Cotidiano

Goiás continua violento

Diário da Manhã

Publicado em 11 de março de 2018 às 03:14 | Atualizado há 2 semanas

Uma pesquisa realizada pela ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal pode deixar os goianos aparentemente felizes e descuidados nas ruas: nenhuma cidade do estado apareceu na lista das 50 mais violentas do mundo di­vulgada na última semana.

Mas é preciso ficar atento: a ONG, que não repercute nos es­tudos acadêmicos de violência do Brasil, mas apenas na imprensa, fez um levantamento das cidades com mais de 300 mil habitantes a par­tir de dados derivados e não con­firmados pela mesma base de da­dos utilizada no Brasil. Portanto, nenhum município do Entorno do Distrito Federal, por exemplo, entra na lista dos mexicanos. Justamente o conjunto de cidades com maior índice de violência de Goiás e do Brasil nos últimos dez anos.

O recorte da ONG atendeu inte­resses locais e sofreu severas críticas acadêmicas e de pesquisadores. O uso político da violência pública in­teressa, sobretudo, aos órgãos ofi­ciais e governos, já que a notícia de redução de homicídios daria a en­tender que existe uma melhor ges­tão do que no caso de aumento de mortes. Mas é um equívoco facil­mente desmascarado.

Os estudos de violência no Brasil são realizados principalmente pelos núcleos universitários que surgiram nas principais universidades fede­rais do país nas duas últimas déca­das. E a metodologia usada por estes grupos diz respeito ao sistema Da­tasus, que registra no Tabnet a cau­sa de todas as mortes ocorridas no país por meio de atestados de óbito.

A principal artimanha de atua­ção dos agentes públicos nos da­dos – tendo em vista reduzir os da­dos de homicídio – ocorre antes da entrada do corpo no Instituto Mé­dico Legal (IML).

Busca-se, por exemplo, calcular as causas para homicídios culposos (como acidentes de carro) e dolo­sos (intencionais), suicídios e cau­sas a esclarecer, daí surgir uma ou­tra taxa – a de homicídios ocultos, essencial para compreender a sub­notificação que ocorre nos estados.

As causas externas (compiladas na CID-10) trata o homicídio como lesão provocada intencionalmen­te, espécies de “agressões” (X85 a Y09) ou “Intervenções legais” (Y35 a Y36). Estão inclusos, logo, agressões por arma de fogo (X93-X95), agres­sões por instrumento perfurocor­tante (X99) e outras manifestações de violências específicas.

Já as intervenções legais (Y35) incluem traumatismos realizados pelos agentes da lei, caso de milita­res e policiais. Nesta modalidade, a morte ocorre após a prisão, enfren­tamento ou tentativa de detenção.

Um dos exemplos desta espécie de estudo é o relatório final do pro­jeto “Homicídios no Brasil”, do Mi­nistério da Justiça, de 2016. Nele, foi utilizado corretamente o Siste­ma de Informações de Mortalida­de (SIM) – Datasus – e dados de elaboração própria para entender a eficácia de programas de redu­ção de homicídios em Minas Ge­rais e Pernambuco.

MANIPULAÇÃO

No estado atual dos estudos, devido a grande possibilidade de manipulação destes dados, as en­tidades que realizam pesquisas aca­dêmicas – de amplitude temporal maior e de grande infusão – têm optado por cruzar dados e realizar checagens dobradas, se debruçado em outras modalidades de pesqui­sa, como os estudos quantitativos, de amostragem e probabilidade.

Outra mudança de tendência: é cada vez menor também a ten­tativa de caracterizar se uma ci­dade é mais ou menos violenta apenas pela taxa de homicídios – um dentre mais de duzentos ti­pos penais que pode revelar os bastidores da violência.

É neste sentido que os estudos de violência e saúde coletiva, além de representações, têm ampliado sua importância para a interpreta­ção da realidade social, dando um novo perfil às investigações.

“A história dos homicídios no Brasil nas últimas três décadas pos­sui uma grande lacuna ocasionada pela inexistência de séries de da­dos absolutamente cruciais para a análise dos eventos criminais. Por exemplo, não conhecemos qual­quer trabalho publicado que utilize na análise empírica (relativa às dé­cadas de oitenta e noventa no país) séries temporais sobre: efetivo poli­cial; taxas de encarceramento; efeti­vo da segurança privada; consumo de drogas ilícitas e de álcool; e pre­valência de armas de fogo”, diz Da­niel Cerqueira, do Instituo de Pes­quisa Econômica e Aplicada (Ipea).

