O gênio da raça
Diário da Manhã
Publicado em 26 de outubro de 2018 às 22:14 | Atualizado há 7 diasSe estivesse vivo, não tenho dúvida de que o cineasta baiano universal Glauber Rocha (1939-1981) ficaria triste com o contexto político pelo qual o Brasil passa no momento. Crítico da esquerda convencional durante os anos de chumbo da Ditadura Militar (1964-1985), é difícil elencar um cara mais revolucionário na sétima arte do que o gênio da raça, tanto estética quanto politicamente. Para você ter uma ideia, o guerrilheiro Che Guevara (1928-1967) chegou a comparar a importância do longa-metragem Deus e o Diabo do Terra do Sol (1964) com Dom Quixote, romance pai da língua espanhola moderna, lançado no final do século XVIII.
Em carta para o irmão de Che, Alfredo, o diretor brasileiro conta que tinha a intenção de filmar America Nuestra em memória ao guerrilheiro morto pelo exército da Bolívia com participação da Central Intelligence Agency (CIA). O projeto nunca saiu do papel, mas serviu de base para Glauber escrever o roteiro do clássico Terra em Transe (1967). Sem compreender o significado prático daquela obra que representa a estética da fome (arte revolucionária que, na visão de Glauber, enfeitiçava o homem a tal ponto que ele não conseguiria mais suportar a realidade), grupos de direita e sectários de esquerda teceram duras críticas ao longa.
No manifesto Eztehika do sonho (1971), Glauber escreveu que “o pior inimigo da arte revolucionária é sua mediocridade”. “As conclusões dos relatórios dos sistemas capitalistas encaram o homem pobre como um objeto que deve ser alimentado. E nos países socialistas observamos a permanente polêmica entre os profetas da revolução total e os burocratas que tratam o homem como objeto a ser massificado. A maioria dos profetas da revolução total é composta por artistas. São pessoas que têm uma aproximação mais sensitiva e menos intelectual com as massas pobres”, disse o cineasta na Columbia University, em janeiro de 1971.
“Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica”, afirmou Glauber. “A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística”.
Em 1971, visto como subversivo pela ditadura militar, o cineasta exilou-se em Portugal. O país europeu estava em efervescência política em função da Ditadura do Estado Novo, instaurada por Antônio de Oliveira Salazar (1899- 1970), em 1933, e que dava seus últimos suspiros no período. Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, Glauber saiu às ruas para conversar com a população sobre a Revolução dos Cravos (1974), que derrubou o regime salazarista e restabeleceu a democracia no país. Meses depois, lançou o documentário As Armas e o Povo (1974).
Três anos depois, Glauber foi premiado no Festival de Cannes pelo documentário Di-Glauber. O filme é uma homenagem ao pintor modernista brasileiro Di Cavalcanti (1897-1976). As imagens foram feitas praticamente todas durante o velório e enterro do artista. Em 11 de março de 1977, o Museu de Artes Modernas de São Paulo (MAM) estreou a obra junto com o filme Cabeças Cortadas (1970), também de Glauber. No término, a filha do modernista, Elizabeth Di Cavalcanti, acusou o cineasta baiano de ser desrespeitoso por mostrar a morte do pai. Em 1979, a Vara Cível concedeu liminar favorável a Elizabeth, vetando a exibição do filme.
No livro Minhas histórias dos outros (2005), o jornalista Zuenir Ventura contou que Glauber estava bastante triste no final da vida por conta das críticas que setores à esquerda faziam a ele, acentuando-a quando o cineasta posou para uma foto ao lado do general João Batista Figueiredo (1918-1999). “A foto e as declarações foram publicadas no Brasil, fornecendo mais um argumento aos adversários de esquerda de Glauber, que desde 1974 o acusavam de adesão à Ditadura. Aquele encontro não era uma provocação, era uma espécie de autoimolação. Glauber se entregava ao país em defesa da abertura político do país”, escreveu Ventura.
Glauber Rocha morreu em 22 de agosto de 1981 certamente em decorrência de negligência médica, conforme relatou o jornalista em Minhas Memórias dos Outros.
MARCADO PARA MORRER
Apesar de setores da esquerda terem criticado Glauber Rocha durante boa parte da década de 1970, o cineasta chegou a ser vítima de espionagem e perseguição pela ditadura. Em 2012, documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) com o objetivo de elucidar crimes contra a humanidade cometidos nos anos de chumbo, revelam que o autor de Terra em Transe chegou a ser classificado como “um dos líderes da esquerda no cinema”.
Produzidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), os relatórios compilam atividades do cineasta, bem como declarações dadas aos jornais de fora do país. No dossiê, constavam trechos de artigos escritos por Glauber em jornais da época. Dentre eles, uma justificativa para sua atuação contra a ditadura. “O cinema não será para nós uma máscara, porque, o cinema não faz revolução – o cinema é um dos instrumentos revolucionários e para isto deve (-se) criar uma linguagem latino-americana, libertária e reveladora”, afirmou o diretor à revista Cine Cubano, em 1971, de acordo com SNI.
Na época, o cineasta Silvio Tendler, amigo de Glauber, disse que a perseguição ao baiano e às pessoas que contestavam o regime prejudicou o Brasil . “Aliás, prejudicou os artistas, os estudantes, os sindicalistas. A ditadura foi um preço muito alto para a nação. Sou de uma geração que desaprendeu a falar e estamos aprendendo a falar depois de velho. Antes, era tudo proibido”, contou. Tendler frisou que Glauber era um artista extraordinário, porém não foi o único a sofrer com a repressão. “Eu e muito outros fomos perseguidos, como Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), que foi preso, e Olney São Paulo, barbaramente torturado”.
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