A narrativa feminina e telúrica em Goiás
Diário da Manhã
Publicado em 22 de novembro de 2017 às 01:47 | Atualizado há 2 semanasAs narrativas femininas em Goiás nasceram ainda no século XIX pelo arrojo e destemor de um pugilo de mulheres, dotadas de coragem e perseverança, no pensamento de expandir o conhecimento e indagar a posição no mundo muito limitado e hostil ao florescer do talento do chamado “sexo frágil”.
Uma das pioneiras foi Augusta de Faro Fleury Curado (1865-1929) que, em 1896, deixou escrito um diário de viagem do Rio de Janeiro a Goiás, com minúcias narrativas e poéticas sobre as peripécias dessa odisseia; que mostra, no conjunto de informações, o cotidiano do interior brasileiro nos primeiros anos República.
Augusta de Faro Fleury Curado utilizou-se de um velho caderno para anotar passo a passo os percalços de sua viagem desde o Rio de Janeiro até a Cidade de Goiás. Esse caderno, com manuscritos na caligrafia da autora, foi mais tarde compilado por sua filha Maria Paula Fleury de Godoy e publicado no Rio de Janeiro pela Editora Pongetti em l961, a sua segunda edição saiu pela gráfica da Universidade Católica de Goiás no ano de l985 e a terceira em 2006.
A linguagem de Augusta de Faro Fleury Curado é marcada pelo requinte, impregnada de termos franceses e também de conformismo diante dos fatos e dos acontecimentos que pululavam então; reflete o pensamento feminino goiano, assim como o brasileiro, desse período.
Ela já havia publicado antes, em São Paulo, o seu livro Devaneios. Deixou inédito Ramalhete de saudades, publicado um século depois.
As crônicas de Augusta de Faro iniciam-se na central do Rio de Janeiro, então capital Federal, em 23 de agosto de 1896, e terminam no Cais do Rio Vermelho, na Cidade de Goiás, em 20 de outubro do mesmo ano, ponto de chegada de sua família, ainda pela velha estrada do Ouro Fino, com chegada pelos lados da Carioca.
Em suas crônicas durante a exaustiva viagem para Goiás, Augusta de Faro descreve com lirismo e acentuados traços românticos os pousos sertanejos, ao destacar termos até então presentes na literatura, como “luar”, “crianças”, “lanternas mágicas”, expressões notadamente líricas; até mesmo o fato do casal estar sentado num toco de árvore ao luar, esquecidos, a conversar.
Durante trinta e dois dias em pleno sertão, de Araguari à Cidade de Goiás, a cronista relatou peculiaridades por onde passou e as dificuldades enfrentadas em todo o percurso, como chuva, sol forte, sereno, espinhos, animais peçonhentos, travessia de rios, sede, cansaço.
Esse diário, sutil e delicado, constitui a visão da mulher, como narradora, de um mundo distante, o grande sertão do oeste que chamavam Goiás.
A participação feminina nos relatos históricos de Goiás data de 1904, quando Eurydice Natal e Silva (1883-1970) publicou Notas de uma vigem ao Araguaia, seguidas de um conto intitulado Ecide, nas oficinas gráficas do jornal A República dirigido por Luiz Gonzaga Jayme, mesmo ano em que foi fundada a “Academia de Letras de Goyaz”, que teve a jovem contista aclamada como presidente.
Essa entidade foi fundada solenemente em 12 de outubro de l904 e contou com a participação de outros nomes da cultura goiana como Joaquim Bonifácio Gomes de Siqueira, Augusto Rios, Godofredo de Bulhões, Marcelo Silva, Luis do Couto e Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Em l906, Eurydice Natal casou-se com Marcelo Silva e foi residir em Niquelândia e com a sua ausência, a entidade se dissolveu.
O seu livro Notas de uma viagem ao Araguaia, publicado depois, em l939, pelas oficinas gráficas de O Popular, enfeixando o conto Ecide que fora publicado num pequeno livreto em l904, revelou o tom biográfico e histórico, ao descrever em minúcias as belezas do Rio Araguaia e da região inóspita daqueles ermos, então desconhecidos de uma maneira geral, o Cerrado alcunhado de feio e agressivo.
Numa linguagem simples, que se aproximava do coloquial, Eurydice Natal, como num diário de viagem, descreveu os acontecimentos, as pessoas, os fatos triviais; preocupada em fazer uma amostragem completa do cenário e dos seus tipos; porém atendendo à unidade dramática e unidade de ação que é característica importante no conto.
É perceptível no trecho do relato de Eurydice Natal, a preocupação da linguagem rápida, incisiva, ao marcar uma sequência de fatos que convergem para a descrição da viagem no Rio Araguaia. Numa relação explícita com o título, as “notas” da autora perfilam situações e costumes e, de maneira graciosa; rememoram hábitos de moças e rapazes nas águas remansosas do Araguaia, naqueles dias de l904.
A autora, em seu relato, evidencia acontecimentos característicos daquela época, ao destacar a chegada a Leopoldina, hoje a cidade de Aruanã, depois de brincadeiras de jovens; fatos estes que eram comuns naquele tempo.
Eurydice Natal e Silva fez sua literatura centrada nas impressões pessoais e na observação da vida cotidiana de seu tempo. Nada de digressões psicológicas ou atavios de perquirição intimista, e, sim, textos em que narra de forma simples o cotidiano de seu tempo e suas impressões de mundo.
Ao se observar a unicidade de espaço, percebe-se que o relato de Eurydice é restrito, ao revelar apenas um curto trajeto do Rio Araguaia para, em seguida, destacar o efeito da chegada ao porto de Leopoldina. Ao abolir os pormenores, a narradora sucintamente relata pequenos detalhes para precipitar-se ao final.
Nesse mesmo viés, a escritora Mariana Augusta Fleury Curado (Nita – 1897-1986) teve presença na vida literária goiana desde o princípio do século XX, ao destacar-se pelo ecletismo de sua produção; sendo contista, cronista, pesquisadora, genealogista, romancista, novelista, historiadora, biógrafa; ao deixar um estilo marcado, também, pela ideia de síntese narrativa e pelo tom trágico de muitas de suas obras, característica bem marcante que se nota em muitos de seus personagens.
No ano de 1969, Mariana Augusta Fleury Curado publicou o livro Vida, seguido de Rua do Carmo e Do meu cantinho. Eclética e polígrafa, em diferentes modalidades. Suas narrativas primam pela descrição rápida e o estilo mais dramático das cenas, ao explorar situações misteriosas e tradicionais, ligadas ao folclore e costumes de Goiás.
Também escritora polígrafa, Maria Paula Fleury de Godoy (1894-1982) destacou-se tanto como contista, cronista e poetisa, ao trazer a modernidade para as nossas letras a partir dos ano de 1920, juntamente como Leo Lynce e João Accyolli.
Como cronista, Maria Paula Fleury começou bastante jovem a sua atuação, ainda adolescente no ano de 1911, com manuscritos interessantes, ao narrar, de forma epistolar, sobre o cotidiano da Cidade de Goiás onde vivia.
Também deixou obra extensa em diferentes estilos como A longa viagem, Velha casa, Nós e elas, Sombras, Realidade e sonho. Teve destaque nos anos de 1920 como a primeira mulher goiana conhecida nacionalmente por meio do movimento literário da Semana de Arte Moderna.
Era uma narradora de grandes recursos de estilo e forte personalidade e foi grande colaboradora do Jornal feminino O Lar, que circulou na Cidade de Goiás nos anos de 1920, dirigido por Oscarlina Alves Pinto (1888-1949).
Illydia Maria Perillo Caiado (1895-1972) foi uma das cronistas do Jornal A Rosa, em 1907, gerenciado por Heitor de Moraes Fleury. O tema das crônicas de Zizi Caiado está ligado à evocação das belezas naturais de Goiás no cenário de seu casario colonial, aliado ao seu deslumbrante luar daqueles dias em que a iluminação era pouca e estrelas e luares eram bastante destacados, ao mostrar que ainda no início do século XX, quando o sudeste brasileiro já vivia acelerado desenvolvimento e preocupava-se em sua fase pré-modernista em valorizar o nacional, buscado pela pesquisa da realidade e dos conflitos, o nosso Estado encontrava-se num pesado letargo, distanciado de inovações literárias e progressistas. Essa cronista regionalista da Cidade de Goiás não deixou livro publicado.
Da intensa colaboração de Maria Ferreira de Azevedo Perillo (Lilia – 1906-1994) em O Lar são encontradas crônicas de abordagem histórica e sentimental. A autora faz uma definição do processo histórico de formação de Goiás, ao evocar o bandeirante Bartolomeu Bueno, ao valer-se de uma linguagem carregada de termos elegantes e excessiva adjetivação, própria das longas descrições.
Geograficamente, Maria Ferreira evoca o Lugar, as suas especificidades, os sentidos dos Cerrados, as matas como labirintos verdes e então infindáveis de verdura, os campos, o Cerrado enfim. Era o “período sincrético da literatura goiana” que destaca a mistura de gêneros, a tentativa de modernidade temática, mas com formas ainda arcaicas.
Cora Coralina (1888-1985) iniciou sua carreira literária como cronista e não como poetisa, como tantos pensam. Foi na Revista Informação Goyana, iniciada em 1917 que a literata da Casa Velha da Ponte teceu sua visão de mundo. Mais tarde também deixou um livro de contos intitulado Estórias da Casa Velha da Ponte.
E evocou justamente o Cerrado. Na crônica “Ipê florido”, Coralina evoca, num português castiço, as características da singular espécie do Cerrado, tão lembrada e discutida. Elucida a imponência do mesmo, visto de longe. Fala de seu embelezamento à natureza dadivosa. Ele passa a ser o ícone da lembrança de um passado perdido.
Ressalta sua presença sempre distinta no Cerrado, suas cores na paisagem e sua proteção aos pássaros e as pessoas. É um texto de quase cem anos, com uma linguagem rica e adjetivada para a época.
Mas, o destaque de Cora Coralina foi o seu sucesso já na velhice e a doçura de seus versos que evocam as belezas da Cidade de Goiás.
Graciema Machado de Freitas (l906-l985) foi a voz feminina que vinha de Jaraguá para a Cidade de Goiás ao anunciar o pensamento libertário que já ecoava no interior do Estado, por meio de jornais que nasciam como símbolo de resistência ao abandono e isolamento das cidades em pleno sertão como Itaberaí, Jaraguá, Bela Vista de Goiás, Palmeiras de Goiás, Piracanjuba e Corumbá de Goiás.
Nessa época, Graciema Machado de Freitas, que assinava seus escritos como Grace Machado, já colaborava com jornais como O Itaberay, O Lar, O Paratodos, O Jornal, além de revistas cariocas e jornais de São Paulo, ocorrendo mesmo que uma crônica sua sobre Luis Carlos Prestes ganhou primeira página de um jornal no Rio Grande do Sul.
Mesmo com o acúmulo de funções como professora em Jaraguá e, após o casamento com o farmacêutico e político Clotário de Freitas, o nascimento de dez filhos, sempre encontrou tempo para a escrita e para atualização de suas leituras em francês, língua de sua predileção.
Observa-se, em sua produção, o uso de uma linguagem mais despojada da excessiva adjetivação, períodos mais curtos e marcados pela clareza das ideias e a definição dos temas. Era o recurso da novidade, da rapidez, da expansão do pensamento sem o burilamento excessivo do léxico, marcas de modernidade que também se fizeram notar no mesmo período.
Mostra a visão do cerrado novo, o “extrapolar das campinas”, campos novos, campos abertos á imaginação, na luta progressista que viria logo adiante, com a mudança da capital. Personifica o Cerrado na dicotomia entre atraso e inovação.
Infelizmente Graciema Machado de Freitas não deixou livro publicado.
Ada Curado (l9l6-l999) teve uma carreira literária eclética entre romances, contos e livros de poesia. Deixou obras como O sonho do pracinha, Morena, Paredes agressivas, Figurões, Nego rei e Acalanto que foram bem recebidas pela crítica e a fizeram conquistar uma cadeira na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a filiação em entidades como a União Brasileira de Escritores, seção de Goiás e Associação Goiana de Imprensa.
