A lira de García Lorca
Diário da Manhã
Publicado em 26 de outubro de 2018 às 00:37 | Atualizado há 2 semanasHomossexual numa Espanha pré-franquismo (1939-1975), ditadura fascista responsável por dizimar anarquistas, comunistas e socialistas, o poeta Federico García Lorca nasceu no dia 5 de julho de 1898, em Fuente Vaqueros, província de Granada. Filho de professora, aprendeu a ler e escrever cedo. Seu primeiro livro de poemas, Impresiones y paisajes (1918), foi lançado quando ele tinha 19 anos. Prodígio em praticamente tudo o que fez ao longo de sua curta vida, desde as peças de teatro aos versos flamejantes, resolveu também enveredar para o campo das palestras e tornou-se um conferencista aclamado.
Em 1918, o escritor mudou-se para Madri para cursar Direito. Sem vocação, fez Letras e Filosofia. Viveu por 10 anos na residência de Estudantes de Madrid, onde chegou a dividir o quarto com o amigo e futuro diretor de cinema Luis Buñuel (1900-1983), idealizador do curta-metragem Cão Andaluz (1930). Machista, o cineasta não perdia a oportunidade de tecer comentários depreciativos acerca do poeta. Também foi vizinho do pintor surrealista Salvador Dalí (1904-1989), mas o artista era conservador e o relacionamento de ambos teve vários altos e baixos. Do convívio, nasceu desenhos de Dalí dedicados a Lorca e o cenário da peça Mariana Pineda (1925).
Em entrevista à Revista Cult, a cientista social Syntia Pereira Alves disse que Lorca admirava bastante Dalí, porém o poeta “influenciou mais o pintor do que o contrário”. “Já era famoso quando os dois se conheceram, na República dos Estudantes. É o Lorca quem abre caminho para Dalí, apresentando-o às rodas de artistas da Espanha”, explica a estudiosa, autora da tese Teatro de Garcia Lorca: a arte que se levanta da vida. Convencido por Buñuel a ir trabalhar em Paris, onde estaria reunida a Geração Perdida, Dalí passou a rejeitar o poeta, que se mudara para Nova Iorque com o objetivo de estudar na Universidade de Columbia.
Na terra do Tio-Sam, Lorca publicou o livro O poeta em Nueva York (1929), considerada uma de suas melhores obras. Seis anos depois, quando regressou a Espanha, foi brutalmente assassinado pelas tropas franquistas. Na ocasião, chegou a ser retirado à força da casa de amigos, em uma grande operação que cercou todo o quarteirão. O escritor foi fuzilado pelos fascistas junto com três anarquistas. Episódio europeu mais dramático antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tendo provocado a morte de milhares de pessoas, o franquismo instaurou uma espécie de “caça aos intelectuais” opositores do regime.
Após os fascistas praticamente destruírem toda a Espanha e fazendo com que o “generalíssimo” chegasse ao poder, as maiores inteligências do País figuram do regime autoritário. Toda a vanguarda artística partiu para o exílio no México, sob a proteção do então presidente Lázaro Cárdenas (1895- 1970). Para ser ter uma ideia, o ditador espanhol chegou a proibir línguas regionais, como o catalão e o basco, acentuando ainda mais o sentimento separatista na população dessas províncias. Franco permaneceu no governo até 1975, ano em que morreu, quando o rei Juan Carlos (escolhido por ele mesmo), assumiu o trono. A obra de Garcia Lorca ficara censurada na Espanha por 20 anos.
POLÍTICA
O ano de 1936 é o mais engajado politicamente na vida do escritor. No primeiro semestre, Garcia Lorca explicitou suas ideias sobre teatro, poesia e cultura espanhola, além de deixar bem claro seu apoio à República e seu total repúdio ao franquismo. Pouco antes das eleições, Lorca participou de atos favoráveis à Frente Popular (contrária ao regime ditatorial que se vislumbrava), e, em março, assinou um telegrama enviado ao ex-presidente Getúlio Vargas (1882- 1954) em que pedia a liberdade do militante pelo Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes (1898-1990). Após ser fuzilado, Lorca se transformou em símbolo de resistência artística.
“Houve consternação em todo o mundo de língua espanhola, e a imprensa europeia também noticiou o assunto. Quase da noite para o dia Lorca tornou-se um mártir republicano”, diz o escritor irlandês Ian Gibson na biografia do poeta. Décadas depois, especialmente durante o movimento de contestação de valores da sociedade burguesa, na década de 1960, o poeta passou a ter seus escritos ligados aos movimentos de liberdade sexual em função da justificativa pela qual se deu sua morte: a homossexualidade. Na década de 1970, o poeta passa a ser associado também a questões políticas e sociais na América Latina, sobretudo nos países que passaram por ditaduras militares.
A causa da morte faz parte do passado sombrio da Espanha. Segundo Gibson, “o documento da morte de Lorca foi feito no Registro Civil quase um ano após o fuzilamento dele. O documento declarava que Lorca morreu ‘no mês de agosto de 1936 em consequência de ferimentos de guerra’. Para o mundo, dava a impressão de que ele tinha sido vítima de uma bala perdida”, afirma o biógrafo. A visão que o mundo teve foi que o escritor tinha sido vítima de bala perdida. “Não foi à toa que Lorca foi assassinado junto de dois homens que eram anarquistas”, defende Syntia.
Em 1968, ano em que fora imposto pela Ditadura Militar (1964- 1985) no Brasil o Ato Institucional Número 5 (AI-5), vincular poemas de Lorca, ou até mesmo montar suas peças de teatro nos grandes centros, representava desafiar, ainda que indiretamente, a Ditadura Militar. “Lorca se transforma em uma bandeira de luta. Existem relatos de pessoas declamando seus poemas em lugares públicos. Declamavam: ‘Verde que te quero verde’, e outros poemas aparentemente não políticos, interpretados como libelos contra a opressão pela forma como Lorca foi assassinado, como um mártir na luta pela República”, conta o ator e diretor de teatro Rodrigo Mercadante, em entrevista à Revista Cult.
POEMAS
VOLTA DE PASSEIO
Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.
Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.
Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.
Comtudooquetemcansaçosurdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.
Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!
GAZEL DO AMOR DESESPERADO
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.
Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
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