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Editora Rosa dos Tempos lança no Brasil livro inédito de Maya Angelou

Redação

Publicado em 9 de abril de 2018 às 01:54 | Atualizado há 7 anos

 

Vivian Baxter e Bailey John­son decidiram se separar quando os filhos eram pe­quenos e, de comum acordo, en­viaram as duas crianças, de 3 e de 4 anos, sozinhas, num trem do Missouri para a casa da avó paterna, mãe de Bailey, no Ar­kansas. O pai visitava as crianças sem avisar e, numa das viagens, decidiu levá-las de volta para a casa da mãe. Maya Angelou, a mais nova, tinha 7 anos quando foi passar uma temporada com Vivian e sofreu um de seus maio­res traumas: o namorado da mãe a estuprou, em casa. Após contar para o irmão que havia sido vio­lentada, o agressor foi preso e, solto logo depois, foi encontra­do morto. Com medo do poder de suas palavras, que causaram até a morte de alguém, ela pas­sou os cinco anos seguintes sem falar. Já de volta ao Arkansas, ela leu e decorou de Shakespeare a Balzac, passando pelos grandes clássicos da literatura mundial que lhe caíam às mãos. Maya frequentava os cultos da igre­ja protestante e a casa de uma senhora, vizinha da avó, que lia poemas para ela. Essa senhora um dia a desafiou dizendo que um poema só pode ser enten­dido e sentido quando se sabe lê-lo. A menina voltou a falar.

Quando completou 13 anos, Maya voltou para o estado da Califórnia, com o irmão, para se reconciliar com a mãe. Se logo cedo ela percebeu que as pa­lavras, as músicas de louvor e a literatura tinham poder, foi na convivência com Vivian Baxter, a mãe a quem ela chamava de Lady, que ela aprendeu a en­frentar o racismo e o machismo e ganhou o afeto necessário para se tornar uma mulher indepen­dente e com autoestima. Dança­rina, cantora e militante, Maya foi convencida por um editor a relatar as suas histórias incrí­veis em livros. A escritora e poe­ta lançou então uma série de au­tobiografias, entre elas “Mamãe & Eu & Mamãe”, em que conta a história de sua relação com a mãe e como, com a força dela, enfrentou episódios difíceis de sua vida, entre eles o espanca­mento que sofreu de um namo­rado e a gravidez não planejada de seu único filho.

Vivian Baxter é uma perso­nagem tão importante e for­te quanto Maya. Enfermeira, agente imobiliária, dona de ca­sas de bilhar e apostas, empre­sária respeitada na São Fran­cisco dos anos 60 e 70, Vivian aprendeu com o pai e os irmãos que deveria enfrentar qualquer briga na rua no braço. Deste­mida, ela arrumou um empre­go num navio ao descobrir que mulheres que trabalhavam na marinha mercante eram proi­bidas de se filiarem ao sindica­to da categoria. Quando a filha surgiu com o dilema de acei­tar ou não ser dançarina e stri­pper numa casa noturna de Los Angeles, ela não titubeou: levou Maya para comprar os figuri­nos e a apoiou. Foi contra o ca­samento da filha, com um ho­mem branco, mas a recebeu de braços abertos quando Maya se separou. “Minha mãe me dava exemplos de coragem grandes e pequenos. Estes últimos ficaram entremeados com tanta sutileza na minha psique que mal consi­go distinguir onde termina a mi­nha mãe e eu começo.” “Mamãe & Eu & Mamãe” é o segundo tí­tulo do selo Rosa dos Tempos, relançado este ano pelo Grupo Editorial Record. O livro chega às livrarias em abril.

ORELHA:

POR GIOVANA XAVIER

Como não amar? Atriz, baila­rina, cantora, diretora de cine­ma, Maya Angelou (1928-2014) é uma mulher de muitos cami­nhos. Caminhos abertos que contrastam com definições li­neares do que é ser uma Inte­lectual Negra. Fortemente in­fluenciada pela avó, responsável por seus cuidados em boa par­te da infância, a escritora é dona de um estilo literário ponta de lança, muito bem exemplifica­do na instigante frase “E eu me levanto”, presente no poema ho­mônimo, imprescindível para compreensão das experiências de Mulheres Negras no mundo.

É do ato político de erguer-se que brota o livro Mamãe & Eu & Mamãe. Audaciosamente escri­to e editado no formato 2 em 1, em Mamãe & Eu, Maya assegu­ra o direito de narrar em primei­ra pessoa seu papel como filha da apaixonante empresária Vi­vian Baxter. Já em Eu & Mamãe, ela nos presenteia com um refi­nado deslocamento da filha-au­tora, no qual sua mãe ganha a cena como a querida Lady, uma mulher que luta de formas nada convencionais para colocar em prática o amor aos dois filhos.

