Cotidiano

Intervenção questionada

Diário da Manhã

Publicado em 20 de fevereiro de 2018 às 01:19 | Atualizado há 1 semana

O Decreto de Intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro causou estra­nheza na comunidade científica, imprensa e redes sociais. Uma per­gunta percorreu o noticiário e blogs: afinal, qual motivo do governo fede­ral realizar uma intervenção no Rio de Janeiro se Estados como Goiás, Ceará e Bahia apresentam índices ainda maiores de homicídios?

Um dos temas mais complexos das ciências humanas, sociais e da saúde, a violência costuma ser tra­tada no Brasil de forma diferente da maioria dos países civilizados. No Brasil, os gestores atuam para agradar o sistema policial e polí­tico. E se esquece de consultar o segmento científico, que já conta com mais de 40 anos de tradições de estudos e pesquisas.

Especialistas em segurança pú­blica e estudos de violência e crimi­nalidade denunciam que sequer foram consultados pelo presiden­te para compor ou mesmo enten­derem o decreto. Para eles, a ação é mais uma vez irresponsável e po­lítica, já que não garante qualquer eficácia duradoura. Em outras pa­lavras, mais do mesmo que tem sido feito já há 30 anos.

Professora da Universidade Fe­deral Fluminense (UFF), do Depar­tamento de Segurança Pública da Faculdade de Direito, Jacqueline Muniz diz que a medida não fun­cionará e tende a agravar a situa­ção de violência no Estado, já que troca “seis por meia dúzia”.

A antropóloga Alba Zaluar – uma das principais pesquisado­ras da violência no Rio – diz que na melhor das hipóteses a inter­venção pode reforçar o poderio do PCC no Rio e nos demais estados do país. A conta é lógica: uma ten­dência de combate aos integrantes do Comando Vermelho, facção cri­minosa de origem carioca, tende a favorecer o restabelecimento do PCC no restante do País.

Por sua vez, Sérgio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos de Violência da Uni­versidade de São Paulo (USP), não acredita na solução dos problemas de violência no Rio de Janeiro por meio de um simples decreto. Para ele, falta um Plano Nacional de Se­gurança Pública.

“Esse cenário se repete em vários estados do país. Agora o Rio vem so­frendo desgastes em todos seus ser­viços púbicos e isso afeta a seguran­ça e uma política mínima de ordem pública. É preciso que se faça algo. Mas a intervenção desequilibra o pacto federativo e não se mostra cla­ro o que se fará daqui para frente”

Arthur Trindade, do Núcleo de Estudos sobre Violência (NEV) da Universidade de Brasília (UnB), en­xerga a medida com pouca efetivi­dade, mas diz que é preciso conhe­cer e entender o plano de ação do interventor antes de qualquer aná­lise mais completa. Para ele, como acredita Alba Zaluar, é possível até mesmo a fuga de criminosos para outros estados mais próximos.

Ele consegue avaliar os dois la­dos da moeda: “O general no caso de intervenção tem total autono­mia para alocar efetivos e fazer gas­tos. Não está subordinado aos po­líticos. Tem autonomia para abrir processos contra delegados e po­liciais. A novidade é que não passa pelo filtro da politicagem”. Este se­ria um lado positivo da intervenção.

Todavia, ele questiona uma possível intervenção desorienta­da: “O problema é que não tem um plano, que demoraria no mínimo seis meses para ser elaborado. E a intervenção dura dez meses. Será que ele vai repetir o ‘subir e des­cer’ do Exército em comunidades? Os resultados disso foram pífios”.

Para Trindade, as facções crimi­nosas podem migrar de lugar, mas isso não ajuda a acabar com a vio­lência no país. Ele também aposta em outra estratégia: a repetição de parte do planejamento das Olím­piadas. “Foi um sucesso em ter­mos de operação. Teve como re­sultado a sensação de segurança. Mas isso é suficiente? Não dá para abarcar dez meses”.

Uma vez decretada, e sem pos­sibilidade de voltar atrás, Trindade acredita que é possível extrair um le­gado mínimo da intervenção: o iní­cio da reestruturação das polícias.

Ele sugere que seja iniciado pelo sistema de controle interno, das ou­vidorias das polícias. A partir da in­tervenção será possível trocar co­mandantes de batalhão que contam com respaldo político e que estejam envolvidos com o crime organizado. Para ele, em dez meses não dá para fazer tudo, mas dá para iniciar algo.

Jacqueline Muniz é mais cética. Em um vídeo que viralizou, ela diz que está pessimista com a interven­ção. “Desde 1992, o Rio já experi­menta estas intervenções, opera­ções GLO (Garantia da Lei Ordem). Já gastou quase R$ 300 milhões na Maré, mas ninguém mostrou rela­tórios de eficácia e eficiência”.

Para ela, com a intervenção a si­tuação tende a piorar, pois abre es­paço para “operações teatrais, com rendimento político e eleitoral, em detrimento do arroz com feijão da segurança, que funciona em parte”.

GOIÁS

Parte dos especialistas demons­tra preocupação com as motiva­ções da intervenção. Alba Zaluar, por exemplo, cita a expressão do presidente Michel Temer (MDB­-SP) de que o “crime organizado tomou conta” do Rio e que já co­meça a ocorrer uma “metástase” para outros estados.

Ela lembra que o Rio é o 12º Es­tado da federação em índice de homicídios, uma situação mais confortável do que estados como Goiás ou Bahia, por exemplo. Qual motivo, então, de ocorrer uma in­tervenção apenas no Rio, onde o Exército já tem feito ações de Lei e Ordem desde 1992, diante da rea­lização da Eco 92?

Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV­-SP, em entrevista ao DM, afirma que a violência de hoje não é dife­rente de um ano atrás.

