A saúde pede socorro hospitalizada
Diário da Manhã
Publicado em 19 de outubro de 2018 às 02:54 | Atualizado há 1 semana
O modelo de gestão compartilhada na saúde e em educação tecnológica em Goiás está entrando em colapso por causa da falta de comprometimento do Estado em repassar os recursos para as Organizações Sociais que fazem essa gestão. Somente na saúde a dívida já ultrapassa R$ 280 milhões e tende a aumentar com a chegada do final do governo e encerramento do ano.
O governador de Goiás, José Eliton (PSDB) anunciou recentemente que o Estado teria dificuldades para fazer os repasses para esses dois segmentos, mas que seria encontrada uma solução. “Não poderíamos jamais prever que a situação chegaria a um ponto crítico como esse porque esse mesmo governo há um mês pedia votos para a população e dizia que havia sido capaz de resolver os problemas de Goiás, por isso podia continuar no comando da administração”. O lamento é do diretor de uma OS que faz a gestão de um grande hospital de Goiânia, mas pede para não ser identificado.
As dívidas da Secretaria Estadual de Saúde para com as Organizações Sociais já ultrapassou a astronômica cifra de R$ 283 milhões e as OSs que fazem a gestão da Rede Itego (Institutos Tecnológicos de Goiás), responsáveis pela educação tecnológica, já amargam mais de R$ 23 milhões em repasses não honrados pelo governo e muitas unidades estão com as portas fechadas, professores em greve e alunos sem aulas.
Para completar o panorama nebuloso da situação, o Ministério Público abriu investigações variadas para apurar denúncias de má gestão dos recursos e até suspeitas de desvios na aplicação das verbas que deveriam custear pagamento de médicos e pessoal de apoio, alimentação de pacientes, medicamentos, manutenção de equipamentos, pagamentos de tributos para terem Certidão Negativa de Débitos e até os direitos trabalhistas dessas unidades. Como desgraça pouca é bobagem há hospitais em que falta até papel higiênico, como relatam servidores, pacientes e acompanhantes.
DESISTÊNCIA
O Hospital de Urgências de Goiânia (HUGO) é administrado pela OS Gerir, desde que o contrato de gestão foi idealizado e implantado pelo governo de Goiás. Citado como modelo de sucesso por vários anos e objeto de estudo por administrações de outros estados ele agora é tido como deficitário e com vários meses em atraso, acumulando um déficit até setembro de R$ 35,5 milhões, a unidade agoniza com falta de medicamentos, material de limpeza, comida e redução do número de médicos e enfermeiros que atendem os pacientes. O modelo de “hospital porta aberta” chegou ao ponto de estrangulamento e a direção da OS Gerir decidiu entregar os pontos.
Um dos segredos mais bem guardados nos últimos dias dá conta de uma discussão violentíssima entre o diretor da Gerir e o governador José Eliton sobre uma glosa (desconto) que o Estado vai fazer nas faturas apresentadas pelo Hugo e que aumentaria exponencialmente o prejuízo acumulado. O pega aconteceu no sábado que antecedeu o domingo das eleições e ocorreu no Palácio das Esmeraldas. O governador anunciou que iria de fato glosar as contas e que a OS deveria arcar com o prejuízo. Foi o bastante para o diretor explodir e jogar tudo para o ar. No primeiro dia útil após o bate-boca, a segunda-feira, 8, a Gerir protocolou na Secretaria Estadual de Saúde uma notificação informando que iria suspender a gestão dentro dos 30 dias que a lei determina e que o Estado deveria providenciar outra Organização Social para assumir o Hugo.
Enquanto isso médicos, funcionários, pacientes e familiares sofrem os efeitos nefastos do descaso de quem está lutando pela vida em um leito e corredor de hospital. O Ministério do Trabalho decretou uma intervenção no hospital por falta de condições mínimas para os obreiros da unidade e o Ministério Público prossegue com a investigação sobre a aplicação dos recursos.
