A despeito do Natal, Feliz Natal!
Diário da Manhã
Publicado em 19 de dezembro de 2017 às 23:48 | Atualizado há 7 anosNão é de minha natureza ser um niilista. Tampouco um desmancha-prazeres. Entretanto, por mais que eu me esforce, não consigo envolver-me nesse clima de Natal que tanto contagia as pessoas. Não digo isso com regozijo, o faço até mesmo com certa dose de tristeza, afinal, não é fácil viver em um mundo onde sinto-me destoante de quase tudo o que é comum. Não é somente o Natal que vejo como sendo algo absolutamente sem sentido. Ou melhor, o Natal faz sentido, sim, para cumprir com a finalidade real, para a qual ele foi inventado: a festa do capitalismo, da cultura consumista.
Eu tenho uma enorme dificuldade de inserção até mesmo nas coisas mais comuns, naquilo que, às vezes, significa até mesmo a identidade de um povo, como por exemplo o futebol. Quando vejo duas ou mais pessoas discutindo sobre futebol, por mais que eu me esforce, não mais para entrar no clima, mas, ao menos, para achar normal, não consigo ver outra coisa senão dois ou mais idiotas. Para mim é tudo muito sem sentido. Eu tenho muitos amigos que gostam de futebol, outros que são fanáticos. Isso me ajudou a descobrir que as mulheres sempre fingiram que odeiam que seus namorados ou maridos sejam fissurados por futebol. É tudo mentira. Elas gostam disso, pois, para elas, fica tudo tão previsível que facilita o controle, a fiscalização, o domínio da situação. Elas não veem neles nenhuma variação e isso as coloca em uma zona de conforto diante da relação. As mulheres, na verdade, não suportam os homens que pensam muito, que se entregam por horas ao silêncio, às introspecções, às reflexões. Isso causa nelas uma profunda inquietação. “Ih, esse cara pensa demais. O que será que anda se passando pela cabeça dele? Será que está desconfiando de alguma coisa”?
Mas, não é apenas em relação ao futebol que sinto-me desagregado de grande parte do corpo social. A começar, não sou um brasileiro típico, não gosto de café, não suporto carnaval, odeio pagode e axé. Qualquer pessoa fumante percebe rapidamente que não gosto dela, nem mesmo que respire perto de mim. Como se tudo isso fosse pouco, detesto multidão e gente que fala alto e em demasia. Não é preciso pressagiar para perceber que tenho poucos amigos. Sim, são poucos. Mas cultivo com devoção as amizades que possuo, como sendo uma de minhas características idiossincráticas, não significando que eu seja uma pessoa não-gregária.
Retornando ao tema do Natal, eu tenho razões para detestá-lo desde a minha tenra infância, mais precisamente quando comecei a aprender a ler. Por isso creio que a educação é mesmo muito poderosa para quebrar mitos, destruir ilusões, libertar-nos da caverna da ignorância. A infância pobre dava-nos a sensação de que o Natal não existia para nós, pois estávamos fora do rol dos que podiam consumir. Restava-nos apenas esperar a visita do Papai Noel. Quando comecei a aprender a ler, então tudo se esclareceu. Eu percebi pelos papeis dos embrulhos dos presentes que não era nada de Papai Noel, mas a minha pobre mãe que fazia um esforço imensurável para nos presentear e nem se preocupava em envolver os presentes em papeis que omitissem os nomes dos estabelecimentos comerciais onde foram comprados. Para ela, poder comprá-los e nos presentear já era um grande alívio e felicidade. Para nós também. Eu sempre achei o Natal uma farsa e, quando adulto, o que era dúvida passou a ser certeza. A começar pela própria data, 25 de dezembro. É claro que essa data não passa de uma estratégia do comércio para ajustar suas economias, considerando o fim do ano e o início de outro.
Nenhum historiador, nenhuma religião, nenhum documento, até hoje, foi capaz de demonstrar que Jesus Cristo, de fato, tenha nascido no dia 25 de dezembro. Aliás, sem pretender criar polêmica, e por respeito aos sentimentos que envolvem tanta gente neste período, não vou aprofundar-me no assunto. Entretanto, existem estudiosos, como historiadores, arqueólogos, antropólogos, que sustentam que o próprio Jesus Cristo nunca existiu e que a sua invenção não passa de uma providência de estratégia do imperador Constantino e pelas mesmas razões que se criou a Igreja Católica.