Ao lado de Rodrigo Soares e João Manoel Pinho de Mello, Cer­queira alerta que é muito recente a base de dados para estudos so­bre violência. Ele ignora dados co­letados pelas policias, justamen­te por serem informações que não passaram pelo crivo do Poder Ju­diciário ou pelas mãos de um mé­dico legista, com capacidade de aferir a causa da morte.

Ao estudar de forma pioneira dados das décadas de 1980 a 2010, ele cita como fontes confiáveis ou que devem ser cotejadas nas sé­ries estatísticas apenas sete fontes: Censos Populacionais do IBGE; Pesquisas Nacionais por Amos­tra de Domicílios do IBGE; Anuá­rios Estatísticos do Brasil, também do IBGE; informações do Depar­tamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça (DEPEN/ MJ); Informações de Execução Or­çamentária da Secretaria do Te­souro Nacional (STN) do Ministé­rio da Fazenda; Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do Mi­nistério do Trabalho e Emprego e um dos mais usados, o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde.

“Estas pesquisas, a partir de da­dos concretos e não compilados ao gosto do pesquisador original, é que podem ajudar a entender a crimina­lidade do país. São estudos longitu­dinais, de grande perspectiva. O que os governantes fazem é comparar um mês com outro, uma semana com a outra. Escolhem o melhor momento da pesquisa e fazem o re­corte de seu interesse. Por exemplo: de hora tal a hora tal ninguém mor­reu, logo taxa 100% de eficiência”, diz o advogado, geógrafo e pesqui­sador da Universidade Federal de Goiás (UFG) João Oliveira Campos.

Neste sentido, as pesquisas que realmente procuram dados concretos, principalmente o Sis­tema de Informação de Morta­lidade do Ministério da Saúde, é o Mapa da Violência, Atlas da Violência e os relatórios iniciais do Fórum Brasileiro de Seguran­ça Pública (FBSP), além dos es­tudos realizados principalmente pelas universidades em seus pro­gramas de mestrado e doutorado.

GOIÁS

De acordo com o “Atlas da Vio­lência”, divulgado em junho de 2017, um dos últimos levanta­mentos considerados pelos pes­quisadores, Goiás registra o quin­to maior índice de homicídios do Brasil. Os dados não são nada ani­madores: Goiás é o segundo em violência contra a mulher.

Os números seguem um pa­drão internacional, que não sepa­ra os municípios entre os que têm mais ou menos do que 300 mil ha­bitantes, como fez a ONG mexica­na que trouxe a “boa notícia” para os goianos. Trata-se da análise de homicídio por cem mil habitantes que é o padrão das Nações Unida­des e universalmente aceito nos estudos de saúde e violência.

Após um grande período de im­portância nos estudos de seguran­ça pública, o “Mapa da Violência, tocado pelo Instituto Sangari, que teve apoio em sua realização dos governos de Lula e Dilma Rousseff, deixou de realizar a divulgação de sua pesquisa. Já o Atlas passou a ser determinante, pois uniu esfor­ços do Fórum Brasileiro de Segu­rança Pública e do Instituto de Pes­quisa

 

CIDADES MAIS VIOLENTAS DO BRASIL

1 Altamira – PA

2 Lauro de Freitas – BA

3 N. Senhora do Socorro – SE

4 São José de Ribamar – MA

5 Simões Filho – BA

6 Maracanaú – CE

7 Teixeira de Freitas – BA

8 Piraquara – PR

9 Porto Seguro – BA

10 Cabo de Santo Agostinho – PE

11 Marabá -PA

12 Alvorada – RS

13 Fortaleza – CE

14 Barreiras – BA

15 Camaçari – BA

16 Marituba – PA

17 Almirante Tamandaré – PR

18 Alagoinhas – BA

19 Eunápolis – BA

20 Novo Gama – GO

21 Luziânia – GO

22 Santa Rita – PB

23 São Luís – MA

24 Senador Canedo – GO

25 Ananindeua – PA

26 Trindade – GO

27 Caucaia – CE

28 Igarassu – PE

29 Serra – ES

30 Feira de Santa – BA


Números são muitas vezes maiores

Em estudo realizado pelo Ipea, também a partir dos dados do Ministério da Saúde, chegou a um dado alarmante: o Brasil tem subnotificação de homicí­dios. Ou seja, acontecem mais do que aqueles que são divul­gados. Pelo menos 8.600 homi­cídios foram computados como causa indeterminada, segundo estudo de 2014.

