Cotidiano

Atacando as raízes da violência

Redação

Publicado em 7 de janeiro de 2017 às 01:18 | Atualizado há 1 semana

Leana S. Wen e M. Cooper Lloyd

Poucos problemas sociais mobilizam tanto a opinião pública como a criminalidade e a violência. Não é para menos. Este é um daqueles problemas que afeta toda a população, independentemente de classe, raça, credo religioso, sexo ou estado civil. São conseqüências que se refletem tanto no imaginário cotidiano das pessoas como nas cifras extraordinárias representadas pelos custos diretos da criminalidade violenta. Receosas de serem vítimas de violência, elas adotam precauções e comportamentos defensivos na forma de seguros, sistemas de segurança eletrônicos, cães de guarda, segurança privada, grades e muros altos, alarmes, etc. Já se disse que o presídio tornou-se modelo de qualidade residencial no Brasil.

Nos Estados Unidos, de acordo com o National Crime Victimization Survey, apenas durante o ano de 1992, calcula-se que vítimas de crimes perderam 17,6 bilhões de dólares em custos diretos referentes a furtos, arrombamentos, assaltos, estupros e despesas médicas imediatas. No Brasil, estimam-se os gastos anuais com segurança pública no Município do Rio de Janeiro em cerca de 2 bilhões e meio, o equivalente a 5% do PIB municipal (Piquet Carneiros et alii, 1998).

Neste cálculo, são computados gastos com atendimento médico, anos perdidos pela morte ou incapacidade prematura, gastos com o sistema de segurança e justiça, além de transferências sociais na forma de seguros. É uma estimativa conservadora, pois não leva em conta os gastos com segurança privada, bem como os efeitos da violência sobre os investimentos privados. Se fossem utilizados os estimadores hedônicos para avaliar o peso da segurança nos valores do uso da propriedade, tais como a residência ou o valor do aluguel destas residências conforme sua localização geográfica, estes custos aumentariam ainda mais. Em Minas Gerais, durante o ano de 1995, o governo do estado gastou R$ 940 milhões com seu sistema de segurança, o que equivale a 10% do orçamento total realizado durante este ano (Gonçalves, 1996). São cifras suficientes para amenizarmos outros problemas em setores igualmente estratégicos, tais como saúde, educação ou habitação.

Em Baltimore, a violência tornou-se uma ocorrência quase diária. Em 2015, por exemplo, esta cidade de mais de 620 mil habitantes viu 344 homicídios. Mas, ao abordar a violência como um problema de saúde pública, Baltimore está criando um novo modelo de como manter os cidadãos seguros.

Em 2007, a cidade lançou o programa Ruas Seguras, nos moldes do programa Cure a Violência, de Chicago. Visando jovens de alto risco, o Ruas Seguras usa “interruptores de violência” para mediar conflitos antes que eles tenham a chance de degringolar em violência. Os próprios interruptores muitas vezes foram presos no passado, o que dá credibilidade e experiência ao seu trabalho.

Em 2014, colaboradores do Ruas Seguras tiveram 15 mil encontros com o público e mediaram 880 conflitos, mais de 80% dos quais provavelmente ou muito provavelmente resultariam em violência armada. Três de quatro locais do programa registraram uma considerável redução em violência armada; homicídios caíram 56% em um bairro e 26% em outro. Pesquisas revelam que integrantes do programa se mostraram bem menos propensos a achar o uso de uma arma aceitável para resolver um conflito, em comparação com seus pares em bairros que não tinham o programa.

Este ano, o Ruas Seguras se expandirá para vários hospitais de Baltimore, onde interruptores ajudarão vítimas de violência — que muitas vezes também são participantes de conflitos perigosos — a lidar com o trauma que experimentaram e a nortear seu retorno a suas comunidades. Embora os estudos até agora sejam pequenos, evidências sugerem que pessoas envolvidas neste tipo de programa são três vezes menos propensas de serem presas por um crime violento no futuro.

Mas os esforços de Baltimore vão ainda mais longe ao lidar com fatores que contribuem para conflitos, começando com um dos principais: o vício. Mais de 80% dos presos usaram substâncias ilegais, e mais de 30% estavam sob efeito delas durante os delitos.

Ano passado, Baltimore liderou uma das campanhas mais agressivas de prevenção de overdoses de opiáceos do país. Em outubro de 2015, o Departamento Municipal de Saúde local declarou overdoses uma emergência de saúde pública e liberou uma prescrição abrangente e irrestrita para naloxona (a droga salva-vidas que reverte os efeitos letais de opiáceos) para cada habitante. O Departamento de Saúde treinou mais de oito mil pessoas para usarem naloxona em 2015 — em prisões, habita-ções coletivas, abrigos de ônibus, esquinas e mercados.

O foco na prevenção soma-se a um compromisso para melhorar o acesso a serviços de qualidade, sob demanda, para tratamentos para abuso de drogas e suporte de recuperação em longo prazo. Uma terapia de recuperação requer tratamento assistido com medicação, apoio psicológico e os chamados serviços envolventes, que abrangem professores, o clero e outros membros da comunidade no suporte a toxicômanos. O Departamento de Saúde criou uma linha telefônica direta que funciona 24 horas, todos os dias, conectando pessoas a tratamentos de saúde mental e abuso de substâncias químicas. E também lançou a campanha de educação pública “Não morra” para instruir cidadãos sobre overdoses.