Conduzindo-nos a um portal no qual acessamos em profun­didade temas como casamen­to, cuidado, família, maternida­de, lazer e trabalho, tendo como pano de fundo os EUA da segre­gação racial e da luta por direi­tos civis, Mamãe & Eu & Mamãe é um clássico, representativo do universo no qual Mulheres Ne­gras são do começo ao fim au­toras, sujeitas e donas de suas próprias histórias. Marcada por um intervalo de cinco anos en­tre a primeira edição e esta que temos em mãos, a obra chega ao público brasileiro em ple­no 2018, data em que comple­tamos 130 anos da abolição da escravatura. Termos no Brasil, país de maioria negra e femini­na, um livro que fala do ato polí­tico de amar, empreendido por Mulheres Negras que escalam as “alturas impossíveis”: como não amar?

TRECHO:

“Telefonei para a minha mãe. ‘Vou para Nova York e adora­ria que você viesse me encon­trar em Bakersfield ou Fres­no. Queria ficar um pouquinho com você antes de deixar a Cos­ta Oeste.’

Ela disse: ‘Oh, meu amor, eu também quero te ver, porque vou me aventurar no mar.’

‘Se aventurar onde?’

‘Eu vou me tornar marujo.’

Perguntei: ‘Por quê, Mãe?’ Ela tinha licença de agente imo­biliária e havia sido enfermei­ra e era dona de um cassino e um hotel. ‘Por que você quer se aventurar no mar?’

‘Porque me disseram que nenhuma mulher pode partici­par do sindicato deles. Insinua­ram que o sindicato com toda a certeza jamais aceitaria uma mulher negra. Eu disse: ‘Que­rem apostar?’ ou enfiar o pé na porta deles até o quadril e só ti­rar depois que todas as mulhe­res puderem entrar nesse sin­dicato, embarcar num navio e ir para o mar.’

Eu não tive dúvidas de que ela faria exatamente o que dis­se. Nós nos encontramos al­guns dias depois em Fresno, na Califórnia, em um hotel que recentemente passara a permi­tir a entrada de negros. Eu e ela chegamos ao estacionamento quase ao mesmo tempo. Quan­do apanhei aminha mala, Ma­mãe disse: ‘Ponha isso no chão, ao lado do meu carro. Ponha aí. Agora venha.’

Entramos no saguão. Mes­mo naquele hotel, recentemen­te não segregado, as pessoas fi­caram literalmente espantadas ao verem duas negras entrando. Minha mãe perguntou: ‘Onde está o carregador?’ Alguém ca­minhou até ela. Então, ela dis­se: ‘As minhas malas e a mala da minha filha estão lá fora ao lado do Dodge preto. Por favor, traga­-as para cá.’ Eu a segui enquan­to ela ia até o balcão e dizia ao recepcionista: ‘Sou a Sra. Jack­son e esta é a minha filha, a Srta. Johnson. Temos duas reservas.’

O recepcionista olhou para nós como se fôssemos criaturas selvagens. Olhou para a agenda e descobriu quede fato tínha­mos reserva. Minha mãe pegou as chaves que ele nos ofereceu e acompanhou o carregador com as malas até o elevador. Lá em cima, paramos em frente a uma porta e ela disse: ‘Pode deixar minha bagagem aqui com a da minha pequena.’ Ela deu uma gorjeta ao homem.

Mamãe abriu sua mala e, no topo, sobre suas roupas, havia um revólver calibre 38. Ela disse: ‘Se eles não estivessem preparados para a integração racial, eu esta­ria preparada para lhes mostrar isso aqui. Meu amor, preparada para qualquer situação que você possa encontrar pela frente. Não faça nada que acredite ser erra­do. Faça simplesmente o que acha que é certo e depois esteja pre­parada para bancar sua decisão, ainda que seja com a sua própria vida. Tudo o que você disser deve ser dito duas vezes. Ou seja, uma vez você diz para si mesma e, em seguida, se prepara para dizê-lo nas escadarias da prefeitura e es­perar vinte minutos até atrair uma multidão. Nunca faça isso para ser notícia. Faça para que todos sai­bam que o seu nome é sua garan­tia, e que você está sempre bancar o seu nome. Nem toda situação negativa pode ser resolvida com uma ameaça de violência. Con­fie em seu cérebro para encontrar a solução e, depois, tenha a cora­gem de segui-la.”

SOBRE A AUTORA:

Maya Angelou (1928-2014) foi cantora, atriz, dançarina, ativista, cineasta, escritora e mãe. Além das autobiografias, que incluem o best-seller Eu sei por que o pás­saro canta na gaiola, ela escreveu diversos livros de poesia entre eles Phenomenal Woman, And Still I Rise e On the Pulse of Morning.

 

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