Entretenimento

Heresia e androgenia

Diário da Manhã

Publicado em 30 de dezembro de 2017 às 00:59 | Atualizado há 2 semanas

Umberto Eco, no seu li­vro Seis passeios pelos bosques da ficção, cria os conceitos de “autor empíri­co”, a pessoa que escreve o tex­to, e “autor modelo”, a voz que perpassa o texto nos contan­do a história. Para Eco, os dois conceitos são diferentes, inte­ressando apenas o autor mo­delo. Mas será mesmo que a linguagem literária consegue se separar completamente das vivências de quem a concebe? Para essa pergunta, penso que a resposta é não. Vida e obra es­tão intimamente ligadas num mistério que é o próprio mis­tério da literatura. O mistério de perceber como a vida do au­tor “contamina” a história e a ergue. E claro que também há aqueles textos nos quais o ob­jetivo é justamente aumen­tar as lacunas e os mistérios a cada releitura que não se fixa em apenas uma possibilidade.

Yona Wallach (1944 -1985), po­eta israelense, parece compor perfeitamente essa discussão, na qual a vida e a literatura se fun­dem ao ponto de serem insepa­ráveis. Bissexual e ativista polí­tica produz uma obra polêmica por abordar sexo, erotização de alguns elementos ritualísticos religiosos, resgatando a tradição judaica e assumindo um caráter pan-religioso, ao vampirizar ele­mentos de outras religiões para a feitura de seus poemas.

A israelense, aproveitando-se de uma maior demarcação do gênero das palavras no hebrai­co, constrói sua poesia “andró­gina” com um sujeito lírico que hora é referido no masculino e ora no feminino. Sua poesia marcada pela linguagem fluída cotidiana e pela recorrência à psicologia junguiana é um pro­testo que objetiva repensar as possibilidades que as mulheres podem desempenhar no campo particular ou privado, assumin­do, com isso, a revolução femi­nina na poesia hebraica. Yona foi à frente do seu tempo.

Yona é pouco conhecida. No Brasil temos o livro Yona e o an­dróginio: notas sobre poesia e ca­bala (Nankin/edusp – 2010), na tradução do hebraico pelo Mo­acir Amâncio (traduções que opto por utilizar aqui) & Nir Bergmam, cineasta israelense, fez um filme com o nome Yona, contando a história da poeta, ainda sem previsão para lan­çamento no Brasil. Iniciativas como estas são importantíssi­mas para evitar que esse exem­plo de coragem acabe caindo no ostracismo.

Abaixo, poemas natradução de Moacir Amâncio:

 

POEMA PESADELO

Cortaram-lhe as pálpebras

e o colocaram num quarto cheio de espelhos

e via só a si mesmo

e não podia fechar os olhos

e olhava para si mesmo com horror

e olhava para si mesmo com ódio

e dizia tudo de mau contra ele

e se matava psicologicamente

e fugia para todo canto

até que aprendeu a explodir e se quebrar

e transformar as coisas em algo di­ferente

– .–.-

HOMEM NÃO HOMEM / MULHER NÃO MULHER

homem não homem

mulher não mulher

fazem amor

seios nus

sem cara

sexo e rosto

como na Cabala

na magia negra

o dentro se despe

eles perdem a

cara

homem não homem

mulher não mulher

na cara o sentimento morto

nos órgãos sexuais

a sensação

a cabeça cheia

de boa vontade

porém mais

de medo

e é possível guardar

a virgindade

emocional

até a vinda do Messias

e ele virá

a mulher será mulher

o homem será homem

suas caras sexuais

e nos seus membros

o sentir renascerá

uma tartaruga branca

a muralha do Poderoso

que de uma onda se tornou

um dique para todo sentimento

que se despedaça como

uma catarata

para mergulhar

a mulher homem

e o homem mulher

***

YONATAN

Eu disparo pela ponte

e os meninos logo atrás

yonatan

yonatan – elas gritam

um pouco de sangue

só para limpar o sabor do mel

eu concordo com um furo de ta­chinha

mas os meninos querem

e eles-elas são meninos

e eu yonatan

cortam-me a cabeça com a folha

de gladíolo e juntam a cabeça

a duas folhas de gladíolo e embru­lham

a cabeça um papel sussurrante

yonatan – elas diziam

desculpa da vardade

nós não imaginávamos assim q hora

_*_

 

]]>


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias