Quando medo é sinônimo de desejo!
Diário da Manhã
Publicado em 4 de agosto de 2018 às 23:54 | Atualizado há 2 semanasMuito Pelo Contrário, ilustrado por Pedro Kastelijns, publicado pela Nega Lilu Editora, é o primeiro livro de Walacy Neto, mas o poeta já fazia circular seus versos pelas ruas das cidades por meio do que poderiam ser aviões de papel, os zines. Justamente por isso a projeto gráfico de seu livro de estreia flerta de ponta a ponta com a estética desse perfil de publicação, a começar pela textura da capa, disponível em quatro cores ao gosto do leitor, passando pela diagramação e por fim pela maneira como se apresenta o “Prefácio” de Marcelino Freire e a seção final, “o autor por ele mesmo”, que lembram versões anteriores de zines xerocados por Walacy pelo selo Zé Ninguém. É um livro tátil na velocidade de um Boeing 747 que pode aterrissar no seu quintal, nunca sem medo.
“Sobre o estranho prazer de sentir medo de tudo e de todos”, assim o livro nos é apresentado pela editora, o que me parece uma apresentação certeira, na medida em que o medo não é só um tema, mas o fio condutor da obra. A primeira parte, “Muito”, se abrecomumaepígrafedeClariceLispector, na qual a autora alude à polpa de uma fruta ameaçada de ser rompida e pronta para escorrer para fora de seus limites prévios. Enquanto mais a frente o poeta diz: “Ligo uma palavra à outra como um eletricista. Tudo fica elétrico mesmo que calmo, e o medo é só uma palavra. O medo é só uma palavra porém carregada de maldição e magia”.
Esse excesso que transborda e essa eletricidade que nos permeia servem de metáfora no que diz respeito às variações deste afeto. Sob uma ótica clínica, o medo, tem justamente a função de limite, é um afeto localizado com um objeto específico, fobia de cavalos, por exemplo. É nessa tensão, entre a circunscrição de um continente e o oceano ilimitado que o cerca, que cambaleia o eu lírico de Walacy, ao que afirma “em mim essa mania de desconstruir tudo que é vida e me despedaçar como flor.” Ou ainda “tenho medo / que o gemido / vire estrondo”.
Cada dia mais as tonalidades do medo têm tingido nossas vidas na sociedade contemporânea. É o que atestam as recorrentes crises de pânico, em que “confesso / tenho medo / que a morte / me pegue no roteiro / e que o filme da minha vida / seja parado no meio.” No tempo em que vivemos, a partir do que Lacan chamou de “declínio da função paterna”, os sujeitos padecem da falta de ideais que norteiem suas vidas quanto à forma de fazer laços com o Outro, e ficam cada um por sua própria conta e risco a tatear no escuro um referencial, “quando encontro o amor / esbarro a barra da saia / derrubo o abajur / fico no escuro”. Além do mais, nas metrópoles, vivemos numa atmosfera de apreensão constante e generalizada, conforme se encena: “quem há de não ter / medo, / quando uma perdida bala / vem reto / ou com efeito? / nós, sempre indefesos / só não temos medo / de agarrá-la / com a palma / do peito.”.
Na segunda parte, “Pelo”, assistimos a gênese de um bocó. “Vivia no limbo entre as linhas e espaços brancos. Primeira vez que viu-se como Bocó foi aqui descrito sendo que a palavra é um barro e o pincel um brinquedo de criar esse sujeito livrado de consequência”. Aquela matéria informe que assombrara o eu lírico na primeira parte, agora ganha um nome, uma identidade. Como os pelos que protegem a pele e parecem servir-lhe de ajuda na delimitação entre dentro e fora do corpo. Não à toa, os poemas também ganham títulos, o que lhes confere certa ancoragem, uma vez que “tinha medo do que voava sem significado ou corrente amarrada ao chão”.
Na página 40, Walacy migra da poesia para a prosa, e num pequeno conto desenha o drama de uma mulher, cujo “coração não carrega amor, só angústia”. A personagem teme se encontrar com o médico que no ato de marcar a consulta de retorno lhe aconselhou “venha depressa, mas não corra!”. Dessa advertência se alimentou o medo da personagem de ouvir as prováveis más notícias que o médico teria pra lhe contar, mas ao encontrá-lo descobre que não tem problemas cardiovasculares e saí aliviada, caminhando ironicamente rumo a um fim à la Macabéa. Ao passo que na página seguinte o narrador nos adverte: “Já pensou? / ninguém mente que está com medo”.
Ainda que o conto não tenha objetivo pedagógico, pareceu enunciar de suas entrelinhas uma verdade: ainda que o objeto de nossos temores seja irreal, o medo, por sua vez, é sempre real. Conforme reiterará na terceira parte: “Queria explicar pros dois amantes da vida que o silêncio e a ausência têm presença maior, dizer que uma angústia às vezes é mais concreta que o violão, a máquina fotográfica. […] dentro de tudo sempre cabe mais um nada.”.
A terceira parte, “Contrário”, é composta por poemas em prosa, intercalados pelos subtítulos “dentro” e “fora”, onde somos apresentados a um menino, “ele é um mau espírito, talvez o pior de todos”, que a todo momento presentifica pares opositores: letras pretas em páginas brancas quando “fora”, letras brancas em páginas pretas quando “dentro”; um constante jogo de luz e sombra. O menino é um alter ego do autor? Ou um duplo do narrador? Ele nos engana, ora parece existir externamente, aparecendo em situações concretas, atravessando a rua, colando lambes nos muros da cidade, ora parece ser o que restou da infância do narrador, subsistindo na memória. Mas, pouco importa sua concretude, e mais interessante é seu caráter de assombração, à semelhança do que explica o narrador: “As risadas ao fundo da cena na série de TV pertencem a pessoas mortas. Da terra nada se leva, nem mesmo a gargalhada. Enquanto os outros choram sobre o caixão ou sobre a lápide, o falecido continua a rir como louco nas casas alheias”.
No texto “O estranho”, Freud se dedica a investigar de onde advém a sensação de estranheza que vez ou outra nos assalta. Parte da raiz alemã da palavra (unheimlich), passa por narrativas literárias clássicas do gênero horror, e conclui que, aquilo que hoje mais nos causa estranhamento remonta à algo que anteriormente nos foi familiar. Lacan, por sua vez, a partir deste texto de Freud e da topologia, cunha seu conceito de extimo pra dizer daquilo que é externo e íntimo ao mesmo tempo, e que apesar de dentro e fora serem opostos, podem ocupar o mesmo lugar, não necessariamente se anulando. Ao que o narrador testemunha: “As coisas sempre abrigam dois espaços distintos, quero dizer: tudo é dentro e é fora. Os cacos de vidro atrapalham a jornada em busca da minha imagem refletida.”
Em Muito Pelo Contrário, o eu lírico de Walacy experimenta a passagem do tempo na letargia das tardes de férias, “os dias não me costuram/ eles me bordam / com paciência de vó” e compreende o exercício poético como correlato ao ato artesanal de bordar, onde ao ligar palavra com palavra costura os buracos que nos constituem, “pelas metades me formo / pelo contrário me assumo”. É um bocó assombrado por um menino, é enfim, um caçador de medos!
Mas não é novidade que as pessoas procurem o medo. Desde as crianças que insistem para que os pais recontem os contos de fadas, devotando especial atenção aos momentos de perigo, com olhos fascinados a imaginar-se contemplando a bruxa de João e Maria, até os adultos que em salas de cinema prendem o ar por uns instantes durante o clímax dos filmes de terror, o prazer de assistir a vítima em potencial mergulhar sozinha no escuro do porão da casa é real. De toda forma, é demasiado humana essa nossa recorrente contradição, a de que nossas mãos buscam o que nossos pés evitam, e vice versa. Por que se sabe que o contrário do medo não é necessariamente coragem, ao passo que seu sinônimo pode ser: o desejo.
(Henrique Lopes é psicanalista e especialista em docência do ensino superior (FABEC). Formado em psicologia (PUC-GO), integra o Coletivo e/ou e a diretoria da Casa da Cultura Digital. Co-idealizador do projeto itinerante Fábrica de SentidoZ. Publicou contos na antologia As dores de Josefa (Selo Naduk – Nega Lilu Editora) e o fotozine independente Veludo Azul.)
]]>