“Hoje em dia as gravadoras prendem o artista mais do que antes”
Diário da Manhã
Publicado em 16 de outubro de 2018 às 00:29 | Atualizado há 6 anosBNegão, 46, segurando uma xícara de café, chega à entrada de um hotel cinco estrelas em Brasília visivelmente cansado. Senta em uma cadeira, de frente para nós, e cumprimenta o guitarrista carioca Fernando Magalhães, 54, da banda oitentista Barão Vermelho, que foi em direção à máquina de café expresso que havia ao fundo antes de fumar um cigarro. Tentei puxar conversa com Magalhães, mas ele não queria atrapalhar nossa entrevista e seguiu para fora do prédio. “Grande músico”, diz o cantor carioca, referindo-se ao colega roqueiro, que iria tocar na noite daquele domingo, 30 setembro, na 20ª edição do festival brasiliense Porão do Rock.
Um dia antes da entrevista, BNegão dividiu o palco do Porão com Nação Zumbi para cantar clássicos do álbum Da Lama ao Caos, lançado pelos pernambucanos em 1995 e eleito pela revista Rolling Stone o 13° disco mais importante da música brasileira. O trabalho também consolidara o movimento Mangue Beat que teve as portas abertas ao País por meio do manifesto Caranguejo com Cérebro, escrito em 1992 pelo vocalista e guitarrista do grupo Mundo Livre S/A, Fred 04. Sucessos de BNegão, como a faixa Enxugando Gelo, do álbum homônimo, também fizeram parte do setlist.
Letrista da maioria das canções do Planet Hemp, banda carioca de rap rock e hardcore, BNegão se apresenta pelo Brasil desde o início do ano com os Seletores de Frequência em comemoração aos 15 anos do disco Enxugando Gelo, lançado em 2003 e um dos primeiros a ser divulgado de forma independente. É autor ainda dos álbuns Sintoniza Lá, de 2012, e Transmutação, 2015. Já tocou no festival dinamarquês Roskilde junto com nomes de peso, como os ingleses do Black Sabbath e Brian Wilson, ex-integrante do The Beach Boys.
CONFIRA A ENTREVISTA:
DMRevista–A primeira coisa que estava escrito no jornal era: “Por que essa eleição será a mais radical desde a redemocratização?” O que você pensa sobre isso?
Primeiramente, o ato #EleNão foi maravilhoso. Infelizmente não consegui participar, porque eu estava destruído por conta de uma sequência de shows que a gente vem fazendo nos últimos meses. Eu precisava dormir, mas não conseguia porque queria saber o que estava rolando, como estava a manifestação e tal. Aí, fiquei neste meio do caminho, sacou? Cheguei em Brasília e estava no final do ato. Acabou perto do hotel.
DMRevista–Como você vê a mobilização das mulheres contra a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL)?
Foi uma resposta emocionante. E devemos isso às mulheres maravilhosas que puxaram esse ato e, mais uma vez, disseram não à barbárie. As pessoas acham que a internet faz parte da vida, e se esquecem de que representa apenas uma parte da vida. Considero a atitude das mulheres como uma espécie de Primavera Feminista.
DMRevista–O que o ultradireitista Bolsonaro representa?
Não precisa nem falar muito. É um sujeito despreparado. E o que está em jogo no momento é a questão da humanidade, nem é a dicotomia direita e esquerda. É como se você estivesse vendo o líder fascista italiano Benito Mussolini e o nazista Adolf Hitler. Você precisa se posicionar e quem se posiciona está do lado certo da histórica, sacou? Tenho certeza de que ele não vai ganhar as eleições. Ele vai para o segundo turno e perderá de forma feia.
DMRevista–Não seria exagero desprezar a simpatia que o ex-capitão do Exército possui?
Existe uma tendência mundial que é a política do medo, né? É de onde Bolsonaro veio. Ele surgiu disso. É fruto de programa policial, de jornalismo que enxergou que essa parada de violência gera audiência. Então, os velhinhos, as velhinhas, a galera que está no bar, a galera que está trabalhando com a televisão ligada o dia todo está sendo bombardeada com esse tipo de informação. Tudo isso fez com que Bolsonaro ficasse gigante, sacou? Isso é um absurdo, porque o cara é um nada. A real é que ele é um nada, como ser um humano. Um nada. Só cresceu porque teve terreno. Não foi por ele. Merda fez crescer merda.
DMRevista–O ato #EleNão foi uma resposta à ascensão de Bolsonaro?
Sim, porque foi a movimentação feminina que mostrou que a candidatura provoca resistência em vários setores da sociedade brasileira.
