Cultura

“Precisei escrever até estar pronta”, afirma Fabiane Guimarães

Nascida em Planaltina, Fabiane cresceu em Formosa, que define como “tão charmosa quanto seu nome”. Veio ao mundo sem chorar, mas com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, como as rainhas do passado, diria Gabriel García Márquez. A escritora conta que, em julho de 1991, quando nasceu, nada saiu como planejado: seus pais não tinham grana e um médico amigo da família aceitou fazer parto cesárea e laqueadura por um preço amigo.

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 3 de março de 2023 às 23:48 | Atualizado há 2 anos

É preciso intimidade com as palavras para escrever de um jeito conciso. Aspas, por favor, pois a constatação não é da lavra deste escriba. Quem chegou a essa conclusão foi a escritora Fabiane Guimarães, 31, uma das revelações da literatura brasileira. Ei-la na versão original: “Muita gente acha que a concisão enfraquece o texto, mas eu penso exatamente o oposto. É quando a gente limpa as arestas que a verdadeira força se apresenta.”

 

Nascida em Planaltina, Fabiane cresceu em Formosa, que define como “tão charmosa quanto seu nome”. Veio ao mundo sem chorar, mas com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, como as rainhas do passado, diria Gabriel García Márquez. A escritora conta que, em julho de 1991, quando nasceu, nada saiu como planejado: seus pais não tinham grana e um médico amigo da família aceitou fazer parto cesárea e laqueadura por um preço amigo.


A seguir, a autora fala sobre literatura, importância do jornalismo em seu estilo, como funciona rotina de escrita e diz que, antes da carreira engrenar, brincava que era uma jornalista assumida e uma escritora enrustida. “Desisti do jornalismo para assumir minha verdadeira personalidade”, revela a autora, em entrevista ao DM. Veja a íntegra:  


Diário da Manhã – “Como se Fosse um Monstro” denuncia – vamos colocar assim – um problema social gravíssimo: rede clandestina de produção de bebês. Como o jornalismo influenciou a construção da narrativa, seja na escolha do tema abordado e na linguagem concisa?


Fabiane Guimarães – A ideia inicial do livro – contar a história de uma barriga de aluguel – partiu justamente de uma matéria jornalística. Li uma reportagem sobre barrigas de aluguel no Brasil e me interessei pelo tema, pesquisando exaustivamente a respeito até desenhar minha personagem. O jornalismo, enquanto uma ferramenta de narração do real, sempre influenciou a minha ficção. A minha experiência como jornalista de redação também me ensinou muito sobre ouvir as pessoas e reproduzir suas histórias.


DM – O enredo dos seus primeiros livros, “Apague a Luz de For Chorar” e “Como se Fosse um Monstro”, são ambientados num Brasil deslocado de Rio ou São Paulo. Por que escolheu tirar dessas cidades o foco narrativo e transportá-lo a Pirenópolis e Brasília?


Fabiane – Escrevo desde criança e também sempre fui uma grande leitora. Ao procurar romances brasileiros contemporâneos, no entanto, sempre me frustrava com o fato de que grande parte das narrativas se passavam no Rio, em São Paulo ou em Porto Alegre. Sentia falta de alguma narrativa que falasse de onde eu venho, Goiás e Brasília, e por muito tempo escrevi em cidades inventadas pela incapacidade de imaginar que alguém leria algo que se passasse no Centro-Oeste. Até que percebi que a minha escrita só seria honesta se retratasse o meu lugar no mundo. Portanto, minhas histórias se passam aqui porque eu sou cria do Cerrado.


DM – Como foi o desafio de pensar ficcionalmente a cidade de Goiânia, já que você é, ao lado de outros 24 autores, uma das publicadas na antologia “Cidade Infundada”?


Fabiane – Eu adorei o desafio. Apesar de nunca ter vivido em Goiânia, já visitei a cidade várias vezes e tenho bons amigos da cidade. Quando fui convidada para a antologia, já estava pensando em escrever um conto de ficção científica, então uni o útil ao agradável.


DM – Há um risco em adotar linguagem simples, mas isso não chega a ser novidade na literatura: Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão, só pra citar dois nomes, construíram relevante obra seguindo essa premissa. Onde se encontra, para você, a matéria-prima da concisão? 


