lo culminando com o seu suicídio. Como também descreve os fatos que culminaram na derrubada de Jango em 1964. Ambas as crises tiveram um desfecho militar. A de Getúlio de forma indireta, pois quem assumiu o governo foi Café Filho, o seu vice. Contudo, com forte pressão militar, sobretudo depois da morte do coronel Rubens Vaz no atentado da rua Torneleros contra Carlos Lacerda, sob os auspícios do chefe da segurança pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato. A partir daí a Aeronáutica comandou com plenos poderes o IPM prendendo Gregório e ameaçando convocar Getúlio para depor. O cerco estava fechado e Getúlio perdia o apoio militar.

É interessante rememorar a história e comparar com a crise que estamos vivendo hoje em dia. A desenvoltura do Juiz Sergio Moro na condução da Operação Lava Jato e sua meticulosa cronologia e planejamento tem deixado a defesa dos acusados totalmente na defensiva e desnorteados a cada fase que vai acontecendo gerando, por conseguinte, novos fatos e novas acusações e delações. Essa sucessão de fatos e acusações tem propiciado o pronunciamento da defesa em acusar o juiz Sergio Moro em extrapolar suas atribuições e atropelar procedimentos processuais. Chegam a taxar o comando da operação conduzida por Moro como a República de Curitiba, em uma alusão a Republica do Galeão da malfadada época do Getúlio. Certamente um exagero calculado que visa inibir e desacelerar o andamento da Operação Lava Jato. Uma analogia descabida. Basta recorrer a história para entender suas diferenças. A República do Galeão, como se sabe, foi conduzida pela Aeronáutica, com toda a truculência e desmandos próprio dos militares. A Operação Lava Jato tem outro viés e, pode sim, ter cometido deslizes processuais mas nada comparado com o outro.

O importante na verdade não é essa pendenga jurídica mas, sim, a questão política inerente a crise de governabilidade da Dilma. Afinal, qual o desfecho dessa crise?

Está claro que a questão crucial não é conquistar a governabilidade negociando benesses com o Congresso, como insiste o governo. Não é distribuindo verbas e nem cargos que a Dilma vai sair da crise. A crise é mais embaixo. O que está em crise é o modelo de representatividade de um regime que se esgotou. Há uma profunda crise de credibilidade e representatividade. Acrescida e turbinada pela crise econômica e ética. Não vai ser este Congresso que vai resolver a crise, pois ele é parte integrante da própria crise. A única saída é convocar novas eleições gerais com poder constituinte e alijando os indiciados de poderem concorrer às eleições. Como fazer, ainda não se sabe. Este é o grande desafio.

 

(Fernando Safatle, economista – [email protected])

 

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