Entretenimento

Dicionário da Escravidão e Liberdade

Redação

Publicado em 17 de julho de 2018 às 00:24 | Atualizado há 7 anos

No dia 13 de maio de 1888, depois de mais de três sécu­los de escravidão no Brasil, chegava ao fim um dos ca­pítulos mais cruéis da his­tória nacional e que deixou marcas pesadas na cons­tituição do país como na­ção. As primeiras levas de africanos chegaram à então maior colônia portuguesa do eixo Atlântico em 1550 e as últimas desembarcaram na década de 1860, alcan­çando um total estimado de 4,8 milhões de pessoas por aqui desembarcados. O Brasil rece­beu entre 38 a 43% do total de africanos que saíram forçada­mente do seu continente. Mas o sistema ainda tardaria mais de 30 anos. O país não foi só o último a libertar os africanos e seus descendentes nas Améri­cas, além de ter adotado o mo­delo de trabalho escravo em todo o seu território.

Neste ano, quando se com­pletam 130 anos da abolição no Brasil, Lilia Moritz Schwarcz – professora titular de Antropo­logia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton, além de autora, entre outros, de O espetáculo das raças, Brasil: uma biografia e Lima Barreto: triste visionário – e Flávio dos Santos Gomes – professor da UFRJ e autor, entre outros, de Mocambos e quilombos; De olho em Zumbi dos Palmares; O alu­fá Rufino – lançam pela Compa­nhia das Letras o livro Dicioná­rio da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. O volume, organi­zado pela dupla de acadêmicos, é um trabalho ambicioso e dos mais completos da atualidade sobre a escravidão no Brasil, ou, como escreve Alberto da Costa e Silva no prefácio do livro, a obra “mostra a grande quantidade de faces que compõem o que é um poliedro em movimento”.

Com o formato de dicionário temático, o livro reúne 50 verbe­tes escritos pelos principais es­pecialistas do tema em atuação no país e no exterior, sempre de forma acessível ao grande pú­blico. Eles abrangem temas que vão desde as charqueadas no Rio Grande do Sul até os Quilombos na Amazônia, passando pelas principais regiões da África de onde partiram os escravizados que se dirigiram ao Brasil. Assun­tos como casamento entre escra­vizados, leis, castigos, mulheres e crianças, amas de leite, tráfi­co, canções, economia, eman­cipações, escravidão indígena, Frente Negra, imprensa negra, irmandades, educação, morte e ritos fúnebres, rebeliões, quilom­bos e revoltas fazem deste dicio­nário um panorama abrangente sobre o sistema responsável pela desigualdade social ainda exis­tente no país. O dicionário tam­bém revela por que essa é uma das áreas do conhecimento his­tórico, antropológico e socioló­gico que obteve maiores avan­ços nas últimas décadas, sendo reconhecida nacional e interna­cionalmente.

Além da organização do li­vro, Lilia e Flávio assinam juntos os verbetes Amazônia escravis­ta e Indígenas e africanos. Lilia analisa no verbete chamado Teo­rias raciais os modelos determi­nistas raciais que entraram em grande voga no Brasil em finais do século XIX, perpetuando, a partir do conceito de degenera­ção, noções como inferioridade e superioridade racial. Flávio, por sua vez, investiga em Quilom­bos/Remanescentes de quilom­bos as formas de resistência que vigoram no Brasil, por meio de fugas individuais e coletivas e o estabelecimento de comunida­des de fugitivos. O professor des­taca a diversidade da estrutura social e econômica dos quilom­bos e retrata a opressão do esta­do para aniquilar qualquer ex­pressão de rebeldia.

Os demais verbetes pro­porcionam ao leitor uma com­preensão ampla da intrincada realidade escravista brasileira, dada a sua extensão temporal e geográfica. A partir de análi­ses do ponto de vista social, eco­nômico, político e também ju­rídico, revelam as histórias dos primeiros africanos a entrar no Brasil quinhentista, muitas ve­zes negligenciadas pela historio­grafia. Buscam também identi­ficar a multiplicidade étnica dos africanos que povoaram o terri­tório, incluindo reinos da Áfri­ca central, ocidental e oriental. Mostram ainda como se desen­volveu uma convivência inespe­rada entre africanos e indígenas.

O dicionário também dis­tingue as adaptações do mo­delo de produção escravista de acordo com a região geográfica e os ciclos econômicos da cana­-de-açúcar, algodão, mineração, agropecuária e do café. E retrata, por fim, a realidade específica da escravidão urbana em contras­te com a rural, incluindo textos sobre as manifestações culturais que ajudaram a constituir a cul­tural nacional. O aspecto legal é esmiuçado em verbetes como Castigos físicos e legislação, Có­digo penal escravista e Estado, Crianças/Ventre livre, Legislação emancipacionista, 1871 e 1885 e Lei de 1831. O livro conta ainda, e ao final, com uma vasta crono­logia que não se restringe ao Bra­sil, mas inclui todo esse eixo afro­-atlântico, formado pela maior diáspora humana que a era mo­derna conheceu.

Vale a pena destacar tam­bém a minuciosa pesquisa ico­nográfica que compõe a edição. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, o caderno de imagens propõe estabelecer um diálogo com os verbetes, permitindo uma lei­tura crítica da iconografia que cercou a escravidão. “É preciso confiar nesta iconografia e, ao mesmo tempo, dela desconfiar”, pondera Lilia, para logo adiante acrescentar “representações vi­suais têm a capacidade de co­piar a realidade, mas também de produzi-la”. A própria imagem de capa criada pelo artista Jaime Lauriano, quando desdobrada, se transforma em um pôster que configura a dor da escravidão e a luta pela liberdade das popu­lações afrodescendentes.

A importância do Dicioná­rio não se restringe ao passado. Depois de 130 anos da abolição, o racismo continua estrutural no país, moldando relações e se perpetuando na violência e na desigualdade que têm na cor da pele um fator determinante.

LILIA MORITZ SCH­WARCZ é professora titular no Departamento de Antropolo­gia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton. É autora de, entre outros livros, O espetáculo das raças (Com­panhia das Letras, 1993, e Far­rar Strauss & Giroux, 1999), As barbas do imperador (1998, prêmio Jabuti/Livro do Ano, e Farrar Strauss & Giroux, 2004), O sol do Brasil (2008, prêmio Jabuti/Biografia 2009), Brasil: Uma biografia (com Heloisa Murgel Starling; Companhia das Letras, 2015, indicado ao prêmio Jabuti/Ciências Hu­manas) e Lima Barreto: Tris­te visionário (Companhia das Letras, 2017).

FLÁVIO DOS SANTOS GOMES é professor da UFRJ, atuando também nos progra­mas de pós-graduação em his­tória comparada (UFRJ) e his­tória (UFBa). Foi agraciado duas vezes com o Premio Lite­rario Casa de las Américas, do Instituto Casa de las Américas (Cuba), sendo menção honro­sa em 2006 (pelo livro A hidra e os pântanos) e o vencedor em 2011 (pelo livro O alufá Rufi­no, em coautoria com João José Reis e Marcus Joaquim de Car­valho). Tem publicado dezenas de livros, coletâneas e artigos em periódicos nacionais e es­trangeiros, atuando na área de Brasil colonial e pós-colonial, escravidão, Amazônia, frontei­ras e campesinato negro.

 

]]>


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias