A palavra de Maomé no Brasil
Diário da Manhã
Publicado em 9 de novembro de 2016 às 01:52 | Atualizado há 1 semanaComeçou ontem, em Brasília, o quarto curso sobre islamismo, voltado para estudantes do Instituto Rio Branco (futuros diplomatas), servidores públicos do Itamaraty e embaixadores. O que é o Islamismo? O objetivo do curso é mostrar aos ouvintes o que é o mundo islâmico, sua cultura, suas concepções políticas e sua história.
Desde 7 de novembro, 13 professores de renomadas universidades brasileiras e do exterior vêm ministrando aulas sobre o Islamismo para uma plateia privilegiada, a elite do funcionalismo público brasileiro. Segundo os organizadores, trata-se de uma dissertação abrangente sobre questões não apenas religiosas, mas também sobre Filosofia, Ciência e Direito; Geopolítica e Segurança; Economia e Comércio.
Serão 25 horas de aula nas quais 13 renomados acadêmicos, de universidades brasileiras e do exterior, abordarão conteúdo relevante e atual sobre o Islamismo em cinco módulos temáticos: Religião; História e Civilização; Filosofia, Ciência e Direito; Geopolítica e Segurança; Economia e Comércio. São professores do curso Ali Hussein El Zoghbi (Fambras); o juiz federal Ali Mazloum (Uni Lisboa); Andrew Traumann (Uni Curitiba); Fernando Brancoli (UFRJ); Francirosy Barbosa (USP); Jamil Ibrahim Iskandar (Unifespe); Mohamed Habib (Unicamp); Michele Villadal (Fambras); Murilo Sebe Bon Meihy (UFRJ); Mustafa El Guindy(Unicamp); Rosa Guerreiro (Sorbonne); Rubens Hannun (CCAB) e Shadia Husseini de Araújo (UnB).
“Há uma crescente intolerância religiosa no Brasil e no mundo. A islamofobia, como é chamado o preconceito contra os muçulmanos, é fruto do desconhecimento sobre o Islã e a comunidade muçulmana. Problemas que podem ser resolvidos com esclarecimento e disseminação de informações corretas sobre a religião”, explica o vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, Ali Hussein EL Zoghbi. “O curso é, para nós, uma oportunidade de desmistificar conceitos ultrapassados”, diz ele.
A Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras) foi fundada em 1979 pelo empresário libanês Hajj Hussein Mohamed El Zoghbi. A entidade atua com total apoio dos principais representantes do Islamismo nos âmbitos religioso, social, econômico e diplomático, com projetos que visam à divulgação do Islã. A Federação também foi pioneira na implantação do conceito Halal no Brasil, sendo importante certificadora.
O intuito da criação da entidade foi o de fortalecer e unificar as associações muçulmanas atuantes no País para que elas se mantivessem comprometidas com as causas ligadas à comunidade islâmica, como a acolhida aos crentes necessitados e a manutenção das práticas do Islã. Nas áreas educacional e assistencial, a Fambras atua de maneira exemplar, tanto em benefício da comunidade muçulmana quanto das comunidades carentes brasileiras, com projetos que propiciam o conhecimento do Islamismo como uma religião de paz e solidariedade.
A atuação das entidades muçulmanas no Brasil nada tem a ver com proselitismo religioso. Os muçulmanos brasileiros não estão interessados em conversões em massa, nem querem disputar o espaço místico com outras crenças. Até porque a esmagadora maioria dos muçulmanos brasileiros são imigrantes – ou descendentes de falantes de língua arábe. O Islã no Brasil está restrito à colônia dos povos de língua árabe. Os chamados carinhosamente de “turcos” constituem uma parte importante dos povos que se amalgamaram na formaçãoo da nacionalidade brasileira.
Embora ainda se ensine nas escolas que o povo brasilleiro se formou pela miscigenação do branco lusitano com o índio e o negro africano, a verdade mesmo é que nesta mistura entram o sangue alemão, o sangue italiano, o sangue japonês e o sangue “turco”. No Nordeste ainda há descendentes de holandeses e franceses. A capital do Maranhão, São Luis, é a única cidade brasileira fundada por franceses. E se formos rigorosos, constataremos que o Rio de Janeiro nasceu de um assentamento francês muma ilhota da Bahia da Guanabara, que foi ligada ao continente e hoje é o aeroporto Santos Dumont. O arraial fundado por Villegagnon recebeu o pomposo nome de France Antartique. Mem de Sá e seus portugueses chegaram depois e fudaram a vila de São Sebastião, nome de batismo do Rio de Janeiro.
Dar al Islan
A influência cultural do Islã sobre a formação do povo brasileiro é mais profunda do que se imagina. A península ibérica, Espanha e Portugal, foi muçulmana por quase oito séculos. Em Eurico, o presbítero, o romancista português Alexandre Herculano reconstitui, com as licenças da ficção, a derrocada do reino visigótico na Espanha e a subsequente ocupação e islamização do território. E, claro, glorifica a resistência desesperada de Pelágio a partir das montanhas das Astúrias.
Aproveitando as lutas dinásticas que assolavam a Ibéria, Abdul-el-Aziz e seus gerreiros, que vieram do norte da África para ajudar uma das facções, acabaram subjugando os dois partidos e dominando o território. Promoveu uma corrente migratória que durou séculos e que foi ocupando todos os espaços vazios da península. Expandiram-se em direção à França, mas foram contidos por Orland, Le Furieuse, no desfiladeiro de Poitiers.
