Profissão: apresentadora
Diário da Manhã
Publicado em 7 de abril de 2016 às 02:49 | Atualizado há 1 semanaA estreia semanal sobre diversidade musical no canal à cabo Multishow na próxima terça, refletindo a adaptação do formato televisivo às novas tecnologias
A representatividade da cantora Anitta no cenário atual da indústria musical brasileira vem adquirindo um aspecto cada vez mais encorpado. Em 2015, foi a única cantora do país a figurar com quatro músicas na lista das cem mais tocadas do país nas rádios durante o ano, ocupada em 70% por hits da música sertaneja. Na última terça-feira, 5 de abril, estive no Rio de Janeiro representando a equipe do DmRevista, em uma entrevista coletiva com a cantora, que a partir do próximo dia 12 passa a apresentar o programa ‘Música boa ao vivo’, na faixa das 20h30, antes comandado por Tiaguinho. As perguntas dirigidas a ela por mim e por jornalistas de várias partes do país me fizeram pensar sobre a imponência da figura do apresentador de TV na cultura popular brasileira e na forma como os programas atuais vem explorado a pluralidade de estilos musicais como um enredo principal.
TV musical
A música, desde que passou a ser gravada e distribuída comercialmente, sempre garantiu uma boa parcela da fonte do conteúdo apresentado por empresas da comunicação no campo do entretenimento. Sucesso absoluto revelado na época do rádio, Nelson Gonçalves vendeu em sua carreira mais de 75 milhões de discos. Xuxa, outra apresentadora de TV, nesse caso voltada para o público infantil, como cantora conseguiu chegar aos 45 milhões. Os programas de auditório, com seus apresentadores, ajudaram a embalar o sucesso dos maiores vendedores de disco de meados das décadas de 1990 e 2000, quando se apresentar no Faustão funcionava como um termômetro do sucesso.
Nessa época, era mais comum que os cantores de gêneros distintos se encontrassem no mesmo programa, mas não me lembro de ter visto Kelly Key cantar sertanejo em 2002 ao lado de Bruno & Marrone ou vice-versa. Nomes como Daniel, Claudinho e Buchecha, É o Tcham, Só Pra Contrariar, Padre Marcelo Rossi, Ivete Sangalo, Leandro & Leonardo, Zézé di Camargo & Luciano, Araketu, Banda Calypso e outros grandes ‘empreendimentos artísticos’ que giraram cifras bilionárias na indústria música da época entravam em contato com o público de maneira frequente, principalmente quando Gugu e Faustão brigavam ponto a ponto por audiência.
Atualmente, artistas como Adele, Rihanna e Beyoncé, e a própria Anitta, de forma menos global, giram milhões de números nos contadores do Youtube através de seus sinuosos videoclipes. Anitta, hoje com 23 anos, faz parte de uma geração que cresceu colada na televisão, e que na sua segunda década descobriu progressivamente os efeitos da internet na vida. Uma das qualidades levantadas por Stella Amaral, diretora geral do novo programa de Anitta, é seu potencial de renovação e seu sabor de atualidade. A diretora, que também é gerente do conteúdo musical do canal, afirmou que poucas vezes viu uma cantora como Anitta, que para ela possui a força de trabalho, determinação e talento requeridos para a lapidação de um monumento cultural de carne e osso.
A cantora, que descreveu sua rotina semanal completamente preenchida, gosta do sucesso e até das críticas. Encara a fama como o resultado de sua dedicação quase integral à carreira. Se o nome dela gera assunto, está tudo correndo bem Shows, televisão, campanhas publicitárias, produção de videoclipes: tudo tem o dia e a hora certa na agenda que ela cumpre com afinco. Questionada sobre seu preenchimento labial, que gerou piadas na internet, reagiu dizendo que se um procedimento estético em sua boca gera tanto assunto, é por que sua carreira está decolada.
Quando perguntei à Anitta se seu crescimento diante das generosas doses de apresentadores de TV durante sua infância influenciaram-na em sua vontade de dar um novo passo em sua carreira, ela respondeu efusivamente que sim, relatando momentos em que na infância encarnava apresentadores de televisão diante de seus bonecos de pelúcia e obrigava seus primos a cantarem em seu programa imaginário. Não fiquei nada surpreso com sua resposta, pois temos a mesma idade e nomes como Gugu, Silvio Santos, Eliana, Hebe, Márcia Goldshmidt, Silvia Poppovic, Leão Lobo, Ana Maria Braga entre outros, estão marcados para sempre na minha memória enfante. Tinha pra todas as idades, e pra todos os públicos. Comecei na Xuxa, e até hoje me pego às vezes distraído na companhia de Cristina Rocha e seu agitado Casos de Família, sucesso no Facebook (e no SBT – nessa ordem?).
