Cotidiano

Violência invisível nos lares brasileiros

Diário da Manhã

Publicado em 1 de setembro de 2018 às 23:03 | Atualizado há 7 dias

Mais três mortes de mu­lheres, vítimas de fe­minicídio, na última semana, na grande Goiânia, é o reflexo de que muito ainda pre­cisa ser feito para conter esse tipo de violência. Dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública apontam para números nada ani­madores de 18 mulheres mortas por namorados, maridos ou com­panheiros, só este ano no Estado. Outras 33 tentativas foram regis­tradas, mostrando que a situação pode ser ainda mais alarmante.

Os casos mais recentes vitima­ram três jovens mulheres. Mônica Gonzaga Bentavinne, de 23 anos, morava em Goianira e teria recebi­do um tiro do namorado ciumen­to, ressentido por ela usar o celular longe da presença dele. Era apenas um relacionamento de três meses. Já Sandra Elisa Santos de 33 foi as­sassinada a facadas, sendo o princi­pal suspeito Thiago Henrique Paes, seu marido, que já havia tentado o feito outras vezes e que, após co­meter o crime, teria ido beber tran­quilamente em uma distribuidora.

Por sua vez, Karyta Augusto Ro­drigues dos Santos foi encontrada morta com várias facadas ontem na casa em que morava, em São Luiz de Montes Belos

ELA CONSEGUIU, MAS NÃO FOI FÁCIL

Cristina (nome fictício) mal acredita quando contempla a vida que tem hoje, após mais de quatro anos de uma separação tempestuo­sa. A advogada foi vítima de violên­cia doméstica durante os sete anos em que foi casada e mais quatro anos após o marco da separação. “Quando vejo o que aconteceu com essa semana em Goiânia ou casos como o da advogada Tatiane Spit­zer (supostamente morta pelo ma­rido após sequência de agressão física), penso que estive perto, até mais que ela, de ser mais uma víti­ma fatal”. No ano em que Lei Maria da Penha completa 12 anos de vi­gência, para mulheres como Cris­tina pouco ou nada se alterou em seu histórico de dor e sofrimento.

Cristina é uma das muitas a atestarem a dificuldade que a mu­lher enfrenta ao denunciar o mari­do agressor não à polícia–segundo ela despreparada e desinteressada de atender corretamente a vítima – mas para a própria a família. Pre­missas como a que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, e “ruim com ele, pior sem ele” são levadas às últimas conse­quências no nicho familiar, o que leva a vítima a se sentir mais con­fusa e desamparada.

“Com esse tipo de resposta da sociedade é comum que a própria mulher passe a se ver no papel de culpadas e eu me senti exatamente dessa forma em diversas ocasiões”, revela Cristina. Para sua coleção contabilizou, ainda, a frase várias vezes ouvida de que “a mulher edi­fica o lar” o que potencializava sua sensação de ser a responsável pela ruína do casamento.

Quando conseguiu se separar, após situações em lhe valeram mui­tos hematomas, fraturas, desres­peito público e violência psicoló­gica por parte do marido, Cristina teve que aceitar ainda mais quatro anos de agressões de um ex mari­do inconformado com o término da relação. “Teve um dia em que ele me sequestrou e me levou de short e descalça para Brasília, ale­gando que eu era dele, sob ameaça de morte”, relata a advogada.

Situações vividas por Cristina, que se via cercada por um marido armado por ser policial e sua fragi­lidade diante do quadro, engrossam as estatísticas do anuário da violên­cia no País, divulgado recentemente e que trazem à tona números alar­mantes, apesar de avanços como a Lei Maria da Penha.

De acordo com o estudo, foram 221 mil casos de violência domés­tica, 60 mil estupros e 4,5 mil as­sassinatos no ano passado. Casos como o de Cristina e outros com um final menos a contento – o ter­mo final feliz não é aceito por es­sas mulheres – como o da advo­gada Tatiane Spitzer,de Mônica Bentavinne e Sandra Elisa.

DISCUTIR PARA RESOLVER

A psicóloga Máris Eliana Dietz recebe em seu consultório diaria­mente muitas mulheres vítimas não só da violência física, mas tam­bém da psicológica. “Essa violên­cia é bem mais difícil de identificar, porque é feita de forma gradual: uma cena de ciúme, uma ofen­sa verbal, no início do relaciona­mento, e chega-se a um momento em que a própria agredida se per­de entre o que é agressão e o que é realidade”, afirma a psicóloga.

Ela acrescenta que para se li­vrar de tal ciclo a mulher precisa de muito apoio, da família e até profis­sionais especializados. “E mesmo assim é um trabalho árduo que de­manda muita força de vontade para “escapar” de tal realidade”, conclui.