Os muçulmanos fizeram de Córdoba a sua capital, a sede do Califado. Desenvolveram economicamente a região, fazendo surgir ali uma magnífica civilização que rivalizava, em esplendor, com os califados de Bagdá e do Cairo. Os califas que sucederam Adul al Azis mantiveram a sua sábia política de integração dos povos. A tolerância religiosa era total. A burocracia foi entregue aos judeus, outro “povo do livro”, a quem os muçulmanos sempre protegeram contra os cristãos antisemitas. Hoje, os judeus de Israel perseguem os muçulmanos, numa pedagógica demonstração do que é gratidão histórica.
Muitos vocábulos árabes invadiram a língua portuguesa e as muitas que se falavam na península, entre elas o castelhano, vulgo espanhol. Nas várias cidades de Espanha, fundaram universidades, bibliotecas, observatórios e centros de experimentação científica. Foi graças aos sábios muçulmanos da Espanha que a obra de Aristóteles – que se julgava perdida durante Idade Média – chegou até nós. Tomás de Aquino, que não sabia grego, conheceu a filosofia do estagirita por meio das traduções de sábios muçulmanos, vertidas depois para o latim.
O domínio muçulmano, porém, teve um fim. Ainda que eventualmente cristãos e muçulmanos tenham se irmanado em armas, sob a bandeira de El Cid Campeador, contra invasores mouros de maus bofes, que decretaram uma “fatwa” contra cristãos e muçulmanos civilizados, visando varrê-los do mapa, para converter a Espanha em uma “Dar al Islam”, terra islamita, a intolerância católica falou muito mais alto. Se Abdulaziz foi rei dos espanhóis, Fernando de Castela e Isabel de Aragão exigiriam ser chamados de “Reis Católicos”. A resistência inciada por Pelágio nunca foi abafada. Cresceu com os anos. Virou o movimento da “Reconquista”, e foi gradativamente expulsando os muçulmanos espanhóis de suas casas.
O Brasil já estava “descoberto” quando, em terras portuguesas, se lutava contra os últimos redutos islâmicos. Por fim, os portugueses atravessaram o Gibraltar para combater os maoemantos na costa da África. Num local chamado Alcacequibir, o jovem rei Dom Sebastião caiu em combate. O corpo dele jamais foi encontrado. Desaparecido sem herdeiros, Dom Sebastião deixou o trono vago. Felipe da Espanha o reclamou.
Foi uma grande desgraça para a nação portuguesa e, por extensão, para o Brasil. Os 60 anos de dominação espanhola trouxeram os jesuítas, a Inquisição e todos os males da Idade Média para Portugal, via de extensão, para o Brasil. O reino florescente fundado por Dom João de Avis em 1386, a mais progressista nação do mundo medieval, primeira monarquia absoluta da Europa, refúgio da inteligência e asilo da tolerância, mergulhou no reino das trevas da carolice e da superstição. Ainda hoje Portugal se ressente dessa tragédia histórica. Ainda hoje o espírito retrógrado da contrarreforma permeia a cultura brasileira e barra, até mesmo, o desenvolvimento de um capitalismo autônomo, dinâmico e progressista. Inibe a expansão de um protestantismo esclarecido, mas fornece adubo psicológico para o alastramento do neopentecostalismo alienante, herdeiro de todas os vícios e depravações do cristianismo medievalesco.
Religião do bem
Muito já se falou das valiosas contribuições do Islã ao desenvolvimento cultural do Ocidente. Eles introduziram a álgebra, os números arábicos, resgataram a filosofia clássica dos gregos, criaram as bases da ciência moderna – sobretudo a química -, inovaram na metalurgia, criaram espantosas soluções arquitetônicas, fizeram importantes descobertas astronômicas, inventaram a bússola e o astrolábio, escreveram uma poesia de profunda inspiração – profana e religiosa -, e nos legaram esta coisa brasileiríssima que é o quibe. Certo, introduziram o horroso hábito de fumar, através daquele aparelho esquisito chamado narguilé, e também as armas de fogo. Mas Maomé, o inefável, o misericordioso, há de perdoá-los.
A ideia de que o Islamismo é a legitimação religiosa do terror não passa de preconceito de gente ignorante. O jihadismo dos extremistas islâmicos nada tem a ver com a fé corâmica. Pelo contrário, assim como os cruzados buscavam na Bíblia justificativas piedosas para a agressão ao mundo oriental, os terroristas que agem em nome de Alá não representam o verdadeiro espírito do Islã. O Islã, bem compreendido, é uma religião extremamente tolerante, frequentável, que pode contribuir, e muito, para a paz entre os povos. O Corão, de resto, é literatura da mais alta luminosidade. Mais que um livro de rezas, é um repositório de sabedoria, aquela “fronesis” que Platão, distinguindo-a de “conhecimento”, estabeleceu como o verdadeiro caminho para o “Bem”. Os muçulmanos têm o mais alto repeito pelas escrituras judias, veneram Moisés como grande frofeta, e até afirmam coisas simpáticas sobre Jesus, embora não reconheçam nele um “filho de Deus”, como pretendem os cristãos.
Claro, muçulmanos travam, em certas partes do globo, lutas sangrentas entre si. Sunitas e xiitas ainda disputam a bela herança do Profeta. Nisso, eles não são muito diferentes dos cristãos. Mas considerar o Islã a ideologia do terror contemporâneo é um reducionismo que pessoas esclarecidas não podem aceitar. Por isso, esses cursos promovidos pelos intelectuais islâmicos do Brasil são iniciativas muito bem-vindas. Pena que não as ampliem para o público em geral. O Islã é do bem, podem crer.
]]>