Ada Curado publicou o seu primeiro livro, O Sonho do Pracinha, que reuniu contos que alcançaram sucesso imediato, aplaudido pela crítica de Goiás e de outros Estados. Publicou o seu segundo livro, o romance Morena, em que registrou, com muita propriedade, o folclore goiano.
Com o selo da livraria Brasil Central, no ano de 1966, Ada Curado publicou o livro de contos Nego rei, que recebeu elogios críticos de Orígenes Lessa, Xavier Júnior, Carmo Bernardes e do Jornal das Letras do Rio de Janeiro.
Mesmo ao iniciar sua produção literária com contos, Ada Curado não se prendeu apenas a esse gênero, ao mostrar talento em outros trabalhos, revelando-se verdadeiramente polígrafa.
Em 1976, enveredou pelo campo da produção dramática, publicando, pela Gráfica Oriente, a peça teatral Sob o tormento da espera, premiada num concurso da Caixego. Em 1977, estreou no romance com Paredes agressivas, publicado pela mesma editora, registrando o momento histórico e político brasileiro dos conturbados anos 1930.
A escritora e professora Ayda Félix de Souza (1916-1992) foi contista, com duas obas publicadas e muitas colaborações em jornais e revistas. Seus contos possuem vivacidade e movimento, trágicos em grande maioria, exprimem o modo peculiar da vivência sertaneja em muitos deles. Em seu livro É a noite, destaca sobre a vivência sertaneja no sertão de Goiás, em meio ao Cerrado:
Marieta Teles Machado (1935-1986) teve destaque como educadora goiana, biblioteconomista pioneira em Goiás; literata, dedicada às causas de nosso Estado. Firmou-se como intelectual, amante dos livros e da história.
Seu livro Os frutos dourados do pequizeiro, cerradeiro a começar pelo título, evoca o nosso patrimônio natural, ao evidenciar sua importância e seu valor para a história, a sociedade e a cultura. Nele, evoca os buritizais, as lagoas, os vales, os rios, os fundos de várzea do Bioma. Destaca, poeticamente, a presença dos periquitos barulhentos, as parasitas floridas, o brilho das águas. Fala de hinos naturais a tocarem na Lagoa Santa.
Deixou obra extensa, ao enveredar inclusive pela literatura infantil em Santo Antonio das Grimpas e Romãozinho.
Maria do Rosário Cassimiro, educadora, pioneira do trabalho educacional feminino na UFG, como sua primeira Reitora, destaca-se também, nos últimos tempos como contista e cronista.
Seu livro Umas e outras é dividido em causos e crônicas. São 14 casos e 13 crônicas. Na parte dos casos, há um interessante, jocoso e engraçado, que narra sobre um francês que queria comer um prato típico em Goiás, no interior, naqueles tempos antigos, mas não foi entendido.
Revela-se excelente narradora dos causos sertanejos de Goiás dos tempos de outrora.
Também Ereny Fonseca de Araújo (1913-1999) em seu livro Histórias de uma vida, evoca os tempos antigos, numa narrativa de memórias, principalmente das cidades de Trindade e Anicuns, onde residiu.
Nair Perillo Richter (1915-2000) também natural da Cidade de Goiás, foi uma das primeiras cronistas do jornal O Popular, a partir de sua fundação em 1938, a convite de seu fundador, jornalista Jaime Câmara. Nesse jornal, Nair Perillo tinha uma coluna com o título de “No mundo das letras” com crônicas que revelavam seu estilo sentimental.
Muito cedo Nair Perillo iniciou sua colaboração nos jornais da Cidade de Goiás, como A Razão, fundado ainda na década de 20, órgão dirigido por Jaime Câmarae Joaquim de Carvalho Ferreira.
Foi colaboradora do jornal Cidade de Goiás, fundado no final dos anos 1920 pelos jornalistas Goyaz do Couto e Garibaldi Rizzo. Com a fundação da Associação Goiana de Imprensa em l0 de setembro de l934 por Albatênio Caiado de Godoy, foi escolhida como membro fundador da entidade em sua histórica fundação.
