Dataísmo: meu grande-irmão algoritmo
Diário da Manhã
Publicado em 4 de janeiro de 2017 às 01:09 | Atualizado há 8 anosJaneiro de 2017 faz um calor danado em Goiânia. Liguei o ar condicionado da biblioteca e iniciei uma leitura comparada (se possível) entre 1984, romance do inglês George Orwell e Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã, de Yuval Noah Harari, historiador israelense e celebridade instantânea, recentemente. Então rascunhei, em meu canto de estudo, o que se segue.
No único espaço livre da parede, há um pôster da Petrobras 60 Anos, de 2013, intitulado Da Filosofia à Computação, 2.500 anos de gente inspirando gente. E, contíguo a ele, um enorme cartaz fatiado em cores, com um círculo no centro onde se lê: “Landscape of Big Data”. E logo abaixo a legenda: “Um Novo Grande-Irmão Pensa e Decide Por Ti”.
Difícil continuar digitando. Fecho os olhos e penso (se é que ainda penso) que o “sistema” já sabe tudo antes de mim. O dataísmo seria a religião com a superdivindade do futuro? Porém, no momento, descobri que meu pior inimigo é esse big data a me perseguir até quando durmo ou compro papel higiênico. Interpreta a cara que faço no banheiro, no shopping, a dor e o prazer que sinto; mede o impacto emocional do que vejo, degusto, ouço e leio. Sente o cheiro de meu corpo e sabe quem são (serão) meus amigos de verdade, melhor que eu. Esses softwares e sensores biométricos estão acima da competência de qualquer temido ditador ou deuses do passado.
Além disso, atinge minha criatividade. Se levanto as pálpebras do sono, os algoritmos decidem e registram “meu” texto, meus sonhos. Com imagens que não pedi. E as palavras brotam na tela do computador sem minha intervenção, vindas da nova tecnologia de negação da realidade objetiva e da Novilíngua Algoritma. A coisa parece invertida: Sinto que os e-livros é que me leem. Sentimentos, sensações e livre-arbítrio pouco importam na era do big data. Ô vontade de xingar!
Ouço um “Oh-ooo-oh!” muito forte. São as mulheres “proles”, exigindo o direito de pensarem, decidirem por si mesmas e consumirem o que lhes der na telha. E também o direito de se conhecerem melhor e de usarem a internet das coisas, celulares e computadores de última geração, redes sociais diversas – sem o olho, controle e registro biotecnológico desse Novo Grande-Irmão. Ao que o Novo Grande-Irmão responde: “Coragem! Não há mais moeda, nem o Grande Irmão 1984 zelando por ti, fitando-te de frente, para aonde volveres. Porém eu, a bem da verdade, posso oferecer às gerações do século 21 chips, plástico, algoritmos, biotecnologia, inteligência artificial e idolatria à informação. Nenhum aperto de mãos para descobrir detalhes. Calosidade, por exemplo.”
Diante disso, não sou simpática ao dataísmo, entretanto parece-me que não há outra alternativa, senão obedecer-lhe as decisões e ser seu chip; estar conectada, gravando, fazendo upload, compartilhando, etc. Um tipo de submissão e de prisão. Sala 101. Cinquenta tipos de ratos. Porém há uma vantagem: penso que superarei minha velhice e morte pela famosa biotecnologia conectada a computadores. E nesse longo percurso eu perguntaria: Seria possível desenvolver a consciência (não a inteligência) em computadores? Os algoritmos conseguiriam explicar a consciência?
Enquanto eu mastigava as dúvidas próprias do conceito de consciência (e de alma), ouvi pelo streaming de meu relógio de pulso a informação de que do Ministério das Telecomunicações escorre uma música metálica acompanhada de um boletim anunciando isenção de multas, pendências e dívidas das empresas a ele subordinadas: “2+2 = 5. Só nós temos importância: Eu te vendi e tu me vendeste… Dataisticamente.”
Então volvo a cabeça para a esquerda e revejo o cartaz do Novo Grande-Irmão, lá do início, pensando e decidindo tudo por mim. E me pergunto: O que faço aqui, diante desse computador, nessa biblioteca, se os algoritmos têm as respostas que procuro, sabe-as antes de mim, e redige o artigo sem minha intervenção? Onde a descoberta e o direito de criação do autor?
(Ercília Macedo Eckel – www.erciliamacedoescritora.com.br, membro da Aflag, sócia da UBE-GO, e da Academia Petropolitana de Letras – RJ)
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