DMRevista–Brasília é uma cidade que possui bastante essa vibe política. Qual foi a sensação de tocar na 20° edição do festival Porão do Rock em um contexto desses?
Foi um momento emocionante, porque a gente está vendo a coisa acontecer. Mas, na verdade, não tem muito o que dizer. É isso, assim. A gente está ao lado da coisa que acreditamos. Eu entrei na música para militar, né?
DMRevista–Então, você acha que a música tem o poder de mudar o pensamento das pessoas?
Sempre teve. Mas quem detém o poder de mudança interna são as próprias pessoas. Não adianta, por exemplo, o John Lennon ficar ali falando com o cara e o cara vai embora sem nenhum sentimento de mudança. Em minha visão, a música tem vários poderes maravilhosos e ela não tem obrigatoriamente aquela coisa de você ser militante. Não acho também que militar seja o dever do músico, mas sinto que tenho de fazer isso. Então, sinto essa obrigação e, como entrei na música para isso, e sendo minha música composição uma crítica social, sempre acreditei o tempo inteiro nessa forma de transformação social.
DMRevista–O que te deixa mais feliz nesse sentido?
Quando recebo feedback na rua. Antigamente, na época da carta a galera mandava carta. Um monte de situações de relatos sobre como as letras mudaram a forma de visão deles. Eu faço música de mudança. Não gosto também de usar o rótulo “música de protesto”, sacou? Não acho maneiro. A intenção é fazer as pessoas compreenderam o que elas estão vivendo.
DMRevista–Você acha que um festival como o Porão do Rock tem de acontecer nessa época?
Com certeza. Acho que em qualquer época deve acontecer. Não tem essa, porque, assim, festival é festival. O mais foda é que você tem a chance de ver vários artistas naquele curto espaço de tempo. Geralmente, um show é mais caro do que um festival desse tipo, dessa magnitude. Tem festivais também que são caros para caralho. Mas estou falando de festivais como o Porão do Rock. Ver os pernambucanos de Nação Zumbi e Cordel do Fogo Encantado em pouco tempo é foda. Festival é uma parada democrática. Como músico também fico felizão de encontrar um monte de amigo. A gente conversa, põe o papo em dia e tal.
DMRevista–Vamos falar de mercado fonográfico: o artista é moldado pelos executivos?
Depende, cara. Tudo é época, sacou? E também não acho que os caras moldem os artistas. Na verdade, você só é moldado se você quiser, ou aceitar. Você não é obrigado a fazer nada. Você não é obrigado a assinar contrato com ninguém. Músico é um ser livre e libertário naturalmente. Se ele sofrer uma parada, é porque ele foi conveniente com aquilo ali, sacou? Se ele chorar, é porque ele… como posso dizer… Ele está chorando de bobeira, sacou? A real é que ele pode ir lá e falar ‘quero gravar’. Aí o cara vai pôr no contrato isso e aquilo. Não concordo…. Tô fora… Se mudar eu entro, senão, não. Aí o cara vai lá e assina e depois fica reclamando “porra, mas esse negócio não está no contrato e não sei lá o que”. É desonestidade intelectual, lembrei a palavra que queria falar.
DMRevista–Com o Planet Hemp rolou algo parecido?
Não, porque era outra época. Antes teve o clássico disco Cabeça Dinossauro, dos Titãs, teve Legião Urbana, Plebe Rude, Barão Vermelho, Inocentes (banda de punk rock paulistana surgida na década de 1980). O que acontece é a galera muitas vezes se deixa dominar por algum executivo. Agora, se você se deixa, aí a parada é com você mesmo. Só para deixar claro: não sou muito chegado a gravadora. Saí deste sistema em 2001 para nunca mais voltar.
DMRevista–Já que você saiu das gravadoras, como faz para lançar seu trabalho?
De forma independente.
DMRevista–E quais são as dificuldades? Como é lançar um disco desse jeito?
Hoje em dia é mais fácil do que antigamente. Antes da gente a galera realmente comeu o pão que o capiroto amassou. Era triste. Não tinha internet, não tinha porra nenhuma. Aí o cara lutava muito, sacou? Muitas vezes as coisas que não estão em gravadoras são melhores das que estão. Antigamente não era possível fazer isso. Hoje em dia as gravadoras prendem o artista mais do que antes. A gravadora marca shows e ganha porcentagem em cima, e o cara acaba ficando preso nessas paradas. É uma forma que eles veem de ganhar dinheiro, porque já não se vende mais tanto disco. Quem tem aparelho de cd em casa? Quase ninguém. Então, tipo, o caminho é a venda digital. Tô felizão com essa parada independente.
DMRevista–Você quis ser independente?
Sim. Sempre tive proposta de gravadora. O disco Enxugando Gelo, de 2001, foi todo feito de forma independente. Na época, quem lançou foi o Lobão que tinha uma revista cultural chamada Outra Coisa. Foi a revista que mais vendeu nas bancas. A galera perguntava “ah, como faz para lançar um disco na tua gravadora”. Eu dizia “pô, vai lá falar com o Lobão”. Era o meu jeito de dizer não. A gente sempre teve total liberdade para fazer o que quisesse com qualquer disco nosso. Foi o primeiro disco comercial a ser lançado na internet. Eu ia nos jornais falar isso. Neguinho ficava puto, porque na época esse discurso era completamente fora de tudo. A notícia era sempre sobre pirataria e os caras ficavam de cara porque a gente chegava no programa do Jô Soares e falava “ô, baixem o nosso disco aí”. Sempre a reação era “que é isso, não pode falar isso”.
DMRevista–Diziam que essa postura era uma espécie de “suicídio comercial”.
Exatamente. Só que isso acabou levando a gente para o mundo todo. Chegamos a fazer shows lotados em Londres, Barcelona… A gente botou o disco no site CMI, que é um dos pares do MPL, inclusive. É um dos principais centros de mídia independente, uma parada anarquista. Foi pai de um monte de coisa. É pai até do youtube, porque foi um dos primeiros caras que fizeram esse tipo de tecnologia.
DMRevista–É uma galera cyberpunk?
Isso. Era tudo horizontal. E era um site de notícias de guerrilha. Você botava lá as coisas que estavam acontecendo nas manifestações. Não existia outro lugar que fizesse isso. Existia só a grande mídia. Aí lá mostrava, por exemplo, a polícia batendo nos caras sem eles terem feito nada, sacou? Foi dessa tecnologia que surgiu o youtube e uma série de outras paradas. Foi o grande centro de hacker anarquista mundial.
DMRevista–E aqui no Brasil, como era?
Demorou para chegar toda essa novidade. A gente teve um problema brutal em São Paulo, porque nosso empresário na época marcou um show no mesmo dia que o Planet. A regra era assim: quem marcar primeiro tem a data. O Planet já tinha marcado. Aí o cara marcou, a cidade ficou cheia de cartaz, todo mundo falando do show do Enxugando Gelo, a mulher ficou bolada logicamente porque a gente não pode ir lá. “Vou vetar vocês na cidade”, ela falou. Ficamos três anos sem poder tocar em São Paulo. Ninguém tocava a gente em lugar nenhum. Era uma coisa muito diferente. Era uma época em que tudo era compartimentado, sacou? Era contra as leis da parada.
DMRevista–Como surgiu sua relação com o Nação Zumbi?
Em 1993, ou 1994, a gente estava querendo penetrar numa festa. A gente era bom nisso, mas naquela estava difícil. Aí, tinha um segurança grandão, cara bravo mesmo. A gente estava criando uma estratégia para ver como iríamos furar o bloqueio e tal. Todo mundo durasso. Daí ouvi um cara do meu lado com sotaque diferente. Pensei, porra é da Bahia? Aí eu fui lá e perguntei: moço, que sotaque é esse? “Pernambuco, Recife”, respondeu. Ah, massa, falei. Vi na semana passada uma banda no programa do Serginho Groisman lá do SBT (quem ganhasse estava dentro de uma coletânea, que não saiu nunca). Era o Nação Zumbi. Chico Science (morto em acidente de carro em 1997) estava ali. Ficamos conversando. Era antes do Da Lama ao Caos (lançado em 1994). Entramos junto com a banda e eles chamaram a gente para tocar no final, todo mundo. Speed (baixista do Planet Hemp, assassinado em 2010) falou para o Alexandre Dengue (baixista do Nação Zumbi): “me dá esse baixo que eu toco melhor do que você”. Foi assim que a gente se conheceu.
DMRevista–É uma parceira de longa data.
Sim. Sempre fizemos coisas juntos. Desde a época do Chico Science. Só que sempre invadindo, chegando em festival e tal. Essa foi a primeira vez que a gente ensaiou. Ensaiamos uma hora. Foi ótimo. Deu tudo certo.
DMRevista–Você está feliz de estar em Brasília?
Felizasso.
Existe uma tendência mundial que é a política do medo, né? É de onde Bolsonaro veio. Ele surgiu disso. É fruto de programa policial, de jornalismo que enxergou que essa parada de violência gera audiência” Só para deixar claro: não sou muito chegado a gravadora. Saí deste sistema em 2001 para nunca mais voltar”]]>