No ano de 1974, publicou o seu primeiro livro de crônicas: Canto de Cigarra, que se esgotou logo em seguida, sendo também objeto de estudos das alunas do Instituto de Educação de Goiás. Em 1981 publicou outro denominado Tempo de sonhos, com crônicas e reminiscências.
Regina Lacerda (1919-1992) foi um grande ícone da poesia de Goiás, notadamente a telúrica. Suas imagens evocam o Cerrado, nossas tradições, folclore e costumes. Dedicou-se, também, a descrever poeticamente o Cerrado, com destaque para o seu sentido de tradição e de continuidade.
Regina Lacerda também foi outra prosadora de Goiás que utilizou o Cerrado e a goianidade em seus versos. Telúrica, aborda a alma dos caminhos e os sentimentos das estradas. A ligação do homem com a natureza, a simbiose entre os animais e os homens, na busca de uma harmonia pelo natural.
Nice Monteiro Daher (1915-2011) foi um nome na cultura goiana. Estudou no Colégio Santana em Goiás, onde fez Curso Normal completo. Desde então, iniciou sua vida jornalística. Escreveu praticamente em todos os jornais de nosso Estado e em alguns pelo Brasil. Foi membro da Associação Goiana de Imprensa, por proposta de um de seus fundadores Dr. Albatênio de Godoi, então seu Presidente, logo depois de sua fundação.
Colaborou ativamente em Jornal de Notícias, A Razão, Cidade de Goiás, O Anápolis, Folha de Goiaz, O Popular, O Cinco de Março. Colaborou, por meio de intercâmbio intelectual, em O Taubaté, A Voz de Varginha e Jornal de Pedra Branca. Colaborou em nossas revistas Oeste e Revista da Educação. Fora de nosso Estado, escreveu nas revistas Jornal das Moças, Fon-Fon e Revista da Semana, no Rio de Janeiro.
Deixou seus trabalhos também em diversos jornais, como síntese de sua vida a serviço da literatura e das artes. Um de seus poemas, “Dentro de uma saudade”, foi gravado por Eli Camargo. Com Ivan Lins e Marcelo Barra, mantinha diálogo musical.
Em sua obra, Nice Monteiro muito escreveu sobre o Cerrado e a natureza goiana. Em seu livro de estreia, destaca por meio do poema “Névoa”, toda a atmosfera vilaboense ao ver e sentir o Cerrado em chamas, na altura dos grandes morros que circundam a cidade. Relata o fogo tostando o mato, as labaredas vermelhas nas costas dos morros, e narra o Cerrado queimado como “as montanhas viram tela negra unida à confusão do infinito”; destaca como belo e assustador espetáculo.
Belkiss Spencière Carneiro de Mendonça (1928-2005), além de pianista, de fama internacional, foi também cronista e pesquisadora. Sua obra literária tem especial relevo em recordar os primórdios de Goiânia e os tempos da antiga capital, assim como o chão do Cerrado e a natureza exuberante goiana.
Em seu livro de crônicas Andanças no tempo, a cronista revisita a história sob vários nuances, sob vários pontos de vista. Em algumas destaca sobre o Cerrado e suas variantes entre o passado e o presente. Em “As viagens de ontem”, Mendonça (2006, p. 37) narra sobre as peripécias de se viajar de Goiânia a Brasília nos primeiros tempos, com carro que atolava e as esperas no Cerrado, eram compensadas com a colheita dos frutos disponíveis: “Como a pressa de chegar estava fora de cogitação, as paradas eram aproveitadas para se colher gabirobas. Redondinhas e doces, ficavam escondidas nas touceiras e o “cuidado com as cobras” era o aviso constante, pois também elas tinham bom gosto, sabiam apreciar o que era bom”.
A mulher passou nesse período a compor o cenário do romance histórico goiano. Nessa época destacaram-se as romancistas Rosarita Fleury (1913-1993) e Ada Ciocci Curado (1916-1999). Rosarita Fleury lançou em 1958 o seu romance histórico Elos da mesma corrente, hoje na 4ª edição, que remontou o quadro social vilaboense do século XIX, em relação aos conflitos sociais e familiares.