A advogada criminalista, Már­cia Póvoa, idealizadora do projeto Do Salto ao Alto de enfrentamen­to da violência doméstica, que o diga. Ele conta que viveu situação de abuso psicológico em 19 anos de casamento. “Houve um dia em que me vi olhando para meu refle­xo no espelho e enxerguei a criatura mais desprezível, mais desprepara­da, mais negativa do mundo. Fiquei muitos minutos ali e quando perce­bi estava babando”, revela a advoga­da, hoje uma mulher atraente e fi­nanceiramente independente.

Esse depoimento de Márcia é muito forte, mas reflete exatamen­te o suplício de algumas mulheres psicologicamente agredidas. Por isso, por conhecer na pele a reali­dade da agressão no casamento, ela é quixotesca na tentativa de co­locar o assunto em pauta para que, através do apoio e do conhecimento de suas situações, as mulheres que­brem as correntes do abuso.

Márcia se uniu a Tânia Agos­tinho, biomédica sanitarista, que com ela trabalhou com mulheres violentadas, tendo sido ela tam­bém vítima de abuso psicológico. Juntas elas criaram o projeto Do Salto ao Alto que visa promover a discussões de um tema que, por enquanto, é encarado como “su­jeira varrida para debaixo do tape­te” das famílias, explica a advoga­da que também é vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerro­gativas da OAB/GO.

“Nosso objetivo, através de pa­lestras e ciclos de debates é ajudar as mulheres a encurtar esse cami­nho e identificar a violência antes de se tornarem vítimas fatais”, com­pleta Tânia Agostinho, que como a advogada conviveu com violência psicológica e trabalhou com mu­lheres vítimas de abuso sexual no Instituo Médico Legal (IML) em Goiânia, com a realidade de mu­lheres violentadas. Ambas com formação em coaching, resolve­ram criar o projeto de atendimen­to a esse público.

Tânia Agostinho destaca que a violência silenciosa é a mais difí­cil de identificar e combater, pois a sociedade é conivente com al­gumas ações do abusador o que leva, inclusive, a mulher se questio­nar sobre sua dor e se culpar pela infelicidade do casal e da família. “No final, ela é só mais uma vítima e sente, como tal, as consequên­cias desta condição, na autoesti­ma, na saúde orgânica e emocio­nal”, adianta. De acordo com dados da Organização Mundial da Saú­de, mulheres vítimas de violência – física ou psicológicas – têm mais chances de desenvolverem qua­dros depressivos ou de ansieda­de e de serem levadas ao suicídio.

Para as duas mulheres, que sen­tiram na pele o que é ser vítima e as dificuldades vivenciadas a partir daí o debate, a conscientização e a acei­tação do quadro de violência são os primeiros passos para se livrar dela. Elas se mostram atuantes e bus­cam, no próximo dia 25 de setem­bro, lotar um auditório com mais de 400 lugares para trazer à tona essa discussão. “Estamos abertas a falar, mas também a ouvir casos. Quere­mos também aprender mais sobre violência e por isso convidamos to­das, vítimas ou não, mulheres e ho­mens, porque só a discussão a acei­tação do problema poderá gerar mudanças efetivas.

Enquanto não houver mudança de mentalidade, de não aceitação da violência por parte das mulheres, leis como a Maria da Penha – não que não tenha sido uma evolução – mas não passarão de letras frias em um papel”, afirma Tânia Agostinho.

As idealizadoras destacam ainda a necessidade de se for­mar bem o jovem de ambos os sexos para que este não aceite a condição de agredido, tampou­co de agressor. Tânia revela que a mulher, até certo ponto, aceita ser vítima e submissa, daí o fato de ela não encontrar na mãe a fi­gura de apoio para se livrar dos abusos. “Normalmente, as famí­lias são coniventes com os ca­sos de abuso e os meninos já são criados para serem obedecidos e atendidos em sua necessidade”, explica a biomédica.

Do Salto ao Alto busca, ainda, abrir um canal de comunicação com os homens, inclusive os agres­sores, visto que a violência é prati­cada como fruto de uma noção er­rônea de poder. “Não se mata, se estupra ou se agride por amor, dese­jo ou sentimento, mas por uma rela­ção de poder e devemos ir ao cerne dessa questão para quebrar todos os mitos”, completa a biomédica.

 

Mulheres machistas

Um dos questionamentos levantados pela dupla em suas palestras é: por que a socieda­de ainda é tão machista e vio­lenta se são as mulheres que educam os meninos? Não de­veria haver um repasse de valo­res de modo que a mulher fos­se mais valorizada? A resposta, segundo Márcia Póvoa, está justamente na necessidade de se mudar o prisma com que se encara a condição da mulher no Brasil. Numa mudança de mentalidade, principalmente da mulher. “A mulher, incons­cientemente se julga merece­dora dos males que sofre; ela foi educada para isso”, conclui Márcia e arremata: “É necessá­rio que revisemos nossos con­ceitos urgentemente”.

Ela acrescenta que projetos como Do Salto Ao Alto têm po­der de encurtar caminhos para muitas mulheres, à medida que as levam à compreensão de suas condições de vítimas. Algumas podem, com isso, conseguir se livrar da condição de vítima.

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