“Pacientes precisam tomar medicamentos como antibióticos mais fortes do que o necessário por falta de outros recomendados para seus casos. Falta até material para aplicar injeções e esparadrapo está sendo regrado”, relata um médico da unidade. Todos aceitam falar com o compromisso de não serem identificados sob hipótese alguma. Pacientes também reclamam que estão sofrendo os efeitos desgraçados do desmando administrativo. Na recepção social do Hugo, onde familiares aguardam notícias e acompanhantes se revezam para ajudar no cuidado com os doentes os relatos são doloridos e refletem a crueza da realidade que vivem dentro do nosocômio.
“Até a comida para os acompanhantes está sendo regrada e material de limpeza foi reduzido à metade, como nos contam os funcionários de serviços gerais”, narra a mãe de um rapaz internado na ala de ortopedia. Ela ouviu de um médico que até mesmo o cuidado para evitar infecção hospitalar está sendo negligenciado por falta de álcool gel e sabonete líquido para assepsia das mãos. “É um caos total”, lamenta. Além do Hugo, a OS Gerir faz a gestão compartilhada também do Hospital de Urgências de Trindade (Hutrin), que acumula débitos nos repasses da Secretaria Estadual de Saúde da ordem de R$ 2,363 milhões.
DESUMANIZAÇÃO
O Hospital Materno Infantil é outra unidade hospitalar da rede estadual de saúde gerida por uma Organização de Saúde. Curiosamente a OS é o Instituto de Gestão e Humanização (IGH), e além do Materno a OS faz a gestão da Maternidade Nossa Senhora de Lourdes e também do Hospital de Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa). Somente o HMI acumula um déficit nos repasses do Estado que ultrapassa R$ 24,950 milhões, enquanto que somado ao rombo na falta de recebimentos das outras unidades o papagaio chega a R$ 33,856 milhões. Uma montanha de dinheiro que o Estado deveria repassar para não deixar pacientes vivendo à míngua nos leitos e profissionais estressados pela falta de pagamento, além de insumos básicos serem negados aos pacientes e acompanhantes.
Os relatos de desmandos pipocam na porta do HMI, sem que seja preciso procurar muito. São pacientes que aguardam uma atenção humanizada, um medicamento que lhe mitigue a dor ou que garanta um pouco de alento para o filho recém-nascido ou mesmo um pouco de conforto na enfermaria em que esteja internado ou acompanhando um paciente.
Madalena Paiva Silva é uma jovem de 18 anos, que veio de Rio Verde com a mãe para fazer acompanhamento de sua gravidez de risco. Aos oito meses de gestação, ela viu seu líquido aminiótico secar após uma discussão com o marido. “Me mandaram para cá para fazer o pré-natal e eu fiquei internada na última semana. Me deram alta e agora preciso voltar aqui duas vezes na semana para fazer acompanhamento, mas não consigo médico para olhar os exames nem me dão qualquer satisfação sobre o que eu preciso fazer”, lamenta.
A gravidez de risco dela é corroborada pelos exames complementares, mas ela não consegue qualquer resposta convincente. Durante o tempo que ficou internada, ela lembra que foi de grande sofrimento.
“Lá dentro está uma imundície só, com muita sujeira nos banheiros, quartos e corredores e não há nem ventilação na enfermaria, e nesse tempo de calor fica insuportável”. Desde que recebeu alta ela vem constantemente, mas quando chega lá dentro a justificativa é que não há médico para olhar seus exames e que ela deve retornar para casa e tentar na próxima semana. Madalena conta que viu outros casos de negligência, como pacientes que chegavam para o parto e enquanto não pariam os enfermeiros apenas faziam o toque para aferir a dilatação e as deixavam ao Deus dará, sem assistência. “Vi uma menina que ficou 12 horas em trabalho de parto e quase morreu”.
Os relatos se acumulam, como o de Cristiane Alves Silva, cuja filha está internada após dar à luz em um parto cesáreo. Ela lamenta que o quarto está um calor infernal e não há sequer um ventilador para aplacar a sensação térmica de pacientes e bebês. Mas, o pior ainda seria relatado. “Não há uma janela que abra direito, só tem cama velha e escadas caindo aos pedaços. Mais nada. No banheiro não tem papel higiênico, fica sempre uma nojeira e não há nem mesmo uma cadeira de banho para as mulheres e as enfermeiras e médicos são uma grosseria só com a gente”, diz a mulher contendo o choro.
Tatiane Lima, 35 anos, deu à luz uma filha que apresentou problemas após o nascimento e precisou ser internada na UTI pediátrica. Ela faz coro aos outros relatos que descrevem a infraestrutura sofrível da unidade, mas acrescenta outra situação que não se concebe em um hospital público como esse, de grande porte. “Eles pedem para a gente trazer até esparadrapo de casa para prender soro e equipos nas crianças porque aí não tem. Nos banheiros não tem nem papel higiênico e tudo está caindo aos pedaços, além da higienização que é feita às vezes só uma vez ao dia. O tempo todo é de mães chorando para um atendimento, uma palavra de um médico que nos ajude e não temos nada”.
A desídia do atendimento foi o ponto crucial no parto da cunhada de Roberta Dantas Pires. A parturiente tem um histórico de diabetes alta e veio de Itumbiara para dar à luz. Roberta conta que a cunhada recebeu alimentação errada, que não poderia ser ministrada a um diabético que necessita de dieta especial e isso acelerou o trabalho de parto. “Minha cunhada ficou das seis da tarde de um dia até as cinco da manhã de outro em trabalho de parto e quando chegou a hora de parir, ela já não tinha mais forças por causa da hipoglicemia. O bebê foi prematuro e teve uma falta de oxigenação no cérebro que fez com que ela precisasse de ir para a UTI. A mãe está na UTI também, mas seu estado é estável, mas a criança está grave”, lamenta.
A reportagem ouviu uma médica que aguardava um táxi na porta. Ela só aceitou falar com a condição de anonimato, mas seu relato é comovente e comprova a situação crítica que vive a saúde pública. “Nós médicos somos muito cobrados, mais ninguém vê que estamos além dos nossos limites. Temos salários arrochados, condições mínimas de trabalho reduzidas ainda mais e turnos de trabalho que superam as justas jornadas. Estamos fazendo um esforço sobre-humano para dar conta do alto volume que recai sobre nossas costas”, frisa a profissional. Ela se desculpa por não falar mais e explica que se for identificada sofrerá sanções severas.
INVESTIGAÇÃO
O Ministério Público acompanha de perto a situação e traça um diagnóstico do que está acontecendo. A promotora de Justiça Villis Marra, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público, vistoriou unidades de saúde e já tem um panorama da complexidade dos casos, além de saber que aconteceram descuidos administrativos graves. Como é o caso do HMI e da Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, geridas pelo IGH. A desídia para com a estrutura precária, a falta de insumos e contas que não batem estão na mira do MP.
No Hospital de Doenças Tropicais, o HDT, gerido pelo Instituto Sócrates Guanaes, de Salvador, a situação é igualmente caótica, segundo o MP. A promotora Villis Marra tem relatórios que apontam pagamento de salários dos servidores em atraso, falta de material, de roupa de cama, roupa para pacientes e funcionários e até de alimentação para pacientes e funcionários. “A comida é horrível, com uma aparência horrível e fedida, como atestam relatórios de inspeção”. A diretora geral do HDT, Aline Oliveira, oficiou à promotora que realmente haviam serviços deficitários e que a ausência de pagamentos para a empresa Sanoli, que fornece alimentação, se deu em virtude “da insuficiência de recursos para quitação dos títulos”.
EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA PARADA
A situação é de preocupação também para as Organizações Sociais que fazem a gestão dos Institutos Tecnológicos de Goiás, os Itegos, anunciados como um modelo eficiente e eficaz administrativo pelo governo do Estado. Estranguladas pela falta de repasse de recursos às unidades gestoras não puderam fazer outra coisa senão reduzir significativamente as atividades. A OS Fundação Antares de Ensino e Pesquisa (Faespe) faz a gestão de unidades de excelência em municípios do interior, como o Itego Governador Otávio Lage, em Goianésia.
O superintendente de Planejamento da Faespe, Alexandre Morelli, ressalta que a dificuldade financeira fez com que fossem reduzidos uma série de serviços em primeiro plano e se persistir a falta de repasses teme pela suspensão de uma série de atividades vinculadas ao contrato de gestão. “Pretendemos manter o padrão de excelência nos cursos tecnológicos que ministramos, mas temos poucas reservas para prosseguir. Se não for regularizado o cumprimento dos repasses será uma situação crítica para administrarmos”, lamenta.
A OS Instituto Reger, que faz a gestão de Itegos e Cotecs em Catalão e Anápolis, já está no quinto mês com os repasses atrasados. Professores e servidores em Catalão fizeram greve e protestaram contra o atraso. Só não prosseguiram porque a direção mostrou transparência e diálogo com os servidores. Sônia Santos, a presidente, lamenta que a situação tenha chegado a esse ponto. “Fazer a gestão de uma rede de ensino tecnológico demanda profissionais qualificados, que precisam remuneração condizente e acompanhamento constante, porque lidamos com a inovação tecnológica. Sem os recursos que foram pactuados no contrato não é possível trabalhar de forma satisfatória”, comenta. Reger e as outras OSs apresentaram números de excelência no cumprimento das metas estabelecidas nos contratos. “Nosso serviço está sendo feito com total zelo, precisamos apenas dos recursos para avançarmos mais”.
O Centro de Educação Continuada (Cegecon) é a OS que faz a gestão de unidades de ensino tecnológico de excelência, como o magistral Instituto de Artes Basileu França, um colosso de mais de 5.000 alunos nas mais variadas vertentes, como orquestra, coral, artes cênicas, artes visuais e até arte circense. Sem verbas repassadas pelo estado o trabalho de professores e servidores administrativos fica sendo quase que voluntário. O diretor administrativo-financeiro do Cegecon, Mauro Reis, frisa que o descompasso econômico provocado pela falta de repasses compromete toda a excelência do serviço buscado. “Precisamos de regularidade nos repasses e garantia de que vamos pagar servidores, fornecedores, prestadores de serviço e os tributos para mantermos a linha sempre crescente na educação que ministramos”.
Outra OS que cumpriu metas na gestão de Itegos de excelência, como o Luiz Rassi, em Aparecida de Goiânia e Sebastião Siqueira, que dá cursos gratuitos de técnico em enfermagem e segurança no trabalho, é o Centro de Soluções em Tecnologia e Educação (Centeduc). O presidente, Fernando Sobral, é incisivo na dificuldade provocada pela falta de repasses. “Simplesmente não podemos funcionar sem que seja cumprida essa parte do Estado. Mantemos o serviço de alto nível que nos credenciou junto ao Estado e esperamos apenas o cumprimento do que foi pactuado para darmos prosseguimento”, finaliza.
Até a comida para os acompanhantes está sendo regrada e material de limpeza foi reduzido à metade, como nos contam os funcionários de serviços gerais” Relato de uma mãe de paciente
As dívidas da Secretaria Estadual de Saúde para com as Organizações Sociais já ultrapassou a astronômica cifra de R$ 283 milhões” Lá dentro está uma imundície só, com muita sujeira nos banheiros, quartos e corredores e não há nem ventilação na enfermaria, e nesse tempo de calor fica insuportável” Madalena Paiva, paciente do Materno Infantil Simplesmente não podemos funcionar sem que seja cumprida essa parte do Estado” Prof. Fernando Sobral, diretor presidente do Centeduc]]>