Em 1985, Rosarita Fleury lançou o segundo romance histórico, intitulado Sombras em marcha, em que relata as peripécias vividas pelos fugitivos matogrossenses da Guerra do Paraguai e a aclimatação dos mesmos ao ambiente restrito e fechado de Vila Boa de Goiás. Rosarita foi professora, funcionária pública, membro da Academia Goiana de Letras e fundadora da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, entidade que presidiu por 23 anos.
Ada Curado (1916-1999) foi poeta e prosadora. Em 1958 também publicou o seu romance histórico, intitulado Morena, em que relata a força feminina no ambiente rural goiano, nas figuras emblemáticas dos personagens Morena e Pedro, símbolos da envergadura moral sertaneja e enveredando mais tarde, em 1979, pelo romance histórico urbano intitulado Paredes agressivas, em que traz a história de Goiânia como pano de fundo e a questão da força feminina no alavancar da história.
Também, Maria Helena Fernandes Garrido (1944) publicou o romance Obstinação, em que tece os dramas familiares e humanos na região de Cachoeira Alta, no sudoeste goiano, nas figuras de personagens antológicos como Ofélia, Higino e Jurema. Outra romancista fez sua estreia no ano de 1974: Alice Godinho Batista (1939), com o romance Um raio de luz na noite escura, em que, por meio de uma narrativa forte, entremeada de sublimes emoções, evoca também dramas específicos de um tempo, na figura emblemática da família.
Em 1978, a romancista morrinhense Nilza Diniz Silva (1925) fez sua estreia na narrativa ficcional goiana com o romance Passaporte para a grande viagem, publicado pela Editora Oriente. Nesta obra, por meio do personagem Osvaldo, a narradora recria quadros familiares de outrora, evocando, também, pequenos dramas cotidianos que remontam o quadro de nossa existência sobre esse mundo.
Ana Braga (1923) é outra prosadora importante na história literária goiana com seu livro Raízes, com crônicas telúricas de grande beleza a evocarem a região do antigo norte goiano.
Outros romancistas também enveredaram pela narrativa ficcional em romance de forma histórica como Maria Eloá de Souza Lima (1923) em Serra do cafezal, Mariquinha do Sobrado e Ana Prudenciana; Marieta Jayme Figueiredo em Uma volta ao passado, Maria de Lourdes Reis em E as águas cobriram tudo; Nelly Alves de Almeida (1916-1999) em Tempo de ontem.
Outros nomes nos anos de 1980 podem ser lembrados no romance histórico goiano como Hilda Gomes Dutra Magalhães (1961), que publicou, em 1986, o seu romance Estranhos na noite, com fortes fatos históricos inseridos; seguido de A herança, em 1990, com temática histórica e social.
A partir do ano 2000 outros autores passaram a compor o cenário do romance histórico em Goiás como Adelice da Silveira Barros, que publicou em 2000 o romance Um jeito torto de vir ao mundo, com densa e complexa narrativa em instigante história.
Célia Coutinho Seixo de Britto (1914-1994) em sua produção em crônicas Nossos vestidos brancos, de 2017, destaca sobre os usos e costumes da Cidade de Goiás, os hábitos, usos e modismos dos tempos da antiga capital. Lançou em vida o importante livro A mulher, a história e Goiás.
Mais recentemente, no ano de 2011, a escritora Custódia Wolney, autora de O preço de um sonho, sobre a saga de Brasília e Kalunga, que narra sobre uma mulher, uma história, uma vida e todos os percalços vividos por uma comunidade praticamente isolada do mundo.
Edla Pacheco Saad (1918-1997) romancista e historiadora, dedicou-se ao romance histórico em Goiás, de fato, fez história ao evocar o período compreendido entre o século XIX e XX, com a tetralogia “Memórias do velho Zaca”, em quatro alentados volumes. Em muitos deles, há belas descrições de regiões do Cerrado, que são cenários para os romances.
Na primeira obra de sua tetralogia, na sequência da mesma história passada com uma família na Cidade de Goiás, evoca as lembranças do personagem Zacarias Perdigão, suas viagens pelos campos e sertões goianos, a recordação das flores, dos malmequeres dos campos, o vento das campinas, as flores silvestres, o canto dos periquitos nos buritizais.
No segundo romance da tetralogia, intitulado Paredes cinzentas, também exorta sobre o retorno do personagem à Cidade de Goiás, a descrição do cenário vilaboense, os morros verdejantes, salpicados de ipês, o céu azul, as barrigudas, as lixeiras em flor, as rolinhas, o cenário bucólico de crianças a correrem atrás das galinhas. Era toda a vida campestre com perfume de sândalo pelos quintais.
Já na terceira obra da tetralogia, intitulada Um homem enfrenta o destino, também exorta sobre a natureza e sobre a vegetação ribeirinha; o rio Araguaia com suas espumas, imagens poéticas do sol e das águas, o encantamento de todo um mundo pela transparência sutil das águas que pareciam eternas.
Armênia Pinto de Souza (1910-2005) foi romancista, poeta e documentarista. Sua obra em romances é extensa e a maioria deles pauta pela história sentimental com cenários vivenciados na Cidade de Goiás. Em muitos, evidencia a existência de seus personagens em relação ao Cerrado.
No seu romance memorialista O buriti do sereno, com o próprio título a já evocar uma das mais belas espécies do Cerrado, destaca sobre os velhos caminhos do sertão, a estrada do sol sempre brilhante, a areia a brilhar com suas faíscas de mica, os odores das matas e do Cerrado próximo, a lembrança dos caminhos com as suas particularidades que a marcaram para sempre, ou seja, a estradinha da fazenda Buriti do sereno, hoje um bairro da cidade de Senador Canedo, tragada que foi pela especulação imobiliária da região metropolitana de Goiânia.
Lena Castello Branco Ferreira de Freitas possui trabalhos sobre Goiás, sobre as cidades, famílias, economia e sobre a natureza goiana.Seu livro de pesquisa histórica Arraial e Coronel – dois estudos de História social, é uma referência aos estudos de história goiana, numa época em que pouca produção era publicada na área, marcando, portanto, o seu tempo, como investigação da vivência familiar e social da região de Meia Ponte, hoje Pirenópolis e das distantes regiões de Piauí e Maranhão.
Seu livro de contos Novilha de raça e outros contos também destaca a força narrativa e ficcional da grande historiadora, em pequenas histórias de curiosos fatos ligados ao nosso povo e as nossas tradições.
Maria Julia Franco, contista, folclorista, cantora e professora, apresenta uma obra ligada ao chão de Goiás, às tradições goianas. Seu livro Seios da terra é uma obra de caráter telúrico, a reviver a existência do campo, nas lides em meio ao Cerrado.
Em seu livro, destaca sobre o cotidiano da fazenda, a diferença entre comida de gente velha e comida de crianças, o grande pomar que era o Cerrado, com suas variadas frutas, sempre aproveitadas pelas crianças daquele tempo.
É um livro de expressão e força narrativa de Maria Julia Franco, nas vivências interioranas, marcadas pela presença forte do homem do campo com seus valores e costumes, notadamente da região da antiga São Sebastião do Alemão, hoje Palmeiras de Goiás.
No que concerne à narrativa telúrica e feminina em Goiás, o ano de 2017 foi pródigo nas produções de estreia de duas grandes narradoras, Carmem Gomes no conto e causos e Adélia de Freitas, no romance.
Duas notáveis mulheres, dignas e honradas, que marcam a vida literária de Goiás, na expansão de seus talentos nas letras.
Adélia de Freitas, natural de Barro Alto, neste Estado, professora de Língua Portuguesa em nível secundário e superior, pesquisadora, publicou o romance Chica Machado – Um mito goiano, que evoca a esquecida história das minas de Cocal setecentista e a figura mitológica da “escrava, negra, obesa, vitoriosa” para a condição de rica senhora, aos moldes de uma Chica da Silva, das páginas de Agripa Vasconcelos.
Adélia de Freitas, em rica narrativa, desfila, aos olhos do leitor, todo o imaginário daquele fundo de sertão, marcado pela brutalidade masculina e submissão feminina, ainda mais na condição de mulher/escrava/objeto de todas as maneiras, como burro de carga para todo e qualquer serviço.