Fabiane – É preciso ter muita intimidade com as palavras para escrever de um jeito conciso. Muita gente acha que a concisão enfraquece um texto, mas eu penso exatamente o oposto. É quando a gente limpa e apara as arestas que a verdadeira força se apresenta. É claro que há momentos em que a narrativa, qualquer que seja ela, pede um ritmo mais lento ou uma linguagem mais robusta, mas saber escrever com simplicidade e elegância é uma arte que leva muito tempo para ser alcançada.


DM – Quais foram as dificuldades encontradas para desenvolver voz narrativa própria, que estivesse em sintonia com os anseios dos personagens e que criasse o tom das obras?


Fabiane – Acho que o meu segundo livro consolida algo que comecei com o primeiro, que é a alternância de vozes narrativas. No caso do “Apague a Luz se For Chorar”, o livro é narrado por dois personagens, na primeira e na terceira pessoa. Já no caso do “Como se Fosse o Monstro”, as duas personagens principais são narradas em terceira pessoa (com uma pequena surpresa no final). Acredito que os dois livros mostram bem a minha assinatura como escritora. Busco sempre um olhar sensível e envolvente para os meus livros, e precisei treinar muito para chegar lá, então tenho inúmeros livros e contos incompletos.


DM – Como funciona sua rotina criativa? Acha mais fácil a magia de fazer as ideias irem ao papel (digo, tela) ou encontra mais facilidade em lapidar o texto até deixá-lo com sua marca?


Fabiane – Meu trabalho acontece em várias etapas. Escrever é também reescrever o tempo todo. Sempre que termino um capítulo ou um conto, gosto de deixá-lo “marinando”, esperando ali uns dois, três dias, até retornar e conferir o texto de novo, e é quando começo a remendar, cortar e acrescentar o que for preciso. Não conheço um só alecrim dourado que faça partos graciosos de primeira. A escrita envolve muito trabalho braçal de polimento.


DM – Além de “Apague a Luz…” e “Como se Fosse…”, você também tem contos publicados em revistas e é autora da novela “Pequenas Esposas”, que saiu pela “AzMina”. Como foi sua trajetória, os percalços enfrentados e as dificuldades a serem dribladas por você até a publicação de suas histórias em livro e, de cara, por um grande selo editorial?


Fabiane – Quando publiquei meu livro de estreia pela Alfaguara, as pessoas ficaram muito impressionadas e senti que muitas pensaram que aquele era o começo da minha trajetória como escritora. Mas a minha carreira literária, como a de quase todo mundo que eu conheço, começou muito antes do primeiro romance. Publiquei meu primeiro conto aos 18 anos e sinto que ter começado cedo é um dos motivos pelo qual agora, aos 31, tenho a oportunidade de engatar o segundo livro. Tive muitos anos para treinar, escrever e amadurecer a minha voz literária. “Apague a Luz se For Chorar”, o meu primeiro livro publicado, não foi sequer o primeiro livro que escrevi. Escrevi muitos livros horrorosos que, se Deus quiser, nunca virão a público. Atravessei fases em que não me reconhecia, não sabia o que queria escrever, e acho que tentar e errar foi fundamental para entender qual era o meu projeto literário. Esse longo processo envolveu, é claro, muita rejeição e muitas lágrimas. Fui rejeitada por quase todas as editoras do país. Hoje vejo que não era minha hora, eu não estava pronta. Precisei escrever até estar pronta.


DM – O que leva a literatura a ser uma importante ferramenta para mostrar as mazelas sociais? 


Fabiane – A literatura é um território curioso que surge da realidade, mas não é exatamente a realidade. Isso permite que situações sejam reproduzidas e revistas, o que às vezes não é agradável. É como um espelho que permite que a gente enxergue também o olhar dos outros. Fazer literatura requer um exercício enorme de empatia, de sensibilidade para entender o mundo, e por isso mesmo ela reflete múltiplos pontos de vista, inclusive os monstruosos. Acredito muito no poder da ficção de reproduzir a vida, mas sem o propósito de educar ou rever as transgressões. A literatura não está aqui para educar ninguém. Ela é a arte que retrata a experiência humana, com todas as suas dores e os seus abismos. Ainda que doa, é preciso enfrentar até os nossos fantasmas.


DM – Qual ofício é mais digno: jornalismo ou literatura?


Fabiane – As duas profissões são igualmente dignas, mas, como nunca me senti verdadeiramente parte da primeira, fico feliz por poder me dedicar com liberdade à segunda. Eu costumava brincar que era uma jornalista assumida e uma escritora enrustida. Desisti do jornalismo para assumir minha verdadeira personalidade.

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