Em verdade, eu nada tenho contra o Natal. Ocorre que também nada tenho a favor. Quando eu digo a alguém “feliz Natal”, não estou fazendo referência à data, propriamente dita, pois não acredito que exista algo de Divino ou de Sobrenatural nisso. Acredito, simplesmente, que a pessoa possa, a pretexto do Natal, ser realmente feliz, em comunhão com seus entes queridos, cultivando e compartilhando da bondade que já existe em si, em seu coração, independentemente da data. O Natal, por si só, não torna o mundo melhor, não faz as pessoas melhores. Ele nunca faz cessar as guerras, as maldades, a inveja, a cobiça, o ódio. Sentimentos de respeito e amor ao próximo não nascem da manifestação de vontade dos deuses; eles brotam e se desenvolvem a partir da tomada de consciência, formada pela construção dos valores éticos, altruístas, como consequência da evolução humana na direção de suas aspirações civilizatórias. Ainda estamos muito aquém desse ideal.
No período de Natal as pessoas falam de paz, de amor, de fraternidade, mas continuam matando, roubando, mentindo, ferindo, enganando, conspirando. Sem pretender ser cético nem pessimista aos extremos, percebo no Natal uma data onde a hipocrisia se revela com mais ênfase. Em meu escritório, recebo dezenas de correspondências com temas alusivos ao Natal e ao Ano Novo, principalmente as emitidas por políticos, a maior parte deles os mais inescrupulosos corruptos. Faço aqui, de público, este registro: há muito tempo deixei de ler essas asneiras custeadas pelo Erário. Aliás, confesso, geralmente limito-me a amassá-las ou rasgá-las e arremessá-las ao cesto de lixo. Na verdade, eu detesto correspondência de político. Elas, na maioria das vezes, são a expressão em versão impressa de suas hipocrisias e a subestimação da inteligência do destinatário. São visivelmente falsas. O conteúdo é repleto de frases mecânicas e padronizadas, de péssimo mau-gosto e, o que é pior, custeadas com o dinheiro do contribuinte e servem apenas como propaganda eleitoreira.
É nessa época que surgem os chamados “caridosos de ocasião”. Nem estou fazendo referência a políticos e governos que distribuem presentes às criancinhas pobres, comprados com o dinheiro alheio. Refiro-me, mais especificamente, àqueles empresários, comerciantes, que passam o ano inteiro roubando seus clientes, explorando seus funcionários, sonegando tributos e, no final do ano, vão às periferias distribuir brinquedos de 1 real ou sopa com pão murcho aos desabrigados. A grande parte dessas “boas ações” é acompanhada da imprensa, que foi avisada antecipadamente, ou de uma pessoa que está sempre com uma câmera à mão. Não sei se sou um cético pirrônico, mas, é fato que já tem um bom tempo que deixei de acreditar na bondade humana. Vejo por trás de cada gesto de bondade humana uma camuflagem para um interesse egoístico ou um tremendo sentimento de culpa, um encargo de consciência.
Como já disse em outras oportunidades, eu costumo lançar algumas dúvidas sobre as generosidades “desprendidas” de Madre Tereza de Calcutá e de Irmã Dulce. Tenho cá minhas incertezas de que se não fosse a sua inabalável fé em Deus e, com maior ênfase, a crença de que o Inferno realmente existe, se elas teriam sido tão boazinhas. A bondade que lhes caracteriza é a pureza dos seus corações ou o medo do Castigo Eterno? Seria o medo da ira de Deus que lhes condenaria ao fogo do Inferno?
Quando o circo inventou o palhaço foi para entreter o público entre uma cena e outra, enquanto os atores trocavam as suas fantasias e alteravam o cenário para a próxima encenação. Nesse intervalo, aproveitavam para comercializar algumas guloseimas e produtos, enquanto o palhaço realizava estripulias para não enfadar os presentes. O tempo, todavia, incumbiu-se de transformar o palhaço na principal atração do circo, personificando nele o que há de mais encantador, de mágico, no verdadeiro espírito do circo. O capitalismo e a cultura do consumo também criaram o Natal, visando o lucro, o comércio.
Talvez – espero, sinceramente – o ser humano possa ser realmente tocado por um sentimento sublime e transforme o Natal em uma data de celebração da vida, do amor ao próximo, e haja mais envolvimento em um espírito de solidariedade e fraternidade. Não por ser Natal, mas por ter nos tornado em seres que, verdadeiramente, fomos tomados por uma Ética-Maior e alcançado um estágio de evolução espiritual que nos permite sentir que compete a nós a missão de fazermos da Terra um lugar único e feliz.
Nesse sentido, e com essa esperança, sinto-me motivado a ressuscitar a crença no potencial humano e poder desejar a todos um Feliz Natal. Sim, eu realmente desejo a todos um Feliz Natal!
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerrarocha@gmail.com)
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