Cotidiano

Anciã com microcefalia

Diário da Manhã

Publicado em 15 de março de 2016 às 23:29 | Atualizado há 2 semanas

 

Maria Jaci preza pela organização. Infalivelmente ao acordar começa a organizar sua cama. Com seu jeito vaidoso, se prepara para o início de um novo dia. Ela toma banho e se prepara para tomar o café da manhã. Passa um batom, coloca um colar e começa a bordar, um dos seus maiores hobbies. Maria Jaci tem setenta anos e tem microcefalia, com nível de acometimento considerado moderado, leva uma vida independente. A deficiência virou assunto mais comentando na área de saúde, desde o surto de microcefalia no país, associado ao Zika vírus. É possível ter uma vida normal?

Na Região Metropolitana de Goiânia, cerca de 26 quilômetros da Capital, em Trindade, a Vila São Cottolengo abriga e cuida diariamente de sete pacientes portadores de microcefalia, malformação craniana em que o perímetro cefálico é menor que o normal. A doença possui variações do tipo e a gravidade da sequela caso a caso. Maria Jaci é paciente interna da instituição filantrópica.

O médico Anderson Vieira Carvalho, em entrevista ao DM, explica que a microcefalia é um termo que significa cabeça pequena e os principais fatores são: lesão das células do cérebro durante o desenvolvimento do bebê na gestação ou por lesão da parte óssea da criança que se calcificam no período da infância. O médico explica que as crianças nascem com os ossos do cérebro descolados ou abertos, o espaço entre esses ossos é chamado vulgarmente de moleira.

“Quando a criança tem a microcefalia dentro do útero da mãe, por uma série de fatores esses ossos se calcificam e no desenvolver da criança, esses ossos não permitem que o cérebro desenvolva. Entre esses dois fatores, o primeiro seria lesão direta do zika vírus ou de qualquer outro vírus, bactéria ou agente externo que possa lesar o sistema nervoso da criança intra útero ou a lesão que vai fazer a calcificação desses ossos, mesmo que tenha o sistema nervoso normal durante o desenvolvimento depois do nascimento, ela não vai conseguir desenvolver o cérebro da forma correta e aí ela vai ter todos os déficits. Esses déficits vão ser piores quanto mais cedo a gestante for acometida na gestação”, explica Anderson Carvalho e afirma que a microcefalia intra útero é geralmente mais grave.

Questionado sobre quais as principais causas da microcefalia, o médico classifica a intoxicação por álcool, cigarro, drogas, vírus e infecções gerado pela rubéola, zika vírus entre outros. Além disso, o médico afirma que pode ser associada em algumas causas genéticas por má formação. “Os três primeiros meses da gravidez são considerados mais críticos, pois é justamente nesse período que o sistema nervoso se forma. Uma gestante que seja acometida pela zika vírus no sexto mês de gestação, teoricamente vai ter menos risco do que uma gestante que tiver no segundo mês”, conclui Anderson.

As causas possíveis após o parto, o médico cita como exemplo a meningite, pois é quando a criança teve todo desenvolvimento do sistema nervoso durante a gestação e sem alteração, porém nos primeiros anos apresentou uma meningite grave que destruiu as células do cérebro fazendo com que ele não desenvolva mais, pois é formado ao longo da gestação até o fim da infância. Essa parte do cérebro é chamada de córtex pré-frontal e trabalha o raciocínio, logica, adaptação ao ambiente externo, ela se desenvolve no inicio da infância ate o final da infância, quando inicia a adolescência.

Para verificar se a criança tem microcefalia, um dos parâmetros que é verificado é a circunferência do crânio, de acordo com os novos critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde todos os recém-nascidos que tiverem a circunferência do crânio menor que 32 centímetros, antes o critério era 33 centímetros. O médico alerta que esse critério é desde que o nascimento dessa criança nasce a termo, ou seja, em tempo considerado normal.

Criança com limitações

Caso seja constatada a microcefalia, o médico Anderson Carvalho esclarece que a criança pode ter diversos tipos de limitação. “Só que existe um grande estigma na sociedade que nós temos que diferenciar uma criança com limitações e uma criança limitada. É o que acontece na Vila São Cottolengo em que é trabalhado os diversos estímulos com ajuda de fisioterapeuta, pedagogo, terapeuta ocupacional, psicólogo, enfermeiro, médico e fonoaudiólogo que vão fazer com que as partes preservadas do sistema nervoso dessa criança possa suprir o que ela perdeu durante a gestação”.

A paciente interna Maria Jaci é totalmente independente com atividade de vida diária, pois toma banho sozinha, se alimenta sozinha, arruma a cama, muda o canal da televisão sozinha, pede a comida que quer, fala quando está passando mal, faz artesanato e tem uma vida bastante tranquila. Maria tem suas limitações, mas dentro dessas limitações ela é totalmente independente.

A enfermeira Josiane Gomes da Silva Cabral,  acompanha Maria Jaci e conta que ela é uma paciente totalmente tranquila e participa de todas atividades oferecidas. “Super tranquila, participativa, conversa com todos, alegre e não tem dificuldade em relacionar. Uma paciente nota dez!”. Ela explica que no caso da Maria Jaci, os estímulos que ela recebe de diversas terapias ajuda no seu desenvolvimento, sendo assim a microcefalia não prejudica na rotina diária.

Diferentemente da irmã de Maria Jaci, também portadora de microcefalia veio a falecer ano passado devido complicações, como infecção pulmonar. Ela era parcialmente dependente, pois não conseguia comer sozinha, mas vestia roupa e andava sozinha.

O médico Anderson Carvalho que atendia as duas irmãs, relata que no caso dela o nível de acometimento de microcefalia era bem maior. “Ela tinha comprometimento na fala, locomoção e necessitava de mais cuidados que a irmã Maria Jaci”, conta o médico. Porém, não se sabe como as irmãs foram acometidas, ambas chegaram já adultas na Vila São Cottolengo e provavelmente pelo grau de microcefalia o médico acredita que elas foram acometidas pela microcefalia na gestação, intra útero, podendo sugerir que a mãe tenha tido infecção durante a gestação.

Maria Jaci com o médico Anderson Carvalho, em que afirma que a paciente é totalmente independente com atividade de vida diária. (Fernanda Laune)

Sabedoria

“A idade mental do paciente a grosso modo poderia se correlacionar o que a gente chama no saber popular de sabedoria. A idade mental não condiz com a idade cronológica, independente se o paciente tem limitação física, neurológica ou de estímulo. Quanto mais cedo dermos estímulo para uma criança, mais ela vai desenvolver e mais mecanismos e ferramentas ela vai ter durante o seu desenvolvimento e idade adulta. Ou seja, vai ter uma capacidade maior de aprender conteúdos relacionados a escola, universidade, trabalho, novos idiomas, se adaptar a situações estressantes, se adaptar a ansiedade, uma série de fatores que leva a disfunção”, explica o médico.

De acordo com Anderson, quando uma criança tem estímulos bem consolidados na fase inicial. que seria a fase de maior aprendizado, ela tende a ter uma idade mental maior que a sua idade cronológica, pois vai ser uma criança que vai ter mais responsabilidade, consciência de civilidade, saber que o coletivo é mais importante que o individual. Podendo considerar que essa pessoa que tem a idade cronológica igual a mental ou idade cronológica menor que a mental.

O médico classifica que no caso da microcefalia ou qualquer doença que atinge o sistema nervoso central, a principal parte afetada do sistema nervoso é a última que se desenvolve. Com isso, dificilmente a idade mental vai acompanhar a cronológica. “É o que acontece com a Maria Jaci, ela tem o linguajar, comportamento e vestimento de uma criança. Esse tipo de paciente geralmente quanto maior for o nível de acometimento, menor vai ser a idade mental”, comenta o médico Anderson.

Por isso, a importância do profissional da saúde para avaliar o que é mais importante para o paciente, como as noções básicas para depois trabalhar as limitações. O médico explica que essas limitações vão fazer com que essa idade mental seja sempre aquém da idade mental de um paciente que não tem nenhum tipo de limitação. “Mas, isso não quer dizer que a idade mental necessariamente esteja atrelada a doença neurológica ou qualquer tipo de limitação”.

Carvalho cita que existem muitos casos de pessoas que foram perdidas e abandonadas, como por exemplo na África que fugiram para a floresta e conviveram muitos anos com lobos e cachorros, portanto elas não tinham idade mental nenhuma relacionada com seres humanos e comportamento completamente igual aos animais com quais eles conviviam, pois não tiveram estímulos condizentes a nossa civilização.