Para ele, está claro o interesse político da intervenção. O exem­plo de Goiás em comparação com o Rio é clássico: no período de dez anos (2005 – 2015) ocorreu um au­mento de 97,34 em Goiás e um re­cuo de -39,99 no Rio de Janeiro.

No Ceará ocorreu um aumen­to de 126, 39 e no Maranhão o ín­dice de crescimento dos homicí­dios é alarmante: 103,21. A maior visibilidade nacional do Rio de Ja­neiro chama mais atenção da mídia do que os casos que ocorrem em Goiás, por exemplo. Com manche­tes mais explosivas e contundentes, o clamor no Rio vale mais de quem chora a violência em Goiás. Daí tal­vez o interesse do Governo Federal em investir todas as forças no Rio. “Com dificuldades em aprovar a reforma da previdência, está claro que o governo busca outra agenda. Deveria realizar enfrentamentos pontuais. Mas não faz. É tudo uma grande mentira”, diz Eva Rocha, da ONG A Paz que eu quero, que atua em Goiânia na contabilidade de violências contra o cidadão.

MINISTÉRIO

Sérgio Adorno diz que a ou­tra vertente da ação, que é a cria­ção do Ministério de Segurança Pública, não está claro. “Parece que visa atender interesses insti­tucionais. Não podemos ter poli­tica de segurança à toque de cai­xa. Tem que ser planejado, com objetivos e planos de ação fisca­lizados. Agem de forma amadora. Colocar polícia na rua não é su­ficiente. As soluções que não são inovadoras e os resultados são aquém do que deveria ser”, disse Adorno

Senadores acreditam em eficácia da medida

O senador Wilder Morais (PP­-GO), que apontou a necessida­de de intervenção do Rio de Janei­ro em dezembro do ano passado, através de relatório aprovado pela Comissão de Constituição e Justi­ça (CCJ) do Senado, defende a me­dida do presidente Michel Temer.

“Já estava previsto no relató­rio: temos que ‘ter um estado de defesa no Rio de Janeiro’. O crime organizado é algo impressionan­te neste estado e coloca o Rio na rota internacional do tráfico de drogas. É uma posição estratégi­ca. Mas também sugerimos ou­tras medidas, que podem ser ain­da mais eficazes, caso da criação da Polícia de Fronteira. Esta é a medida necessária para estan­car a entrada de drogas e armas”.

O senador goiano Ronaldo Caiado (DEM) também apoia a in­tervenção federal no Rio de Janei­ro e, se preciso, em outros estados, como Goiás. “Já pedi a atuação das Forças Armadas no Entorno do Distrito Federal. Muitos por não conhecerem a realidade me ques­tionaram se de fato era tão grave assim no Entorno. Não só lá como em todos os cantos de Goiás. Mas nessa região, que faz parte de nos­so Estado, vivemos uma realidade pior que a do Rio de Janeiro. A falta de segurança se assemelha muito à Baixada Fluminense”.

VIOLÊNCIA NO RIO

A violência que eclode no Rio de Janeiro não é novidade para ninguém. Mas o seu combate pa­rece insistir em ações que não dão certo. Nos últimos dez anos, a ca­pital teve a presença do Exército 13 vezes e um gasto milionário em segurança pública.

O que mais espanta é que os agentes públicos que assumem a missão de tratar do assunto ignoram os estudos de crimi­nalidade. Preferem as estatís­ticas forjadas dentro das insti­tuições policiais e ignoram as análises comparativas que le­vam em consideração as polí­ticas públicas comparadas de outros países.

Há décadas o Brasil tenta ‘in­ventar’ um modelo de combate da violência. Os estudos pionei­ros de criminalidade no Rio co­meçaram com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Cândido Mendes. Um deles é Edmundo Campos Coe­lho, autor de pesquisas sobre as crises do sistema carcerários do Rio, a estrutura do sistema peni­tenciário, a economia delinquen­te, a ecologia do crime, a adminis­tração da justiça criminal no Rio (1942-1967), o início da falange vermelha, Escadinha e a crimi­nalidade urbana violenta.

Em sua extensa obra, Edmun­do já debatia questões pontuais sobre policiamento, a origem da violência, as implicações peni­tenciárias e vários outros temas. Data de 1986 um estudo sobre efetivos e viaturas da Polícia Mi­litar do Rio. É clarividente o que diz o pesquisador sobre como a polícia deve se aproximar da comunidade, fato negligencia­do pelos governadores e gestores públicos, que insistem em inven­tar soluções que funcionam ape­nas alguns dias: “As práticas de patrulhamento deveriam sofrer substanciais alterações e o pa­trulhamento a pé deveria com­plementar o motorizado. Qual­quer cidadão pode facilmente observar a seguinte cena: uma viatura policial estacionada sobre o passeio de uma via central ou praça pública (geralmente uma radiopatrulha) e sua guarnição (usualmente dois policiais) fa­zendo absolutamente nada. Ou melhor, conversando e esperan­do que algo ocorra para então agir (uma chamada pelo rádio, a solicitação de auxílio por par­te de um cidadão, uma ocorrên­cia que se dê nas proximidades). Os policiais das RPs raramente são vigilantes ativos e o mesmo se pode dizer das guarnições; a premissa dessa vigilância passi­va é que a mera visibilidade das viaturas policiais dissuade o cri­minoso. Isso pode ser verdade, mas não exclui a alternativa da vi­gilância ativa: estacionada a via­tura da RP, por exemplo, um ou ambos os patrulheiros poderiam circular pelas ruas adjacentes, fa­lar com gerentes de estabeleci­mentos comerciais, porteiros de edifícios ou vendedores de ban­cas de jornais à procura de indí­cios de desenvolvimento de si­tuações anormais”.

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