Mas intervenções preventivas não se limitam à dependência em si; as raízes da violência muitas vezes começam mais cedo, em desigualdades presentes desde a infância e até desde o parto. Há uma década, a saúde infantil da cidade figurava entre as piores do país, com enormes disparidades entre negros e brancos. Em resposta, o Departamento de Saúde comandou a criação de uma iniciativa chamada B-mais para bebês saudáveis, que oferece serviços de apoio a mães, e envia enfermeiros e consultores em visitas domiciliares a famílias de baixa renda. Os resultados foram extraordinários: em apenas sete anos, a mortalidade infantil diminuiu 28%, caindo ao menor patamar na história, a taxa de natalidade entre adolescentes caiu 36%, e a disparidade entre mortes infantis negras e brancas diminuiu quase 40%. A violência não acontece de forma aleatória ou isolada. É uma consequência trágica e final de desigualdades que aumentam continuamente se não forem abordadas. Ao tratá-la como uma questão de saúde pública, ela pode ser prevenida — e, talvez um dia, até ser curada.

 

 

Políticas de segurança no Brasil

Cada caso de violência precisa ser individualizado, traçando um perfil da comunidade e analisado as variáveis. No caso de Baltimore, o histórico de violência é antigo. Eles tentam várias soluções, e algumas dão mais certo que outras, mas isso não significa que o que funcione lá, irá funcionar aqui.

Mas fica claro com esse e outros exemplos, que não é só com polícia que se combate a violência. Nenhuma ação de Estado surte mais efeito do que a pensada em um “processo”. Como o  processo civilizador, que ocorreu na Europa na virada dos séculos XVII para XVIII. A questão central, e que deve ser vista como exemplo no caso de Baltimore, é como enxergar o problema de segurança.

“Crime, acidentes de trânsito ou delinqüência de menores são problemas sociais, mas como eles se tornam problemas públicos? Isto é algo que envolve uma atuação mais moralmente empreendedora por parte do Estado, além do envolvimento de diversas instituições às quais cabe a responsabilidade de apresentar múltiplas possibilidades de resolução. Assim, responder à questão do crime como um problema público remete-nos à discussão acerca das dimensões culturais e estruturais envolvidas. Isto implica necessariamente atribuirmos responsabilidade a quem cabe resolvê-lo: significa decidir quem é seu “proprietário” explica Cláudio Beato, professor doutor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, em seu artigo “Políticas públicas de segurança e a questão policial”.

Sobre políticas de Segurança Pública, Cláudio acredita que elas devem se pautar por metas claras e definidas a serem alcançadas através de medidas confiáveis para a avaliação desses objetivos e pelos meios disponíveis para sua realização de forma democrática. “A condição desejável a ser perseguida pode consistir na redução de alguns tipos de crimes específicos a um custo razoável para sua implementação. É possível pensarmos numa redução não de todos os tipos de crime mas, por exemplo, em uma redução das taxas de roubo de veículos à mão armada, ou de assaltos a caminhões de carga.” completa. Se usarmos o caso de Baltimore, o problema específico que o programa “Ruas Seguras” tentava resolver era dos homicídios por arma de fogo.

Programas

Cláudio acredita que uma das razões do fracasso e da inexistência de políticas nessa área no Brasil reside num plano puramente cognitivo, em duas perspectivas diferentes do problema. “A proposição de políticas públicas de segurança, no Brasil, consiste num movimento pendular, oscilando entre a reforma social e a dissuasão individual. A idéia da reforma decorre da crença de que o crime resulta de fatores socioeconômicos que bloqueiam o acesso a meios legítimos de se ganhar a vida.”

Para o professor, essa deterioração das condições de vida traduz-se no acesso restrito de alguns setores da população a oportunidades no mercado de trabalho e de bens e serviços, assim como na má socialização a que são submetidos nos âmbitos familiar, escolar e na convivência com subgrupos desviantes. “Conseqüentemente, propostas de controle da criminalidade passam inevitavelmente tanto por reformas sociais de profundidade como por reformas individuais voltadas a reeducar e ressocializar criminosos para o convívio em sociedade. A par das políticas convencionais de geração de empregos e combate à fome e à miséria, ações de cunho assistencialista visariam minimizar os efeitos mais imediatos da carência, além de incutir em jovens candidatos potenciais ao crime novos valores através da educação, da prática de esportes, do ensino profissionalizante e do aprendizado de artes e na convivência pacífica e harmoniosa com seus semelhantes.”