Desta forma, explica Daniel Cerqueira, com bases em da­dos fechados em 2014, a taxa de homicídios no Brasil seria 18% maior do que se notifica e divul­ga–o que já incluiria várias ou­tras cidades brasileiras na lista da ONG mexicana, inclusive Goiâ­nia e Aparecida de Goiânia, hoje fora do computo mexicano.

Arthur Trindade, do Núcleo de Estudos sobre Violência da Universidade de Brasília (UnB), reitera que a investigação de ho­micídios na “maior pare dos es­tados é muito precária”. Se a mor­te é violenta, fica indeterminada. Ele afirma que a eficiência na in­vestigação é reduzida. Ele cita pesquisa realizada nas cidades do Entorno do Distrito Federal: em 2010, ocorreram 560 homi­cídios nas cidades mais próxi­mas de Brasília. E a Polícia Civil consegui investigar e elucidar apenas 37. Os outros ficaram em aberto.

Daniel Cerqueira questiona também a falta de eficiência. “Existem razões de cunhos institucionais e de aparelha­mento e treinamento. No Bra­sil, em muitos lugares, a primei­ra coisa que ocorre é desfazer a cena do incidente. E quem faz isso muitas vezes é o próprio policial, que deveria preser­var a cena”, diz Daniel Cer­queira, que diz ser comum no Brasil a informação fragmentada.

Cerqueira explica que o padrão de mortes indeterminadas nos outros países desenvolvidos é de 0,2%, muito perto de zero. O que é im­pensável para a realidade do Bra­sil atual, que chega a quase 9%. “A morte violenta indeterminada te­ria que ser um resíduo no Brasil, mas muitas vezes vira regra”.

COMPLEXIDADE

A questão mais comple­xa é exatamente perceber que a própria definição de homicí­dio pode mudar no decorrer do processo criminal – e que ocor­re bem depois do fechamento do laudo de local e cadavérico.

Portanto, qualquer estudo de homicídio, por mais mate­mático que seja, nunca é uma certeza absoluta, o que abre es­paço para o diálogo cada vez maior com outras frentes de pesquisa, como análises socio­lógicas qualitativas, pesquisas etnográficas e análises das re­presentações sociais.

Muitas vezes o legista não tem condições de afirmar com certe­za se o que tem em mãos é um homicídio ou sui­cídio, por exemplo. O ‘Diag­n ó s t i ­co dife­rencial do fato’, por exem­plo, é realiza­do pelo peri­to criminal, que assina o laudo. E ele pode entrar em desa­cordo com o laudo médico

Outro fator que foge da cate­gorização dos homicídios ocul­tos é o desaparecimento, muitas vezes relacionado com homicí­dios, mas que os pesquisadores não categorizam nesta espécie em análise.

Cerqueira diz que o Brasil ainda adota um sistema de “po­líticas baseadas em achismo” e não em diagnóstico. O pais já tem um grande banco de dados de estudos, mas precisa avançar em avaliação.

RELATÓRIO

Segundo o pesquisador, nos EUA, cada programa avalia em quanto o investimento de um dólar significa a manutenção de vidas.

O relatório Projeto Homicí­dios no Brasil, citado nesta re­portagem, procurou investi­gar os programas “Fique vivo” (Belo Horizonte) e Pacto pela Vida (Pernambuco), por exem­plo, procurou avançar nos estu­dos sobre a violência, dando o retorno de quantas vidas foram poupadas.

 

 

Insegurança se espalhada nas cidades

Em relação a 2014 e 2015, Goiás liderou os índices de violência em sua região com um aumento de 3,8% ao passo que Distrito Federal apresen­tou queda de -12%. Mato Gros­so do Sul apresenta, segundo a pesquisa científica, uma que­da de -9,4% e Mato Grosso re­gistrou – 11, 4%.

Para Goiás, um dado é preo­cupante: enquanto a taxa de ho­micídios do Brasil aumentou 10% de 2005 a 2015, dentre os goianos, no mesmo período, o aumento foi explosivo: 73, 6%.

Goiás tem vários municí­pios dentre os 30 mais violen­tos de acordo com o novo le­vantamento, caso de Senador Canedo, Trindade, Novo Gama e Luziânia – justamente cidades submetidas a uma forte relação econômica com cidades cen­trais, caso de Goiânia e Brasília.

 

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