Reabilitação

A reabilitação é fundamental para os pacientes de microcefalia. “No caso das crianças quando mais cedo for feito o trabalho de reabilitação, trabalhos específicos para cada tipo de limitação que ela tenha, menores vão ser as limitações causadas pela doença. É claro que existem desde as limitações graves quando a criança não vai conseguir receber estímulos, pois vai ser totalmente dependente de cuidados, até mesmo acamada. Até limitações moderadas e leves, em que estímulos vão ser cruciais no desenvolvimento da criança”, enfatiza Anderson Carvalho.

Na maioria do casos, o médico revela que dificilmente o paciente terá apenas microcefalia, pois geralmente vem acompanhada de má formação óssea, má formação muscular e no desenvolvimento de outras partes do sistema nervoso. “Esses pacientes podem ter suscetibilidade à infecções, quedas, fraturas, dificuldades em relacionamento emocional, por isso deve deve ter uma série de cuidados”, conclui.

Casos de microcefalia

A microcefalia gerou o alerta para a população brasileira desde novembro do ano passado, através de decreto o Ministério da Saúde declarou estado de emergência em saúde, em virtude do crescimento de casos da doença no país. Atualmente, são 4.231 casos suspeitos de microcefalia e outras alterações do sistema nervoso, sugestivas de infecção congênita.

Entre os casos analisados pelo Ministério da Saúde, 745 foram confirmados e 1.182 descartados. Desde o início da investigação, foram notificados 6.158 casos suspeitos de microcefalia.

Os 745 casos confirmados ocorreram em 282 municípios, localizados em 18 unidades da federação: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pará, Rondônia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Os 1.182 casos descartados foram classificados por apresentarem exames normais, ou apresentarem microcefalias e/ou alterações no sistema nervoso central por causas não infeciosas.

Os 6.158 casos notificados, desde o início das investigações, estão distribuídos em 1.179 municípios, de todas as regiões do país. A maioria foi registrada na região Nordeste (4.827 casos, o que corresponde a 80%), sendo o Estado de Pernambuco é a Unidade da federação com o maior número de casos que ainda estão sendo investigados (1.214). Em seguida, estão a Bahia (609), Paraíba (447), Rio de Janeiro (289), Rio Grande do Norte (278) e Ceará (252).

Até o dia 5 de março, foram registrados 157 óbitos suspeitos de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central após o parto ou durante a gestação (abortamento ou natimorto). Destes, 37 foram confirmados para microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central. Outros 102 continuam em investigação e 18 foram descartados.

Até o momento, sinalizaram ao Ministério da Saúde a circulação autóctone do vírus Zika 22 unidades da federação: Goiás, Minas Gerais, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Roraima, Amazonas, Pará, Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.


 

 

Projeto de lei prevê aumento de pena para aborto em caso de microcefalia

 

O projeto prevê o aumento da pena em um terço até a metade quando o aborto for cometido em razão da microcefalia

Autor do projeto do Estatuto da Família, já aprovado na Câmara dos Deputados, o deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE) apresentou outra proposta polêmica à Casa. O projeto aumenta a pena no caso de aborto cometido em razão da microcefalia ou outra anomalia do feto.

Para o deputado, não é o aborto que resolve os problemas da sociedade, mas sim o Estado dar condições para uma vida digna. “Sou autor do projeto Estatuto da Família, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados. A intenção foi justamente criar um instrumento para as famílias poderem cobrar e ter acesso às políticas públicas. Quando uma criança nasce tem direito à saúde, educação, segurança, alimentação. Está na Constituição”, diz Ferreira.

O Projeto de Lei 4.396/2016, que altera o artigo 127 do Código Penal, prevê o aumento da pena em um terço até a metade quando o aborto for cometido em razão da microcefalia ou qualquer outra anomalia do feto, provocado ou consentido pela própria gestante ou por terceiros, com ou sem o aval da mulher.

A apresentação do projeto, segundo Ferreira, é uma reação “à tentativa de um movimento feminista, que quer se aproveitar de um momento dramático e de pânico das famílias, para retomar a defesa do aborto em nosso país”. A circulação do vírus Zika no Brasil e a associação da infecção em gestantes a casos de microcefalia em bebês reacendeu no país o debate sobre o aborto. Mas, para o deputado, a melhor forma de evitar o surto de microcefalia é combater o mosquito Aedes aegypti com medidas efetivas e criar mecanismos de prevenção junto à sociedade.

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