Distante de Deus, a religião dá coesão à anomia social
Diário da Manhã
Publicado em 21 de junho de 2017 às 03:11 | Atualizado há 8 anos“É preciso não crer na demagogia do pecado, do paraíso ou inferno, do tal livre-arbítrio” (Nietzsche, 1844-1900)
A coletividade (des) humana é resultante da construção do mundo erguido a sopro de vida, morte, vida e morte. E continuará existindo após a vida e também depois da morte de processos sociais que engendram a sociedade da qual o homem não aparta. Existem três processos dialéticos que fundamentam esse agrupamento expresso na exteriorização, objetivação e interiorização gregária, produto humano e realidade social enquanto mercadorias do sistema dissecado por Marx a partir do pressuposto de que “o homem é essencialmente ser histórico e social, marcado pela produção de sua existência em sociedade”. Esta construção, ordenada, dá fôlego à nomia social, do contrário, caracteriza-se enquanto anomia do mundo que pensa montado em corpo social e político, curiosamente “inacabado” ao nascer, portanto, dependente da constante e contínua relação com a realidade que o cerca, ou, existência a qual exige deste o equilíbrio societário como condição da sua existência quando o mundo humanamente produzido torna-se alguma coisa “lá fora”.
De acordo com Berger: “A cultura é objetiva por se defrontar ao homem como um conjunto de objetos do mundo real existente fora de sua consciência” (1985, p. 23), portanto, o ser humano que encontra uma relação correta com o cosmos sagrado possui um escudo contra o terror da anomia numa sociedade que dirige, sanciona, controla e pune a conduta individual. O coercitivo fundamental, estruturante da sociedade capitalista, crente e descrente, não está nos mecanismos de controle social, mas no poder de se constituir e impor como práxis uma realidade concreta estruturalista trespassada pelo irracionalismo formal-abstrato. A identidade confere ao indivíduo seu “eu real” que o permite conversar consigo, fazer objetivações e interpretar a si mesmo, refletir subjetivamente suas ações.
O homem apreende os sentidos objetivados – identifica-se e é modelado por eles – também, a dificuldade que é manter seu mundo de pé, expressar psicologicamente a intempérie de erguê-lo subjetivamente plausível, realidade essa relacionada às instituições e que data também do mundo objetivo, de sua própria consciência onde o indivíduo não é modelado como uma coisa passiva e inerte subjugado à ideologia cristã. Essa corrente religiosa prega um mundo melhor alicerçado no flagelo passível de perdão – bilhete de passagem para o locus ideal, igualitário, pacífico e seguro – “tal qual o útero da mãe”, segundo Freud, ou, o paraíso perdido do qual o homem foi expulso ao revelar a descoberta do conhecimento trazido na metáfora do fruto pelo signo da sabedoria expressa na serpente.
O mundo social a ser constantemente construído pelos indivíduos é uma atividade ordenadora de nomia ou nomos objetivo que dá sentido à sua biografia subjetiva. Do contrário, convive com a anomia intolerável e que alcança o desejo de morte. As situações marginais da existência humana revelam a inata precariedade de todos os mundos sociais, onde “o indivíduo recebe da sociedade vários métodos para diferir o mundo de pesadelo da anomia e conservar-se dentro dos limites seguros do habitus estabelecido” (BERGER, 1985, p. 37). O homem enfrenta esta realidade dando as mãos ao sagrado supremo, escudo e realidade poderosa, distinta, que coloca sua vida numa ordem, dotada de significado.
Os mundos socialmente construídos são precários, atenuados pelo controle social, normas interiorizadas e transmitidas de geração a geração. A religião transcende o “status quo”, legitima as instituições erguidas pela história humana, endossa a coletividade enquanto mecanismo sob a ameaça do tempo que regula os conflitos e discrepâncias trespassados por diversas atividades. Torna Deus no ser mais confiável, capaz de fixar a ordem contra a escuridão o qual é, pelo rito, rememorado, o mesmo Deus que está morto por uma razão muito específica. Segundo Nietzsche: “Deus era um conceito que o homem tinha criado e do qual precisava”, mas durante a época do filósofo alemão, o homem tinha superado essa necessidade e, portanto, “foi capaz de abandonar a ideia e deixar o conceito de Deus morrer” (LEIVAS, 2012, p. 67).
Dessa forma, a religião mantém o nomos compreensivo do cotidiano colocado em dúvida, torna-se ser fundante da “base” social que mantém a existência de um mundo real para seres humanos reais, ou seja, a dialética da ideação religiosa: “Ao contrário, se a existência precede a essência, não há nenhuma natureza humana ou Deus que nos defina como homens. Primeiro existimos, e só depois constituímos a essência por intermédio de nossas ações no mundo” (SARTRE, 1905-1980). Lembrando que a decadência da teodiceia cristã na consciência do homem ocidental deu origem à era revolucionária. Esses fenômenos anômicos devem ser superados e explicados, afinal “uma das funções-chave do nomos é a facilitação dessa renúncia na consciência individual” (BERGER, 1985, p. 7).
Assim, a teodiceia fornece explicação ao pobre da sua pobreza, abençoa o rico, define forças sagradas que produzem ritmos da natureza. Já o misticismo leva este mesmo homem, pela atitude religiosa, a buscar a união das suas forças com os seres sagrados. Sem igualar religião e alienação, Berger atesta que “cabe afirmar o papel histórico da religião nas tarefas humanas a qual constrói e mantém o mundo”. E isso é um fenômeno que “retrata o poder de alienação inerente à religião” (p. 102). A essência de qualquer alienação é a imposição de uma inexorabilidade fictícia ao mundo construído pelo homem e “quando a alienação é legitimada religiosamente, aumenta-se muito a independência desses poderes, tanto no nomos coletivo quanto na consciência individual” (p. 107).
O grande paradoxo da alienação religiosa é o próprio processo de desumanização do mundo sociocultural que tem raízes no desejo de que a realidade possa ter e dar lugar significativo ao homem. De acordo com Feuerbach (1804-1872): “O homem é um ser corpóreo, físico, que existe no espaço e no tempo e que, só como tal, possui a faculdade de perceber e pensar”. Nesse princípio antropológico não há separação entre o corpo e o espírito. O filósofo alemão está inteiramente convencido de que todos os artifícios idealistas decorrem da separação entre o corpo e o espírito, e, “quando se faz tal separação, o pensamento se converte numa força divina que cria a matéria”. Todavia, seu princípio antropológico manifesta um materialismo bastante incompleto e limitado por captar a essência corpórea, sensível da realidade humana sem captar o homem como um ser histórico e social.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor, filósofo, mestre em Serviço Social/doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG)
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