Aqui é o fim do mundo
Diário da Manhã
Publicado em 6 de março de 2018 às 22:35 | Atualizado há 1 semanaEu, brasileiro, confesso não entender Torquato Neto. Mas duvido agora se é preciso, nem viver é preciso, como diria Fernando Pessoa. Inclusive, penso que Torquato e Fernando são aqueles artistas que conversam, são amigos íntimos mas infelizmente estão separados por períodos históricos. Enfim, não entendo como toda palavra utilizada por Torquato consegue guardar o fim e o começo, dentro de um só gesto. Torquato não era profético, apesar do espírito inquieto, que muitos amigos citam, não pretendia salvar a vida de ninguém, muito pelo contrário, em um poema que virou letra na voz de Jards Macalé, o poeta dizia que sua intenção era “desafinar o coro dos contentes”.
O filme Todas as Horas do Fim que conta a vida de Torquato Neto através de entrevistas e poesias também não promete explicar Torquato. Nada disso. O filme, no máximo, distribui informações e indícios sobre o trabalho, a vida e o seu jeito singular. A estréia nacional ocorre na próxima quinta-feira (8/3). Em Goiânia, o filme será exibido no Cine Cultura, na Praça Cívica.
COGITO
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
Eu, brasileiro, confesso que fico emocionado sabendo mais sobre a vida do poeta Torquato Neto, filho do Heli da Rocha Nunes e da Maria Salomé da Cunha Araújo. Nasceu em Teresina, no Piauí, no ano de 1944 e dia 8 de novembro. Morreu muito cedo, dizem os amigos, aos 28 anos, quando resolveu dar fim na própria vida. Vejo o rosto sorridente nas fotos, nos poucos vídeos, fico emocionado. Torquato é tão brasileiro quanto eu e quanto outros vários. Sem piegas nacionalistas com pé no passado, ele sabia que as raízes eram importantes, mas inventar algo novo era mais importante. Tanto é que não se limitou, jamais, ao fazer poético. Da escrita passou para a música, quando fez amizade com Caetano Veloso e Gilberto Gil, depois foi para o cinema, fascinado pela Super 8. Alma inquieta de poeta, certo? Quando escuto, leio ou vejo algo com autoria dele me sinto confortável e penso: é isso aí, bicho! E vou ao mesmo tempo melancólico e agitado, viver todas as horas do meu fim.
Sobre as letras, Torquato afirmava que a música era o que havia de mais popular no Brasil naquele momento, e assim fazia sua poesia circular dentro daquela nova geração de músicos. Foi ainda com 16 anos que se mudou para a cidade de Salvador, na Bahia, e conheceu Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, grandes amizades e parcerias surgiram desse contato. Em 1962, resolveu ir para o Rio de Janeiro, a fim de cursar uma universidade de jornalismo, mas nunca chegou a se formar, de fato. Apesar disso, trabalhou ativamente na imprensa carioca nas editorias de cultura, como por exemplo, no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e no Última Hora.
LITERATO CANTABILE
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
No jornal Última Hora criou a coluna Geleia Geral, onde divulgava e falava sobre cultura, de maneira lisa, como nos poemas, sempre duvidando e concordando, sempre começo e fim numa mesma frase. Participou ativamente como pensador, compositor e poeta durante o movimento Tropicalista. Chegou a escrever um breviário sobre o movimento, chamado de “Tropicalismo para Iniciantes” onde dizia que: Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Torquato era a favor do experimental, de tudo aquilo que poderia ser inventado ou recriado e até mesmo destruído. “Experimentar o experimental” é uma frase Hélio Oiticica, amigo de Torquato, que influenciou essa vontade do novo no poeta. Outro parceiro que navegou com Torquato foi o poeta Waly Salomão. Juntos criaram a Navilouca, edição única, revista importantíssima da cultura brasileira.
TROPICAL MELANCOLIA
O ano de 1960 veio com o Ato Institucional 5. Torquato Neto viajava pela Europa e Estados Unidos com a mulher, Ana Maria Silva de Araújo Duarte. Ficou sabendo que os parceiros Gil e Caetano foram exilados e comentou em uma carta “ainda bem que saí daí há tempo” e concluiu “esse país deve estar chato”. Em Londres, entrevista Jimi Hendrix e concede uma entrevista para à BBC. Volta para o Brasil em 1970, ano do nascimento do seu filho Thiago. Naquela época, talvez pela dureza do Regime Militar ou por outros motivos mais profundos, o alcoolismo era um problema e Torquato passou por uma série de internações.
Em uma das clínicas, em 1971, chegou a escrever para o parceiro Hélio cartas. Em uma delas diz: “O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma. Todo o mundo virou uma espécie de Capinam (esse é o único de quem eu não gosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral é isso mesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui é escapismo, vanguardismo de Capinam que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado, ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio.” Contam que Torquato ainda escrevia e criava de dentro dos manicômios.
Saindo do manicômio, os amigos acreditavam na melhora mas sabiam das tendências suicidas do poeta, desde sempre. Torquato Neto se matou um dia depois de 28º aniversário, no ano de 1972. Depois de voltar de uma festa com alguns amigos, trancou-se no banheiro, abriu o gás e fim.
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