Não me surpreenderia também se durante uma varredura mais profunda da minha memória eu encontrasse algum momento em que me fiz apresentador de TV diante de um público imaginário. Anitta emendou sua resposta dizendo que começou sua carreira artística através de um vídeo no Youtube onde apresentava seu próprio programa. Quando perguntei a ela se o vídeo ainda existia, ela disse, expressando-se também efusivamente com a face e com o corpo que fez um bem para ela e para o mundo apagando tal vídeo. Lembrei-me dos inúmeros fotologs da adolescência que hoje já não existem, deletados por vergonha alguns anos depois, assim que percebemos que a internet tinha um poder surpreendente de conservar e publicizar memórias do passado. Eu deletei meu Flogão, você deletou o seu?
A preocupação de Anitta com sua imagem também reflete um momento bastante peculiar da história das relações entre artista e público. Um jornalista perguntou à cantora, quando o assunto era sua capacidade de improviso, se ela pretende policiar-se para não cometer falhas discursivas, tendo em vista evitar repercussões negativas na web. Ela mostrou-se conformada com os comentários e interpretações negativas a respeito de suas falas, e disse que prefere ser espontânea, pois de qualquer forma não dá para agradar a todos. Ele enxerga que mesmo com as acusações de falha de alguns, ela continua cativando outros sendo espontânea, e se mudasse poderia desagradar os agradados.
Pluralidade
Durante a coletiva, em vários momentos Anitta e Stella Amaral enfatizaram que a proposta principal do programa ‘Música boa ao vivo’ era a união de artistas de diversos estilos. Segundo a cantora, música boa é aquela que te deixa com vontade de ouvir de novo, independente do gênero, e que o preconceito musical deve acabar pois existem vários estereótipos em torno de adjetivos derivados de estilos musicais, como funkeiro(a), sertanejo(a), pagodeiro(a), rockeiro(a), etc. Vale lembrar que essa união ecumênica tem sido um caminho traçado por vários programas de TV nos últimos anos, e mostra-nos uma tendência curiosa na adaptação do formato televisivo às novas tecnologias.
Uma das primeiras lembranças que tenho dessa tentativa de mistura de cantores de estilos distintos em programas de TV vem de 2007, como o ‘Estúdio Coca-Cola’, uma parceira entre a empresa multinacional de refrigerantes e a MTV. Foram apresentadas as seguintes parcerias (entre parênteses o ‘rótulo’ atribuído ao artista): Lenine (MPB) e Marcelo D2 (rap), Pitty (rock) e Negra Li (rap), Fresno (rock) e Chitãozinho e Xororó (sertanejo), Nx Zero (rock) e Armandinho (reggae), Charlie Brown Jr. (rock) e Vanessa da Mata (MPB), Banda Calypso (brega-pop) e Paralamas do Sucesso (rock), entre outras combinações. Lembrei-me também do potencial midiático da campanha ‘USA for Africa’, chefiada por Michael Jackson (pop) em 1985, com o objetivo de reunir fundos para solidariedade. A canção ‘We Are The World’ foi cantada por Bob Dylan (country), Stevie Wonder (soul), Paul Simon (fok), Bruce Springsteen (rock), e outros.
Outra afirmação de Anitta me fez parar pra pensar em como a máquina da televisão precisa ser algo que une os públicos, pois funciona à procura de um número grande de pessoas que compõe a soma final da audiência em números. Estes atraem investimento publicitário e proporcionam a realização de espetáculos com figuras que correspondem a vários públicos, que de forma icônica representam a cultura de uma região, de um estado, de cada pedaço que represente o orgulho de cada brasileiro de pertencer à nossa grande nação, existindo em meio a toda essa imensidão cultural.
Para Anitta, um encontro inusitado entre artistas da música brasileira seria o escolhido para a estreia de seu programa: Jorge & Mateus (sertanejo) e Sorriso Maroto (pagode). Isso me fez ter um flashback comparativo que colocou, num palco imaginário, artistas que representam os gêneros citados trinta anos atrás. Será que havia programas plurais como o ‘Música Boa ao vivo’, o ‘Esquenta’ (de Regina Casé) ou o The Voice (que traz técnicos especialistas em uma ‘área’ da música), onde o encontro de João Mineiro e Marciano e Raça Negra fosse um inusitado palpável? O programa do Raul Gil une música pop e música gospel em um mesmo quadro. Preferi não aceitar a minha primeira justificativa para isso que seria um simplesmente “as coisas mudam” e continuei pensando um pouco mais sobre o assunto na minha viagem de volta.
Fiquei me perguntando se esses programas não seriam um antídoto à segregação de público consumidor de entretenimento proporcionada pela internet. As pessoas podem aprofundar-se mais em informações e conteúdo daquilo que tem interesse. Enquanto isso, a televisão trata de promover a união desses interesses representada por artistas de vários estilos, e utiliza da própria internet para amplificar o alcance de seu conteúdo. Se há poucas décadas poucas engrenagens conseguiam girar uma grande ‘máquina’, hoje vários microchips tentam construir um sistema complexo que atinja a magnitude da antiga máquina? A construção de audiências metropolitanas através dos acessos vem conseguindo adestrar a tão mencionada ‘crise de audiência’ da televisão?
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