De outro lado, é igualmente forte a crença de que a criminalidade encontra condições ideais de florescimento quando é baixa a disciplina individual e o respeito a normas sociais. “Conseqüentemente, políticas de segurança pública enfatizam a necessidade de uma atuação mais decisiva do Poder Judiciário e das instâncias de controle social. Isto significa legislações mais duras e maior policiamento ostensivo, de forma tal que as punições dos delitos sejam rápidas, certas e severas. Se necessário, até mesmo a atuação das Forças Armadas é requisitada, merecendo o aplauso da população. Não se descarta, ainda, o efeito dissuasório que soluções finais, como a pena de morte, teriam sobre o comportamento criminoso. O argumento é que não se trata de vingança, mas exemplo para que homens de bem não caiam em tentação.” argumenta.

Apesar de acusadas de serem excludentes, Cláudio acredita que as políticas voltadas para a Polícia e a “repressão”, tem seu papel no processo. “Um exame mais atento mostra que tais modelos e teorias não são necessariamente excludentes, mas complementares. Um modelo de segurança que se preocupe com a contenção e controle do Estado em relação ao direito dos cidadãos não pode furtar-se à constatação de que segurança é igualmente um direito humano — aliás, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por outro lado, o sistema de Justiça Criminal em geral e a atuação policial em particular serão tanto mais eficientes no exercício de suas funções de dissuasão quanto mais amparados pelas pessoas e comunidades nas quais atuam.”

Discursos inflamados dão suporte a ambas as versões, cujo grau de combustão é tanto maior quanto mais aferrados a questões de princípio ideológico. “ Do ponto de vista da modificação de valores das pessoas, reconhece-se hoje como isso é extremamente difícil mediante políticas públicas. Os educadores de rua e profissionais que lidam com menores infratores sabem muito bem como é árdua essa tarefa com meninos de rua.”

Para lidar de fato com a criminalidade, Cláudio acredita que o problema só seria resolvido se os governos estudassem e colocassem seus olhos nas regiões mais violentas e problemáticas, como o programa de Baltimore o fez. “Isto não significa que o Estado devesse paralisar suas atividades nessas áreas em favor do atendimento de populações e áreas assoladas pela criminalidade violenta, mas simplesmente reconhecer que o atendimento nessas áreas é realmente prioritário. O fenômeno da criminalidade urbana violenta não é distribuído aleatoriamente pela área urbana, mas está localizado em alguns poucos grupos e locais” elucida.

Sobre programas que tentam educar, criar um senso de ética e moldar a cultura de uma região ou das pessoas, como é o caso do programa “Ruas Seguras”, Cláudio não é um apoiador. “ Não é necessário, para se controlar a criminalidade, reformar a personalidade das pessoas. Não acreditamos que a mudança de valores das pessoas deva ser objeto de políticas governamentais. O que deve ser oferecido às pessoas são orientações acerca das conseqüências de suas ações, tanto em direção ao crime como em relação ao não-crime. Contando que o estado forneça as ferramentas para que as pessoas possam seguir outros caminhos que não o crime”, conclui.

 

Saiba mais

 

Como o “Ruas Seguras” funciona?

O Departamento de Saúde de Baltimore fundou uma organização comunitária, para implementar o modelo do “Safe Streets” em vizinhanças escolhidas.  O “Safe Streets” entrega uma mensagem única, de que a violência não é mais aceitável na organização de uma comunidade e na educação pública. O programa também incorpora um forte componente de divulgação, com trabalhadores das proximidades dos bairros, que se conectam com juventude de alto risco e jovens adultos, durante as noites e finais de semana para difundir eventos e vinculá-los, de alguma forma, a serviços. Safe Streets é uma ferramenta que as comunidades podem usar para restaurar a segurança de suas ruas e fortalecer os laços comunitários através da mobilização da comunidade, divulgação, educação pública, fé e envolvimento da comunidade de justiça criminal.

Qual é o papel do participante?

Os trabalhadores de divulgação desempenham um papel importante na redução da violência. Eles são indivíduos familiarizados com a comunidade em que trabalham. Muitos têm um histórico de envolvimento com “vida nas ruas.” Este conhecimento em primeira mão é imperativo para o seu sucesso. Com o resultado de suas próprias experiências de vida, eles são mais capazes de envolver os indivíduos de alto risco que são o foco de seu trabalho.

Os trabalhadores de extensão estão trabalhando na comunidade durante as horas em que, de acordo com as estatísticas, a violência é mais provável de ser cometida. Eles pesquisam a área, conhecendo os moradores e os indivíduos que estão em maior risco de se tornar um perpetrador ou vítima de tiroteios e assassinatos. É responsabilidade do trabalhador manter-se informado de tudo o que está acontecendo dentro da comunidade.

Trabalhadores de extensão estão lá para intervir em situações potencialmente violentas para reduzir a chance de que um tiroteio ocorra. Eles têm a capacidade de transportar um número de casos de 15-20 participantes, e eles ajudarão cada participante a mudar sua vida. Ao vincular os participantes e suas famílias às oportunidades educacionais, treinamento e assistência para o emprego, serviços de saúde mental, tratamento de abuso de substâncias, etc., os trabalhadores de proximidade ajudam a oferecer opções de indivíduos além de uma vida de crime e violência. Sua presença pura na comunidade enfraquece a atratividade e o “romance” das gangues e a cultura de vida de rua que muitas vezes perpetua a violência.

 

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