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Quanta poesia num simples pé de ferro!

Diário da Manhã

Publicado em 11 de abril de 2018 às 00:30 | Atualizado há 2 semanas

Gabriel Nascente adorou uns versos de Adalberto Monteiro que lhe mos­trei, mas discorda de mim quan­do digo que os versos de Pé de Ferro são evocativos das serena e contemplativa visão elegíaca do grande José Décio Filho, injusta­mente desconhecido poeta goia­no. Gabriel acha que Adalberto soa um tanto brechteano.

Pode até ser. Afinal, Adalberto Monteiro é militante comunista, dirigente nacional do PC do B, edi­tor da revista Princípios, órgão teó­rico do vetusto noventão. Adalber­to é também dirigente da Fundação Maurícío Grabois e da Editora Ani­ta Garibaldi. Um homem de letras e de ação. Mas o poeta Adalberto Monteiro é um caso à parte.

Pé de Ferro é o terceiro livro de poemas deste artista inspirado, de aguda sensibilidade e talento lite­rário continental. É, também, um ser humano raro. Pessoa de quem a gente acaba gostando de graça. A modéstia, a simplicidade, a simpa­tia, o jeito encabulado de garoto su­burbano, nascido em uma família proletária, que sem fazer esforço al­gum acaba conquistando a estima dos que com ele tratam.

Adalberto Monteiro é ainda aquele menino nascido no Piauí, mas criado em Goiânia, lá no Cri­meia, com quem muitas vezes me encontrei no ônibus da Re­unidas que fazia a linha Balne­rário-Centro via Fama. Nos anos 70, os jovens da minha geração, da geração de Adalberto, não ti­nham muitas informações. Vivía­mos sob o tacão de uma ditadura claustrofóbica que nos alienava. Ao contrário da geração anterior, a de Aldo Arantes e a de José Dir­ceu, nos politizamos quando en­trávamos na idade adulta.

“O país estava sob sombras./ A liberdade encarcerada/ e a Na­ção obrigada a sofrer calada”. Em “Conto de um encontro”, o poeta reflete sobre o final da década de 70, uma era que nos dera a mis­são de resgatar a primavera e, in­sensatamente, como os operários de Beleville, Paris, tomar o céu de assalto”. Aquele rapaz nunca mais se curou da loucura do amor. De confessa à sua musa: “ Pouco im­porta que essa felicidade tenha tido a duração de um relâmpago”.

Cursando Jornalismo na UFG, Adalberto logo estaria no PC do B, ainda clandestino, vendendo o jornal Tribuna da Classe Operá­ria, e ajudando a reconstruir o mo­vimento estudantil. Ele acabaria exercendo a vereança em Goiânia, e chegou a dirigir o PC do B goia­no. O velho João Amazonas, sem­pre afável, lhano no trato, o típico comunista das antigas, tinha por Adalberto um carinho todo espe­cial. O fato é o então jovem intelec­tual foi levado para São Paulo, para servir ao seu partido como organi­zador das atividades editoriais da sigla. E por lá ficou.

A musa de Adalberto é o cen­tro antigo de São Paulo, opressivo, decadente, todavia, cativante. O poeta é aquele cidadão que ado­ra bater pernas por aquelas ruas e observar a vida da metrópole cinzenta. Ao andar por aquelas ruas e praças, o poeta lança seu olhar compassivo e solidário aos que sofrem. Ele se compadece do mendigo expulso a jatos d´água, mas que ainda encontra forças para jurar vingança. Uma andori­nha atabalhoada que invade-lhe a casa pela vidraça é tema de um poema comovente, por sua trans­bordante humanidade. O músico de rua, que toca tango na Paulis­ta. A vida não escapa só olhar be­nevolente do poeta.

E assim ele vai, caminhando e cantando os deserdados da ter­ra. Nada da fúria vulcânica de um Mayakovsky. Nada da amargura de um Brecht. Nenhum pingo do desespero de um Lorca. Nada da grandiloquência de um Neruda. Longe do transbordamento revol­toso de um Tagore Biran. O poética de Adalberto é sentimental na justa medida. Ele é sóbrio, parcimonio­so no extravasar seus sentimentos. Nisso reside, penso seu, sua origi­nalidade, sua marca artística.

Sua poesia não chega a ser um toque de reunir para a luta. E daí, qual é problema? Sua atitude é a de quem abraça um pobre men­digo de rua, aperta-o contra ao peito, e diz-lhe: “Meu irmão, meu irmão!” Esta veia mística de Adal­berto, na linha lúcida de o misti­cismo de um Jacob Boéhme, as­sumindo um humanismo radical, é a garantia de que nosso socialis­mo terá uma face humana.

Como todo marxista, Adalberto é ateu, e o confessa. Mas seu ateís­mo, como diria Jorge Amado, não o limita. Ele é capaz de se comover com a fé genuína dos que acredi­tam porque é absurdo, e não se in­teração pelos argumentos raciona­listas dos teólogos. Confrange-lhe a alma o cadáver do morador de rua assassinado ao pé da estátua de Luiz Gama, no Largo do Arouche.

Como diz Gabriel Nascente, o poeta sofre porque quer enfiar o mundo numa palavra. A poesia que tem o mundo por conteúdo é a que fica, é a que comove, é que dá alento. A poesia que celebra a vida, ainda que a vida à esteja es­magada pela miséria, que é anti­-vida, traz em si a mara intrínse­ca da honestidade. E o poeta que põe seus versos a serviço da dig­nidade humana – não do homem abstrato, mas o indivíduo de carne e osso que sofre e apanha – mere­ce todos os encômios.

A poesia formalista, do puro jogo intelectual de palavras, que tenta tirar efeitos sonoros de sílabas embaralhadas, os concretismos e os neoconcre­tismos desumanizantes, sem compromisso com a vida, me­recem de mim apenas despre­zo. Essas vanguardas que an­dam por aí a promover formas vazias, querendo chocar ape­nas pelo gosto do escândalo sem causa, conseguem todos os espaços nos cadernos cultu­rais da grande imprensa. Dela só temos que lastimar a enor­me perda de tempo.

Enfim, Adalberto fala dos luga­res onde andou. Ele correu mun­do a serviço do socialismo. Esteve em muitos países representando o PC do B. Mas é à sua querência, a Goiânia de sua infância, que ele sempre volta. E vota no belíssimo e comovente poema em que re­verencia seus país: “A história de um retrato”. O pai que teve uma renca de filhos e os sustentou no pé de ferro, remendando sapa­tos, e servido de garçom dos bai­les granfinos do Jocquey Clube de Goiânia – que já não há – ou cole­tando apostas no Hipódromo da Lagoinha. A visitação sentimen­tal prossegue no poema que dá título ao livro: Pé de ferro”. Valem pelo livro todo.

Já no final do livro, o poeta se la­menta de não ter visto o Kouhoutec, o tão esperado e festejado cometa que deu as caras por aqui no final dos 70s. Nada perdestes, poeta. Eu sempre tive essa mania de me le­vantar de madrugada para ver co­metas. Vi muitos, e me decepcionei. O Kouhoutec ficou perpendicular à terra, de sorte que só víamos sua ca­beça, apenas mais um astro banal brilhando um pouquinho mais. O cometa de Halley foi outra decep­ção. Mas por volta de 1972, acho que foi àquela altura, passou por aqui um cometinha que a impren­sa dizia ser mixuruco, reles. Foi o co­meta Benet. Pois este astro modes­to riscou o céu da madrugada com suia luz verde, de um horizonte ao outro. O Benet, o humilde Benet, foi puro deslumbramento.

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