Calcada na tradição oral e na pesquisa, a obra de Adélia de Freitas aparece densa de significados. Rica de ornamentos históricos e linguísticos, Chica Machado aparece ao leitor em toda sua opulência e desgraça. Personagem que não se esquece, diante da tirania dos instintos.
Não se pode cobrar da narradora a verdade dos fatos, perdidos eles na poeira imemorial de todos os tempos. Nem tal fato ofusca a obra, ao contrário, abre oportunidades de divagação do próprio leitor em torno de algo tão grandioso que pode ter ocorrido nas minas perdidas de Cocal, assim como as de Pilões, as mais distantes e esquecidas daquele tempo.
O romance abre passagem para a centralidade de uma grande narradora goiana, telúrica e polígrafa na moderna história literária de nosso Estado. O brilho da obra, além do ouro velho que serve de pano de fundo da narrativa, é o entrechoque de emoções e desvarios; cobiça, riqueza e miséria de um Goiás setecentista; revelados pela argúcia de um coração de mulher.
Como romancista, Adélia de Freitas é a grande revelação, feliz aparecimento nesse ano de 2017, no reflorir dos galhos telúricos da prosa feminina no Estado de Goiás. Merece a divulgação e todos os aplausos de público e de crítica. Segue o sendal idealista de Rosarita Fleury, Edla Pacheco Saad, Armênia Pinto de Souza, Ada Curado, romancistas de saudosas memórias. Adélia é o reflorir do tempo!
Também, como prosadora, em curta narrativa; o nome de Carmem Gomes desponta no cenário da literatura feminina, telúrica e regionalista, nesse Goiás de 2017. Grande prosadora, com estilo e naturalidade, criou pequenas narrativas que enfeixou no sugestivo título Beira de fogão – Histórias do borralho, em que condensou, além de suas memórias do tempo e do espaço, todo o talento de uma prosadora de síntese.
Com prefácio do grande escritor veterano, Luiz de Aquino, ícone de nossas letras, a obra de Carmem Gomes surge no esplendor de sua intenção ao mostrar pequenos diamantes de brilho intenso, em histórias triviais, rápidas, contadas mesmo ao pé do borralho, no “rabo” do fogão de lenha, para acordar essências e sentimentos que o tempo jamais será capaz de apagar.
Na obra telúrica e rica de Carmem Gomes encontra-se a essência do que somos, com o pé na roça, numa casa antiga, de telhas encardidas de picumã e de grandes fogões que aqueciam ternuras derramadas. A figura dos mais velhos a contarem histórias, a argúcia desses narradores, os causos de assombração ou alumbramento, abrindo portas da imaginação infantil, ao evocarem as nossas mais profundas raízes.
O pequeno/grande livro de Carmem Gomes com suas curtas histórias, mostra, na essência, que a alma feminina se derrama, em qualquer tempo, ao lampejo das emoções tantas, guardadas na alma. Fruto de suas lembranças, costuradas com a rica imaginação, a autora mostra-se inteira, nos pedaços de histórias, como a mulher telúrica, vinda da velha Cristianópolis, do antigo Julgado de Santa Cruz de Goiás setecentista, com a marca de homens e mulheres, na labuta da terra, que repassaram o gosto telúrico do recordar.
A obra não é tecida apenas pela advogada, historiadora ou psicopedagoga, mas pela mulher/chão, que, ao voltar para as suas raízes, num mergulho abissal em si mesma, foi capaz de encontrar essências e trescalar perfumes de outrora, com os sabores e cores do mato, das beiras dos corguinhos, dos riachos e biquinhas d’água das fazendas, os passarinhos com seus mundos pequeninos.
Adélia de Freitas e Carmem Gomes, duas prosadoras na esteira do tempo da literatura telúrica e regional de Goiás que abrem galhos fecundos e alimentam as raízes da prosa da mulher de Goiás, secular e imponente e lançam, ao futuro, o pensamento sutil e belo, no diamante dos dias ensolarados ou nas noites de luares derramados no firmamento da alma goiana!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. Pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta. bentofleury@hotmail.com
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