Assumindo os papéis
Diário da Manhã
Publicado em 10 de dezembro de 2017 às 01:04 | Atualizado há 2 semanasUm jovem itaberino de 24 anos chamado Walacy Neto pode muito bem representar o espírito da nova literatura local. Isso porque desde quando chegou a Goiânia não se acomodou com o talento e passou a assumir diversos papéis, além do de escritor e poeta: foi sua própria editora e distribuidora, e deu espaço a outros autores anônimos. Sempre publicou seus poemas e contos em fanzines que vendia de mão em mão – e gosta de fazer disso até hoje. Foi mais longe e criou em 2013 o próprio selo, o Zé Ninguém – cujo nome nasceu da ironia despretenciosa de publicar nomes desconhecidos.
Então, o poeta, escritor e jornalista, que atua ainda como repórter do DMRevista, já possui uma história de resistência pra contar dentro e fora dos livros. E suas ações culminaram para a concretização de um desejo que vem perseguindo há dois anos: a publicação de Muito Pelo Contrário, seu primeiro livro de contos e poesia, que será lançado hoje, às 19 horas, no Evoé Café Com Livros.
A obra é uma publicação da Nega Lilu Editora com apoio Fundo de Arte e Cultura de Goiás. E na estreia de Walacy nos livros, a editora organizou uma produção cuidadosa. Para começar, a obra traz ilustrações feitas em nanquim e grafite sobre papel do artista goiano Pedro Kastelijns, que hoje estuda e mora em Amsterdã. “Não ilustrei somente o que vi, mas a atmosfera provocada pela leitura de Muito pelo contrário”, lembra Kastelijns.
Também integram a equipe deste projeto editorial a designer gráfico Beatriz Perini, a diretora de arte Luana Santa Brígida, o revisor Vinícius Vargas e o produtor gráfico Carlos Sena. “Muito pelo contrário é, sem dúvida, uma das publicações mais representativas da produção gráfica e literária contemporânea de Goiás”, ressalta a diretora da Nega Lilu, Larissa Mundim.
A obra é ainda prefaciada por um caro amigo de Walacy: o escritor pernambucano Marcelino Freire, que conheceu durante uma das edições da Balada Literária em Goiânia. Ambos apreciadores da literatura de Manoel de Barros, logo se encantaram e se reconheceram na obra um do outro.
“A escrita dele embaraça, dá nó na garganta, roda a baiana. Tudo ele bota ali, na cara da folha, como fazia o nosso poeta Manoel de Barros”, diz um trecho do texto de Marcelino Freire, do prefácio de “Muito Pelo Contrário”.
TRÊS PARTES
A obra, que compila textos escritos pelo jovem em 2012, traz, além de poemas, contos, microcontos e frases. “Por isso, pode ser descrito de várias formas: um livro de contos, de poemas, ou de poesia, por exemplo”, explica o autor. Em um jogo interessante literário, Walacy dividiu a obra em três partes interligadas, chamadas: “Muito”, “Pelo” e “Contrário”. O primeiro momento traz textos curtos, que joga iscas para os capítulos seguintes, mais intensos.
“A segunda parte, chamada ‘Pelo’, já conta com um texto mais denso, mais aprofundado em questões como a vida social, os medos, receios, alegrias e instantes. Por fim, o ‘Contrário’ é o capítulo onde o personagem-autor se revela, contando sobre seu desencaixe no mundo e a angústia de ter algo muito misterioso e novo por dentro”, analisa o autor.
LANÇAMENTO DO LIVRO “MUITO PELO CONTRÁRIO”, DE WALACY NETO
Quando: Hoje, às 19 horas
Onde: Evoé Café (Rua 91, 489, Setor Sul, Goiânia)
ENTRADA FRANCA
Preço de capa: R$ 25
Entrevista Walacy Neto
“O poeta é necessário nesses momentos de várias certezas”
A frase é do escritor, poeta e jornalista Walacy Neto, que nasceu em Itaberaí (GO) – cidade a aproximadamente 120 km de Goiânia –, em 1992, um dia depois do Natal. Na infância, não foi um garoto prodígio, mas na adolescência se sentiu poderoso quando descobriu que podia fazer tudo com a literatura, após escrever sobre uma música de Raul Seixas. Levou isso a sério, tanto que inventou o próprio espaço para escrever. A seguir, o artista conta um pouco sobre a trajetória até aqui, além de trazer uma análise, sobre cena, segundo ele, envergonhada da poesia goiana. Confira trechos desta conversa abaixo.
DMRevista: O escritor Marcelino Freire te comparou a Manoel Barros. Como foi que se conheceram e se tornaram amigos?
Walacy Neto: Conheço o Marcelino desde 2013, quando ocorreram algumas edições da Balada Literária aqui em Goiânia. Ele é um escritor que leio e tenho gratidão por poder chamá-lo de amigo. O Marcelino me acompanha, me dá espaço em tudo onde pode. Por essa proximidade de caminho achei interessante convidá-lo para criar o texto introdutório do “Muito Pelo Contrário”, tendo em vista que ele conhece boa parte da minha curta trajetória. Compartilhamos também esse deslumbre pelas obras do Manoel de Barros. Inclusive, muitas referências deste livro tem relação com o trabalho de Manoel.
DMRevista: Como as ilustrações de Pedro Kastelijns completam sua obra?
