Cotidiano

A combinação que mata

Diário da Manhã

Publicado em 14 de março de 2018 às 02:03 | Atualizado há 1 semana

  •  Em Goiás, 7,9% dos goianienses adultos já dirigiram depois de consumir bebida alcoólica. Professor da USP explica por que pessoas continuam a misturar álcool e direção mesmo após campanhas, e especialistas apresentam soluções definitivas para melhorar a qualidade do trânsito
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    Não é novidade para nin­guém, a embriaguez ao volante é uma das princi­pais responsáveis pelas mortes no trânsito em todo o país. Um estudo divulgado pelo Ministério da Saú­de ano passado mostra que cerca de 21% dos acidentes ocorridos no Brasil estão relacionados dire­tamente ao consumo de álcool. E não para por aí, a própria Organi­zação Mundial da Saúde (OMS) já colocou o país no pódio dos que mais matam no trânsito.

    Na tentativa de resolver esta rea­lidade, foi publicada no fim de 2017 a Lei Ordinária 13.546, do Código de Trânsito Brasileiro, que aumenta a punição para o motorista que cau­sar mortes dirigindo alcoolizado. A pena que era de 2 a 4 anos de deten­ção, dobra e passa a ser de 5 a 8 anos.

    Essa não foi a única iniciati­va para tentar barrar o gigantesco número dos acidentes de trânsito. Ainda na gestão de Dilma Rousseff, uma nova lei seca endureceu as re­gras ante à embriaguez no volante. A multa que era de R$ 957 passou a ser quase R$ 2.000, e alcança os agressivos R$ 3.830 se houver repe­tição. Além disso, a carteira de mo­torista é cancelada e o motorista fica impedido de dirigir por um ano.

    Essas mudanças não foram, contudo, o suficiente para tornar aceitável o número de pessoas em­briagadas no trânsito. Apesar de uma diminuição significativa (de até 30% durante o carnaval), aci­dentes nas estradas continuam fre­quentes e o Brasil aparece em quin­to lugar entre os países recordistas em mortes no trânsito, atrás da Ín­dia, China, EUA e Rússia.

    Segundo a pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 7,9% dos en­trevistados em Goiânia, afirmaram já ter conduzido veículos motori­zados após consumir bebida al­coólica. Horácio Ferreira, gerente de educação para o trânsito da Se­cretaria Municipal de Transporte, Trânsito e Mobilidade (SMT), ex­plica que isso ocorre porque há um incentivo do consumo em Goiâ­nia. “Temos incentivo ao consumo de álcool pela promoção de bares como alternativas de lazer. Isto é um grande perigo”, afirma.

    Todos os dias são registrados acidentes de trânsito em Goiânia. Segundo Horácio, nos finais de se­mana e feriados, muitos acidentes são causados por causa da com­binação entre bebida e direção.”­Nesses dias, principal vilão é o ál­cool”, explica. Mas isso não quer dizer que nos outros dias da se­mana não ocorram acidentes por esse motivo. “Isso está relacionado à conduta e ao comportamento de risco do condutor”, afirma Horácio.

    O professor Ricardo Abrantes do Amaral, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Me­dicina da USP, fala sobre as razões de as pessoas continuarem beben­do e dirigindo, mesmo sabendo de todos os riscos e consequências. “O que acontece com frequência é uma resistência a uma determina­ção legal. Quando uma lei é sancio­nada, um tempo para se adaptar a ela é necessário à população, para que os velhos hábitos possam se moldar às determinações daquela lei. No entanto, é muito comum no­tar certa resistência da população, e tal resistência pode se manifestar, por exemplo, através do excesso de confiança”, explica Ricardo.

    Para o professor, a confiança se justifica pela falsa crença de que a lei não precisa ser aplicada para al­guns indivíduos. “Uma pessoa que pratica uma infração com certa fre­quência e nunca passou por qual­quer problema relacionado ou, se passou, foi algo facilmente contor­nado, acredita que a lei não seja necessária para ela. E isso é muito frequente, cada pessoa julgar indi­vidualmente se a lei é útil ou não, embora a lei, em si, não trate de in­divíduos ou situações particulares, mas sim de uma coletividade”, elu­cida o especialista.

