Cultura

A morte, meu filho, é implacável

Redação

Publicado em 13 de agosto de 2015 às 22:40 | Atualizado há 9 anos

A morte é sobre quem fica. O morto não lamenta, não enche o nosso saco, não mente, o morto não deve mais nada a ninguém. A morte é sobre quem fica. E quem fica abusa: todos eram amigos do corpo – desculpa, do morto –, flores, lágrimas, comoção generalizada. O morto vira santo, podia ser o diabo, e os vivos tentam pegar carona.

O pobre do Seu Antônio sempre vestiu roupa velha, meio encardida. Mas para entrar na miséria do caixão, lhe botam um terno. Diabo! Pois presenteassem Seu Antônio com um terno para que ele o usasse em vida, e que o vestisse no enterro, tanto faz. Que o safado do padeiro perdoasse a dívida de 10 reais quando Antônio estava vivo e doente, assim o velho morreria mais tranquilo, mas não, o desgraçado escolhe o velório para anunciar o perdão, assim todos veriam o quanto era virtuoso.

“A morte meu filho, só vem. Você vai ter que viver com isso.” E Pedro não se conformava com a morte precoce do pai. – Quem não morre de velhice morre precoce? – Pedro não entendia. O pai levou uma bala perdida. Se foi bandido, policia, assassinato ou acidente, não importa. O homem estava morto. Ninguém o traria de volta, ninguém seria julgado. “A morte meu filho, é implacável.

Agora Pedro não sabia se temia a morte ou a transição. Os pensamentos o atormentavam. Não sabia se o pai sofrera, agonizara segundos, minutos, antes de perder a consciência. A dúvida é mais cruel que a certeza do pior. Pedro não podia viver a mercê do acaso. Suicídio! Sim o suicídio era a solução. Calcularia milimetricamente cada passo. Não sentiria dor e precisava ser bonito. Ser acertado por uma bala que nem era para você não tinha nada de bonito.

Agosto era o mês perfeito. Nunca acontecia nada nesse mês seco, todos teriam um bom motivo para se encontrar. Agosto ganharia vida. Mas era indispensável que tudo saísse como planejado. Dia 8, sábado as 16h, todos já teriam voltado do trabalho, o enterro seria num domingo, faria sol com certeza. Dia 8 todos estão com dinheiro no bolso, portanto escolheriam uma boa cova, haveriam muitas flores e ao seu corpo deixariam um bom terno. Dia 8 de agosto de 2015, desconheço data melhor para morrer.

A ação tinha que ser precisa, não sujaria nada e deveria estar bonito no domingo. Ensaiou por 4 meses, escolheu o lugar, longe de hospitais e delegacias, mas bem movimentado. Muitos pedestres e poucos carros. Uma dose de veneno e tomá-lo as 15h20. As 16h o veneno faria efeito, estaria na esquina, de frente a praça, muita gente presente mas ninguém poderia fazer nada.

No dia mais importante da sua vida, Pedro acorda cedo, toma café: um pão de queijo, um misto quente com tomate e um expresso. Compro um jornal, queria ter certeza que nada de importante aconteceria naquele dia, nada que pudesse ofuscar seu momento. Faltou o colégio e ficou sentado até a hora do almoço num ponto de ônibus, lendo trechos dos seus livros prediletos. Almoçou em casa, sozinho – a mãe nunca almoçava em casa, as vezes jantavam juntos. Dormiu um pouco depois de comer, queria morrer com o corpo descansado. Tomou banho e vestiu a roupa que havia escolhido dois meses antes. Um par de tênis confortáveis, meias macias, cueca e calças jeans novas e uma camiseta preta lisa.

Pedro saiu de casa as 15h e ficou andando nas ruas próximas ao local escolhido meses antes, ansioso para começar o processo. Cruzou por muita gente, mas ninguém conhecido, excelente, assim não atrapalhariam o processo. 15h20, Pedro explodia por dentro, tirou o frasco de xarope do bolso, tomou o veneno e continuou a andar. Tinha que ficar atento aos sinais do corpo para não correr o risco de cair fora do local planejado. 15h53, Pedro começou a suar, o passo mais pesado, a respiração difícil. 15h58, perde o equilíbrio e cai ao chão, feliz pois foi um tombo equilibrado, não esbarrou em ninguém e não se machucou, pouco alarde. Demorou alguns segundos para as pessoas ao redor tomarem alguma atitude. 16h01, Pedro não respirava mais. Perfeito!

O velório perdurou a madrugada. O enterro começou as 8h30 , fazia sol, o céu estava limpo, havia muitas flores e só falavam bem de Pedro. Santo Pedro! As 10h todos estavam cansados, mas não muito, domingo é um bom dia para enterros.

“A morte, meu filho, é implacável”. “O suicídio, mãe, é a solução”.

 

(William tRAPo, produtor cultural)

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