Walacy Neto: O trabalho do Pedro eu conheci na rua mesmo, nas festas, shows e bares de Goiânia. A sugestão foi da Larissa Mundim, que fez a coordenação do projeto, e achei perfeita a sugestão. Na época, eu já imaginava que meus poemas poderiam combinar, de alguma forma, com o trabalho do Pedro. É muito arriscado ilustrar um poema, tem o risco do texto perder a força ou a imagem ficar muito “literal”. Porém, no “Muito Pelo Contrário”, os desenhos apenas expandem o horizonte do poema, dando não só profundidade mas também outros significados.
DMRevista: Como foi que nasceu a parceria com a Nega Lilu?
Walacy Neto: Já faz alguns anos (dois por aí) que tento publicar esse primeiro livro. Em Goiânia é difícil, a maioria das editoras ainda acredita no cenário livraria, biblioteca e grandes distribuidoras. Eu sabia que meu livro não tinha nada a ver com essas lojas de TV que vendem livros em shopping. Antes desse livro eu produzi meus poemas no fanzine (livreto de xerox) e a proximidade de vender de mão em mão sempre foi uma característica minha. Mas aí, fiz um prefácio de um livro que seria publicado pela Nega Lilu Editora da poeta Dairan Lima, que admiro muito, chamado “Vermelho”. Vermelho é um livro lindo e nesse momento vi que a Nega Lilu editora poderia ser a porta de entrada para esta primeira publicação. De fato, por ser uma editora ainda pequena o trabalho é quase artesanal, sendo que a equipe é pensada para cada trabalho, a fim de criar um livro específico. O patrocínio veio do edital do Fundo de Arte e Cultura, da Seduce Goiás.
DMRevista: Quando notou que era um poeta?
Walacy Neto: Não tenho uma história bonita pra contar sobre minha relação com a poesia. Quando era pequeno minha mãe comprava livros infantis, incentivava como toda mãe. Meus professores também sempre me trataram muito bem e admiro a maioria deles. Mas, nessa época não me importava com muita coisa. Eu tenho muita preguiça e quando era mais jovem tinha muito mais. Uma coisa eu sempre tive, sempre gostei de fazer alguma coisa: montar casas de madeira, construir pistas no quintal, brincava de alquimista, fazia brinquedos e etc. Quando tava perto da adolescência via meus amigos com seus violões, bateria, skates e essas coisas, mas eu não tinha aptidão pra nada. Não sabia cantar, não tinha paciência pra aprender violão, caía muito de skate, patins ou bicicleta, e nunca tirei uma foto boa. Um dia escrevi um texto pra escola baseado em uma letra do Raul Seixas e senti que aquilo era muito doido. Criar um universo, criar tudo. Percebi que para escrever não precisa aprender, pois escrever é o próprio aprendizado.
DMRevista: E quando e como foi encontrando espaço e reconhecimento entre o meio literário goiano?
Walacy Neto: Em Goiânia, quando me mudei para cá de Itaberaí, eu conhecia o Carlos Brandão, tinha feito uma entrevista com ele na faculdade. A gente ficou amigo e ele disse de cara que se eu quisesse um local para me apresentar teria que criar esse local do nada. Goiânia tem um circuito interessante de poetas e saraus, atualmente. Acredito que muito disso pode ser resultado dos eventos que fiz pela Zé Ninguém, onde muitos produtores, poetas e até músicos se apresentaram pela primeira vez e continuam por aí correndo atrás. Acho que o reconhecimento que tenho vem disso, não por ser um poeta e etc, mas por ter de alguma forma compartilhado esse espaço que procurei.
DMRevista: Pode falar sobre o selo Zé Ninguém e sua importância neste seu início no universo editorial?
Walacy Neto: A Zé Ninguém começou por acaso mesmo, quase sem querer. Quando fui imprimir meu primeiro fanzine eu achei engraçado essa brincadeira de colocar o nome de uma editora no fundo do livro, uma ironia mesmo. Assinei atrás “Editora Zé Ninguém” e quando li pensei que podia ser algo interessante. Daí, comecei a pedir poemas do pessoal que conhecia e fazer esses zines para quem não tinha aptidão pro trabalho. Tudo feito sem lucro, com a pura pira de divulgar os poetas que não tem livros publicados.
DMRevista: Quais são as suas maiores referências literárias?
Walacy Neto: Acho que por ser um escritor muito recente, não tenho referências claras, quase tudo que leio me encanta e me afeta. Mas, no caso deste livro, me inspirei muito na obra do Manoel de Barros. Busquei na minha infância alguns elementos e percebi esse medo que eu tinha de olhar pra dentro, coisa que Manoel fazia calmo e sereno. Tenho muitas referências brasileiras na literatura, como o Marcelino Freire, Guimarães Rosa, João Gilberto Noll. No “Muito Pelo Contrário” eu uso muitas referências musicais nos poemas. O leitor vai encontrar referências de música do Belchior, por exemplo, Raul Seixas, Roberto Carlos e outros.
DMRevista: Como é sua leitura sobre da nova geração de escritores em Goiânia?
Walacy Neto: Vejo que os poetas com quem topo por aí dividem dessa mesma preguiça que eu tenho. Isso é bom pro ócio criativo. Porém, vejo às vezes uma covardia do poeta, que parece ter vergonha do que faz, como se fosse um crime vender, ler ou apresentar. Isso reflete no texto de cada um, onde as temáticas são cada vez mais sobre o desencaixe social, a depressão da vida moderna e o tempo. E o poeta é necessário nesses momentos de vários pontos de vista de várias certezas. É o poeta que tem que orquestrar uma maneira de pensar diferente, totalmente inédita. Em Goiânia temos milhões de poetas, de baixo de tudo tem um poeta, mas ao mesmo tempo não temos poeta algum, enquanto a poesia for vergonha até pra quem faz.
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