    ÁLCOOL NO ORGANISMO

    O álcool é uma substância de­pressora do sistema nervoso central, que diminui a ação e o funciona­mento do cérebro. Segundo a mé­dica psiquiatra Kellen Arrais Gual­tier, isso causa várias mudanças no funcionamento cerebral conside­rado normal. “Acontece uma dimi­nuição de reflexos, diminuição da atenção e diminuição da memória. O cérebro não entende como tem que funcionar”, explica. Dessa ma­neira, a pessoa que está intoxicada pelo álcool perde a noção de equi­líbrio, coordenação e velocidade.

    A quantidade ingerida pelo or­ganismo também interfere na for­ma com que os efeitos vão apare­cer. “Uma latinha de cerveja para uns pode equivaler a sete ou oito la­tinhas para outros, porque depen­de do metabolismo de cada um”, explica Kellen. Isso tem efeito di­reto quando se aplica testes, como por exemplo, do bafômetro, pois eles identificam a quantidade de álcool metabolizada, independen­te da quantidade ingerida.

    Quanto mais a pessoa tem de álcool metabolizado no organis­mo, mais o efeito demora a passar. Sendo assim, acaba gerando de­pendência do corpo. Kellen explica que isso acontece porque o corpo se acostuma com aquela quanti­dade. “Se o corpo já se acostumou com o metabolismo daquele ál­cool e está sentindo abstinência, então ele tem a necessidade de be­ber cada vez mais”, conclui.

    SOLUÇÕES

    Para especialistas, a resolução do problema está numa combina­ção de medidas. A primeira delas é a engenharia. É preciso melhorar as vias (estradas, ruas e calçadas) e ga­rantir segurança a todos os usuários. As ações passam por proporcionar, por exemplo, boa cobertura asfálti­ca, sinalização adequada, colocação de semáforos, faixa de pedestres e obstáculos para diminuição da ve­locidade em pontos nevrálgicos das vias, espaços para diminuição da ve­locidade em pontos nevrálgicos das vias, espaços para circulação de bi­cicletas em ciclovias e qualidade das calçadas, entre outras.

    “Um exemplo de investimen­to nesse tipo de ação é Bogotá, na Colômbia. Mais de 100 Km de ci­clovias foram construídas entre 2003 e 2013, e ajudaram a dobrar o uso de bicicleta e reduzir em 47% a morte de ciclistas”, diz Martha Obelheiro, coordenadora de segu­rança viária da ONG WRI (World Resources Institute) Brasil.

    Mudanças estruturais, no entan­to, podem não ter efeito significan­te sem a diminuição dos limites de velocidade. A máxima recomenda­da pela OMS é de 50 Km/h em vias arteriais. “Muitas vezes, a redução esbarra na ideia equivocada de que pode haver aumento de congestio­namentos. Para diminuir essa re­sistência, o papel da mídia e do po­der público são fundamentais. Na França, por exemplo, o limite caiu de 60 Km/h para 50 Km/h nos anos 1990, e estima-se que tenha evitado 14 mil acidentes só nos dois primei­ros anos”, afirma Obelheiro.

    Mas não adianta investir em in­fraestrutura se os condutores não forem hábeis e, assim como os pe­destres, não seguirem as regras do trânsito. O investimento em educa­ção, de acordo com especialistas, é fundamental. David Duarte Lima, professor da UNB, aponta um pon­to fraco do sistema brasileiro: quem forma o condutor. Ele cita como ins­piração para o Brasil o exemplo da Espanha, onde o formador passa por um curso de dois anos de dura­ção, antes de iniciar as aulas.

    O processo de educação de condutores e pedestres deve ser acompanhado de fiscalização efi­ciente e punição aos causadores de acidentes e aos entes públicos que não atuaram para evitá-los. “Não existe indústria da multa, mas sim da infração”, diz Meli Malatesta, ur­banista e doutora em Mobilidade Ativa pela FAU-USP.

    O português Mario Alves, se­cretário-geral da IFP (Federação Internacional de Pedestres), cita como ações eficientes campanhas que colocam também a população como fiscal de trânsito. Por exem­plo, Bogotá distribuiu aos morado­res cartões vermelhos, como os do futebol, que eram mostrados aos infratores para censurar compor­tamentos indevidos.

    “No entanto, na Europa tam­bém sabemos que a educação não é o suficiente. Nos países nór­dicos, com níveis de educação in­vejáveis, a utilização de radares e forças de vigilância policial são fundamentais para que os moto­ristas respeitem as regras básicas da estrada. O que sabemos é a sua frequência. Por isso, precisamos de agentes treinados para perce­ber e coibir comportamentos an­tissociais”, conclui Alves

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