A tortura nos versos de Alex Polari
Diário da Manhã
Publicado em 23 de outubro de 2018 às 01:10 | Atualizado há 2 semanasNatural de João Pessoa (PB), o poeta Alex Polari de Alverga tinha 20 anos e era membro da organização clandestina Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) quando foi preso no Rio de Janeiro, na década de 1970. No cárcere, foi barbaramente torturado e testemunhou as atrocidades cometidas contra o militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel (o diretor Sérgio Rezende levou essa história para o cinema, em 2006, com os atores Patrícia Pillar e Daniel de Oliveira no papel de mãe e filho, respectivamente).
Aos 26 anos, em 1971, Stuart foi arrastado por um jipe pelo pátio interno da base aérea do Galeão. Seu corpo nunca fora encontrado. Acredita-se que ele tenha sido jogado em alto-mar ou enterrado como indigente. O mesmo destino teve a estilista, de acordo com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1988. Com sede de justiça, Zuzu denunciou as arbitrariedades praticadas pela Ditadura Militar (1964-1985) à imprensa e aos órgãos internacionais, tendo apresentado, em 1971, um desfile/protesto no consulado brasileiro em Nova York. Em 1976, agentes da repressão forjaram um acidente automobilístico que a matou.
Alex Polari, por sua vez, passaria seus 20 anos no xilindró. Condenado a 80 anos de prisão, foi libertado apenas aos 29 anos, em 1980, após a Lei da Anistia (1979) ter sido sancionada pelo governo de João Batista Figueiredo (1918- 1999). Dois anos antes, em 1978, publicara um livro, Inventário de Cicatrizes, com poesias que escreveu no período em que esteve preso. Os versos são duros, pesados, tristes e revoltantes – um dos poemas é dedicado a Stuart Angel. Verdadeiro registro do que milicos sádicos fizeram nos porões da ditadura, que atualmente conta com saudosistas que jamais compreenderam os crimes contra a humanidade cometidos no período.
Hoje, aos 63 anos, Polari se dedica à doutrina religiosa Santo Daime. “Vi companheiros desaparecerem no cárcere… mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão”, contou o poeta ao jornalista Bruno Torturra, em 2012. “Minha geração viveu um momento muito profundo e muito duro da história. Éramos jovens, idealistas e libertários. Era o sonho revolucionário do mito de Che Guevara, maio de 68, primavera de Praga. E também do sonho hippie, do LSD, da liberdade sexual, Marcuse, Reich, tudo isso”, disse.
Conheci os poemas de Polari sobre tortura no site Socialista Morena, da jornalista Cynara Menezes. O primeiro foi certamente um texto que me chocara do início ao fim. Difícil esquecê-lo. Nos 50 anos do golpe militar, acontecimento que chegara a ser saudado por viúvos da brutalidade fardada em 2014, ninguém se lembrou de editar o famoso livro de Alex, que poderia ter tanto para falar para os jovens sobre aquela era das trevas, parafraseando o escritor suíço Joseph Conrad (1857-1924) em Coração das Trevas (1899). Como escreveu Cynara: “mais do que qualquer recriação do cinema: está tudo ali, sangrando em forma de poesia”.
Por conta da ascensão da barbárie no Brasil, o DM Revista reproduz quatro poemas de Alex Polari que fazem parte do livro Inventário de Cicatrizes. Confira:
Os Primeiros Tempos da Tortura
Não era mole aqueles dias
de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.
Havia dias que as piruetas no pau-de-arara
pareciam ridículas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.
Havia dias em que todas as perspectivas
eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo cética
de não tomar porradas nem choques elétricos.
Havia outros momentos
em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como um aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro político.
Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.
Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)
Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
Trilogia Macabra: III – A Parafernália da Tortura
Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,
alguns resquícios medievais
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design
não conseguiu ainda amenizar
assim como a prepotência, chacotas
cacoetes e sorrisos
que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
polido metálico
quase austero
algo moderno
com linhas arrojadas
digno de figurar
em um museu do futuro.
Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
mais nojentas e chocantes.
Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
com muito maior urbanidade,
sem precisar corar as pessoas bem educadas,
sem proporcionar crises histéricas
nas damas da alta sociedade
sem arrefecer os instintos
desta baixa saciedade.
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