Cotidiano

A dor do diferente

Redação

Publicado em 22 de maio de 2018 às 01:45 | Atualizado há 7 anos

Desigualdade na produção acadêmica e tendência, ainda que não intencional, de avaliar candi­datas com maior rigor e de con­ferir mais credibilidade aos dis­cursos masculinos indicam que ainda existe preconceito contra mulheres na academia. Essas si­tuações, também reproduzidas na UFMG, foram identificadas pelo pesquisador Marcel de Almeida Freitas em sua tese de doutorado, defendida no início deste ano na Faculdade de Educação. O traba­lho baseou-se em entrevistas fei­tas com 17 mulheres do quadro permanente de servidores da Uni­versidade que atuam como do­centes e pesquisadoras.

“Procurei analisar, com base nas entrevistas, preconceitos e dis­criminações que elas tenham vivi­do na docência e na pesquisa”, ex­plica Freitas, que classifica como discriminação vertical ou horizon­tal algumas das situações relata­das. A maior dificuldade enfren­tada por mulheres para progredir na carreira e o pequeno número de professoras em cargos de dire­ção configuram a discriminação vertical. Em outro nível, que clas­sifica como discriminação hori­zontal, ele destaca a presença ma­joritária de homens em cursos de maior prestígio, mais bem remu­nerados e mais valorizados social e academicamente, enquanto as mulheres ainda são maioria nas áreas ligadas ao cuidado e ao aco­lhimento, geralmente financeira e socialmente menos valorizadas.

Tomando o ano de 2016 como base, Freitas mensurou os seguin­tes itens de produtividade, com­parando os dois grupos de sexo: artigos científicos publicados, tra­balhos ou resumos de trabalhos publicados em anais de eventos, orientações de mestrado e douto­rado e supervisões de pós-douto­rado. Em geral, a média feminina é, em quase todos as variáveis e em todos os cursos, um pouco mais baixa que a masculina.

A distribuição por sexo é desi­gual também entre as áreas, e as mulheres concentram-se princi­palmente nas ciências humanas e na saúde. Nesta, contudo, em­bora haja mais mulheres, são os homens que apresentam maior produtividade acadêmica, diz o pesquisador. Em um universo de 2.021 docentes que atuavam, em 2016, em 74 cursos de pós-gradua­ção stricto sensu, os homens eram 58%. No mesmo período, entre os alunos de graduação, as alunas correspondiam a 52%, o que mos­tra, de acordo com a teoria femi­nista consultada por Freitas, que, “à medida que se avança no nível de ensino, os chamados filtros de gênero vão atuando”.

Ao comparar a produtividade dos pesquisadores, Marcel Frei­tas comenta que ela é maior entre os homens nas ciências exatas, o que é esperado, por ser a área em que há menos mulheres. Por ou­tro lado, ele enfatiza que a segunda área de maior produtividade mas­culina é a saúde, em que o número de mulheres é um pouco superior.

Freitas levanta a hipótese de que permanece uma divisão in­formal de trabalho, em que os ho­mens atuam na criação e na pro­dução científica, enquanto grande parte das mulheres se ocupa de ta­refas ligadas ao ensino e à buro­cracia. “Isso replica na academia o ambiente doméstico e uma antiga imagem social da mulher cuidado­ra – não aquela que pensa, cria, in­venta, desenvolve uma vacina, um método ou um equipamento”, diz.

‘SEGURANDO A ONDA’

Segundo o pesquisador, as en­trevistadas relataram perceber uma tendência, nos homens que compõem bancas examinadoras, de ser mais rigorosos com candi­datas. “Quando um homem e uma mulher com currículos equipara­dos concorrem, a tendência é dar mais credibilidade ao perfil mas­culino”, acrescenta, ressaltando, contudo, que muitas das postu­ras identificadas como discrimi­natórias são adotadas de forma inconsciente e não constam nos regulamentos dos cursos.

É o caso, por exemplo, de situa­ções em que, “educada e cordial­mente, as mulheres são subalter­nizadas” em reuniões, bancas e congressos, ao terem seus discur­sos desautorizados por homens e até por outras mulheres, comenta Freitas, que faz referência ao con­ceito de discurso no sentido adota­do por Foucault. Também de for­ma inconsciente, nos cursos em que predomina a presença mas­culina, elas evitam usar muitos adereços, saltos, decotes ou ma­quiagem forte. “As entrevistadas disseram que nesses ambientes é preciso ‘segurar a onda na femi­nilidade’. Trata-se de uma postu­ra tácita, um habitus internaliza­do, no dizer do sociólogo Pierre Bourdieu”. Freitas sugere que, com o passar do tempo, as mulheres vão criando habitus para que esses discursos não as silenciem e que seus discursos não sejam desau­torizados. ”São estratégias que elas passaram a adotar, para neutrali­zar essas práticas, algumas cons­cientes, outras, não”, reitera.

SEM ESTEREÓTIPOS

Na opinião do pesquisador, a sociedade precisa empoderar as mulheres, não apenas dan­do mais oportunidade para que atuem em redutos pretensamen­te masculinos, mas também dei­xando de endossar estereótipos. “É importante, por exemplo, esti­mular também a presença de ho­mens em determinadas áreas, de modo que não sejam estigmatiza­dos por cursarem enfermagem ou belas-artes”, pondera.

Nas entrevistas, todas as pes­quisadoras relataram que, no ensino médio, era comum ouvir professores desestimulando me­ninas a optar por cursos consi­derados masculinos. “Alguns di­ziam coisas do tipo: ‘você, com esse cabelo tão lindo, vai mexer com máquina?’”, revela Marcel Freitas, reproduzindo uma fala que ouviu nas conversas.

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