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“Não faço distinção entre gêneros”, afirma contrabaixista

Fernando Peters lança EP de jazz e diz que disco sai em 2024. Artista se tornou conhecido por trabalhar com expoentes do pop. Ao Diário da Manhã, fala sobre novo projeto e indica o que ouvir

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 3 de janeiro de 2024 às 01:12 | Atualizado há 3 semanas

Jazz é elegância. O contrabaixo conversa com a bateria. Numa paisagem sonora estimulante, ouvimos as caixas e os pratos tocados pelas baquetas que Julio Falavigna segura. Então, os comentários do piano realizados por Leonardo Bittencourt abastecem a energia dos instrumentistas. “Serpentine” – faixa que abre o EP “As Long As We´re Pouring Our Hearts Out, Let There Be…” – nos vicia. No mínimo, queremos escutá-la duas ou três vezes.

A próxima música, “As Diferentes Velocidades da Passagem do Tempo”, me intima a concluir que jazz é risco. Aprendi tal ensinamento ao ouvir o quarteto elétrico do tecladista Herbie Hancock, praticamente iniciado pelo trompetista Miles Davis, nos anos 60. No caso do trio brasileiro que ouço sem parar enquanto escrevo, a alternância rítmica salta aos ouvidos, como se a combinação entre as notas representasse a passagem temporal da vida.


Assim que meus pés indicam um movimento embalado pelo suingue de “Quietly Leaving”, a terceira faixa do EP, lembro do sujeito que perguntou ao trompetista Louis Armstrong o que era jazz. “Se você tem de perguntar, você jamais irá saber”, respondeu Armstrong. Com Fernando Peters Trio, é possível respirar aliviado durante a tempestade, já que os brasileiros criam um ensaio sobre solidão e conexões representadas em melodias melancólicas, mas também nos ruídos característicos do rock. Tudo isso gravado de maneira orgânica.

Acompanhado por Leonardo Bittencourt, pianista e compositor graduado em música popular pela UFRGS, e Julio Falavigna, baterista e multi-percussionista, o contrabaixista Fernando Peters, 52, lançou obra que nos deixa ansiosos para o disco inteiro, que chegará ao público no verão de 2024. Nesta entrevista, comenta sobre novo projeto, fala da experiência em trabalhar com Humberto Gessinger e indica jazzistas. Veja os melhores momentos:

Diário da Manhã – Quando o disco irá sair?

Fernando Peters – Gravaremos as últimas músicas agora no verão de 2024. Apesar de eu me considerar relativamente organizado e pragmático enquanto trabalho, mantemos propositadamente uma tensão criativa neste álbum – apresento as ideias, discutimos sobre elas e entramos em estúdio – praticamente sem ensaio. Se o que registrarmos nos agradar, entra. Tem funcionado. A ideia é lançar o disco completo entre maio e junho.

DM – Na primeira música, “Serpentine”, o contrabaixo costura a bateria e se faz bastante presente no universo sonoro. É o tipo de coisa que queremos ouvir uma, duas, três vezes… O que é mais fácil: trabalhar com Humberto Gessinger ou criar obras jazzísticas?

Fernando – Em primeiro lugar, devo agradecer o elogio – “Serpentine” é uma música especial para nós pois, de certa forma, ela apresenta as tintas deste projeto. Fui buscar na memória o que me ocorreu primeiro, se a melodia do piano ou a linha do contrabaixo e (ah, a idade…) confesso que não lembro…

Não faço distinção entre gêneros, estilos. A discussão sobre o que é e o que não é jazz já tem décadas, nem sempre baseada em motivos exatamente nobres. Não esperneio com o rótulo, faz parte até do processo comercial – mas chamo de música.

Sobre trabalhar com outras pessoas, talvez o que mude seja quem “bate o martelo” sobre determinadas coisas – mas o compromisso em procurar o que é melhor para a música é mais ou menos o mesmo. No caso do Humberto, é necessário mencionar que, apesar de bastante consciente do que quer, ele é um artista que te dá a liberdade para criar e procura aproveitar o que cada um tem para oferecer. Nos meus trabalhos autorais, tento fazer o mesmo.


Fernando Peters: “é algo que ficou natural para mim”. Foto: Divulgação

DM – De que forma essas experiências aparentemente díspares entre si te auxiliam na música?

Fernando – Necessariamente, a ideia de quebra de paradigma – reconhecer valor, talento, peculiaridades, dominar o medo de ousar e também identificar limites, no intuito de produzir o que de melhor puderes, naquele recorte de tempo. No fim das contas, não é – ou não deveria ser – muito diferente de viver em sociedade.

DM – A segunda faixa, “As Diferentes Velocidades da Passagem do Tempo”, tem alternâncias rítmicas, o que imagino ter sido desafiador de criar. Como foi o processo de criação da obra?

Fernando – Bem colocado. A alternância de compassos, andamentos, formas e a presença de polirritmias não são algo proposital, no sentido de constituírem uma obrigação ideológica. Certamente, vem da minha formação musical – “gastei” a trilogia do King Crimson nos anos 80 (Discipline, Beat, Three Of A Perfect Pair) e sempre me encantaram músicas que fugiam do 4/4, como “Solsbury Hill” (Peter Gabriel) e “Take Five” (Paul Desmond, na icônica gravação de Dave Brubeck). Havia algo de mágico e magnético ali que eu precisava entender. Então, é algo que ficou natural para mim – muitas vezes, sequer me dou conta que tal compasso é um sete ou um cinco até ter que pôr na partitura. Ressalte-se que não vejo isso como um mérito, e sim, como uma característica.


DM – Ouvimos “Kind Of Blue” e parece fácil ligar o instrumento e tocar. Essa sensação quem cria em nós são os gênios, no entanto. O que um músico precisa ter pra brilhar numa jam?

Fernando – Para mim, necessariamente, personalidade. E isso vale para qualquer cenário, qualquer estilo, qualquer proposta. Serei eternamente impressionado com o que Herbie Hancock ou Jaco Pastorius trouxeram, mas tenho zero interesse em ver alguém reproduzindo o que já foi feito. Citastes o Miles – um gênio – e devo dizer que o que mais me seduz nele é justamente isso: a busca pela reinvenção, o risco, a coragem. Nem sempre é fácil de se fazer entender, nem sempre se acerta, mas possivelmente é o único caminho para se fazer arte minimamente relevante.

DM – Sendo a obra em questão de jazz, então quais são os jazzistas que lhe fazem a cabeça? E quais artistas brasileiros estão dentre seus favoritos nesse estilo tanto aqui quanto lá fora?

Fernando – Prefiro dizer que assumo que é uma “textura de jazz”, muito pelo formato do piano trio. Mas, honestamente, é possível que em composição e estrutura, eu identifique outras formas – tango, rock, milonga? Talvez não caiba a mim julgar. O “jazz” que primeiramente me entrou na cabeça (e nos ossos, no coração…) foi o registrado pela gravadora ECM nos anos 70 e 80: Egberto Gismonti – gigantesco, Charlie Haden, Jan Garbarek, Jon Christensen.

Mais recentemente, gosto muito dos escandinavos Esbjorn Svensson, Tord Gustavsen. Geralmente, gosto da associação de outros idiomas com o jazz – Jobim com a música brasileira, Piazzolla com o tango, o que o Renato Borghetti faz com a música gaúcha, Rubalcaba com a música cubana, etc.


Fernando sobre arte: “Respirar nos intervalos do maremoto” – Foto: Divulgação. Foto: Divulgação

DM – Como anda a cena do jazz hoje em dia no Brasil: quem são os artistas, em quais nomes devemos ficar de olho e onde eles tocam?

Fernando – Serei desavergonhadamente tendencioso ao citar a Bianca Gismonti, com quem o Julio Falavigna (baterista deste disco) trabalha, o Atairu Trio (projeto novo do Leo Bittencourt) e o Instrumental Picumã (com o Paulinho Goulart, que divide o trio acústico do Gessinger comigo), que traz outra abordagem para a música regional do Rio Grande do Sul – trabalhos com aquilo que me é mais caro: assinatura. Esqueçam o possível caráter nepotista das sugestões – apenas ouçam.

DM – Em “As Long As We´re Pouring Our Hearts Out, Let There Be Some Attempt of Beauty In Our Sadness”, fica óbvio a oscilação de sentimentos. O que é o jazz pra você?

Fernando – Prefiro falar sobre arte em geral. De certa maneira, é uma expressão de inconformidade – o desejo de romper com o que está posto, seja externa ou internamente. Está no vigor da música do Nuevo Tango, nos livros do Rubem Fonseca, nas pinturas do Gerhard Richter. O “As Long As…” é um pouco disso, creio. Respirar nos intervalos do maremoto.

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