Entretenimento

Tinha uma pedra que era o meio do caminho

Diário da Manhã

Publicado em 11 de agosto de 2018 às 22:28 | Atualizado há 1 semana

A ntes de qualquer coisa penso na viagem. Imagino o que pode ocorrer, o que pode deixar de funcionar. Acho até que invento para mim uma perso­na meio mística, tento prever qual­quer catástrofe. No fundo, existe algo no interiorano muito com­plexo: um misto de desejo e medo ao ter que tomar qualquer estrada. Enfim, medo a gente supera ou co­loca debaixo da língua, deixa der­reter e se espalhar pelo corpo. En­fim, medo a gente supera.

O primeiro caminho é sem pen­samentos. Tudo parece ser abafado pelo som das turbinas, pelo baru­lho de um carro, pela trilha sonora que o motorista escolheu: “o novo cd do Buchecha, mas é muito ama­dor, feito em casa”. Esse “feito em casa” me atrai, penso o Buchecha com seu estúdio em casa, fazendo som só pela pira de fazer. Gosto do disco e não falo nada, acho melhor olhar a janela lateral, as formações rochosas novas e as ruínas de casas na beira da estrada. Penso: “quem morava ali?”. Mas isso some e ou­tra coisa vem e some, logo durmo.

“É ali, não é?”. Meu olho esquer­do abre e parece que chegamos na cidade de Paraty, no Rio de Janei­ro. Muito movimento e uma gran­de faixa na entrada escrito: “Bem Vindo à Flip” e alguma observa­ção sobre jogar lixo no lixo. Esta é décima sexta edição do Festival Internacional de Literatura de Pa­raty, ou apenas Flip. Tudo parece diferente das outras edições logo no nome que encabeça essa edi­ção. Hilda Hist, uma poeta que por muito tempo foi vista com medo pelos leitores. Mas como já foi dito, medo a gente supera.

Na Flip muita coisa aconte­ce no cenário literário, é fato. As mesas ocupam a programação durante todo o dia e diversos encontros e debates são reali­zados pelas casas no centro his­tórico, dando espaço para todos os tipos de literatura. Entre uma casa e outra, passando só para checar o que havia, vejo a poe­ta Mel Duarte e, de longe, qual­quer um também reconheceria: a potência do seu poema tam­bém está na luz que ela carre­ga, extremamente visível. “Ain­da tem livro?” “Claro”.

Poema do livro Negra Nua Crua, de Mel Duarte, publicado pela editora Ljumaa

Negra Nua Cura

Eu não preciso tirar a roupa pra mostrar que sou atraente

Minha postura e ideia é que fazem atrair tanta gente.

Da minha boca disparam palavras

Verdades, viveres

E através dela trago coisas que fazem fluir a mente…

Também ingiro dores é fato, mas só quem sabe sente

E para amenizar, solto sentenças contundentes.

Não me distraio com comentário hipócritas só porque

não uso pente

Minha avó já dizia: Respeito te faz manter os dentes!

A carta de alforria há tempos foi assinada

Mas ainda vejo o negro como obra de mão barata,

A mulher negra sendo chamada de mulata

E minha fé a todo tempo sendo testada.

Eu exijo respeito, novo velho senhor de engenho

Ser considerada “a carne mais barata do mercado”

Eu não aceito!

Trago calos em minhas mãos sim, pelo trabalho que

desempenho

E enquanto a caneta for minha enxada não me faltará

alimento.

Minhas curvas mais bonitas

Desfilam através de devaneios

E minha fala hoje é bruta pra fincar dentro do peito.

Sou poeta e das rimas faço meu sustento.

Me apresento:

– Mel

Negra, nua, crua de sentimento.

INDEPENDENTES, PRESENTES

O público central da festa literá­ria, muitas vezes, não procura exa­tamente o que é inovador. Ainda existe um conservadorismo care­ta que acreditam que poesia e li­teratura são coisas estáticas. En­quanto estes continuam em 1900 e bolinha, a voz dos poetas, o cor­po dos poetas, se torna um gran­de mercado para a novidade. Re­pito a frase do escritor Marcelino Freire: hoje em dia o maior distri­buidor de livro é o sovaco. É isso! Na Flip, à cada esquina, uma pa­rada diferente, alguém oferecen­do um zine, um livro, um marca­-páginas com poemas da Hilda.

Contínuo entre as pedras, mas um pouco mais perdido. A gente visita um lugar e logo acha que conhece, mas as casi­nhas históricas parecem se re­petir, as ruas parecem labirintos e acabo voltando (3 vezes) pro mesmo ponto. Sento no meio fio desistente e vejo um grande bar­co pirata, coisa inédita na Flip, ao menos pelo que eu saiba. É a Flipei, uma parte da progra­mação dedicada aos escritores independentes. Pergunto o que está acontecendo e alguém me diz: fica, vai ter slam. Fico, vejo que Pedro Bomba (e mais tan­tos) estão ali entre os inscritos.

Poema do livro “O Chão Dispõe a Queda” de Pedro Bomba

Quinze por trinta

é só meu filho passar no vestibular

que eu vou mandar estender uma faixa

de lona colorida

quinze por trinta

pendurar no portão

que é pra todo mundo ver

sair comentando

falando na vizinhança

que o filho de fulana

parente de coisa e tal

passou na faculdade de direito

em sétimo lugar

entrou folgado

feliz e satisfeito

eu não disse

que esse menino ia ser assim

um orgulho para família

mas começou a fumar maconha

deixou a barba crescer

ta andando com os sem-terra

cê acredita?

aquele desgraçado largou o curso de direito

e tá fazendo comunicação

tá namorando com outro menino

e disse que ele é o amor de sua vida

e eu

também acho

Várias polaridades e versões sobre um mesmo tema: a poe­sia. Não tem outra nesses even­tos, mesmo que alguns tentem abafar tentando colocar a escrita dentro de limites, existem doidos de pedra pela palavra, que nun­ca deixam de lado a vontade de inovar usando aquilo que une as pessoas, que é a comunicação.

VOLTANDO

Na estrada que liga São Paulo até Paraty, vamos cambaleando nas poltronas da van, meio acor­dados por dentro mas derrota­dos por fora. Penso que a Flip é uma maravilha, mas não a Flip, e sim quem está por ali tentando viabilizar o contato entre as pes­soas através da palavra. Imagino que isso, no passado, seria uma promessa de futuro. Com o li­vro de Adélia Padro na mão, que comprei na pira de não achar outro em Goiânia, procuro al­gum poema que console. Abro o livro-de-cristal para ler algum futuro. Penso na viagem de vol­ta, fico outra vez daquele jeito medroso. Respiro.

Leio este poeminha em voz baixa quando o carro atravessa a divisa do Rio de Janeiro e São Paulo:

Grande Desejo

Não sou matrona, mãe de Gracos, Cornélia

sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.

Faço comida e como.

Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro

e atiro os restos.

Quando dói, grito ai

quando é bom, fico bruta,

as sensibilidades sem governo.

Mas tenho meus prantos,

claridades atrás do meu estômago humildade

e fortíssima voz para cânticos de festa.

Quando escrever o livro com o meu nome

e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,

a uma lápide, a um descampado,

para chorar, chorar, e chorar,

requintada e esquisita como uma dama.

]]>


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias