A educação pela morte
Diário da Manhã
Publicado em 7 de março de 2016 às 23:05 | Atualizado há 9 anosOs abalos da morte produzem três reações inevitáveis: primeiro o impacto, depois as lágrimas, por fim o sofrimento. É sempre impactante ver um corpo inerte que acabou de perder o sopro vital. O descontrole do organismo em choque gera efeitos imprevisíveis, como a erupção das lágrimas. Por último se instala o sofrimento. Dura tanto quanto dura o sentimento da perda, que por vezes nos acompanha pelo resto da vida. Perder uma mãe é como ver esvair-se o próprio ser, o que de certa forma nos educa também para morrer.
Drauzio Varella, já referenciado em artigo anterior, autor do livro “Por um Fio” (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), contribuiu para firmarmos a compreensão de que o maior bem da vida é a vida mesma. De todas as experiências narradas em seu livro Por um fio, foi essa descoberta – diz ele – que transformou sua vida pessoal. Conta que viu muitos de seus pacientes descobrirem o significado da existência ao vê-la esvair-se, a ponto de se sentirem mais felizes que antes. Afirma que o desejo de viver é instinto tão arraigado que os seres vivos só se entregam à morte depois de exaurido o último resquício de suas forças. Mas levanta para si mesmo uma questão: seria capaz de aprender a pensar e a agir como eles enquanto teria saúde?
Diante dessa interrogação convenci-me da conveniência de procurar dialogar com os médicos. No que toca à minha busca pessoal, não estaria por trás de tudo isso o espírito protetor de minha mãe – para que eu viva e tenha saúde até cumprir minha missão neste mundo? Como poderia ser também o espírito da mãe do próprio médico – para que ele possa exercer sua missão na medicina? Afinal, o livro Por um fio não tem o propósito de transformar a medicina na prática do bem, mais do que salvar vidas? E por que um médico tem que completar sua educação pela morte, se só acredita na vida terrena?
Se no plano físico, a vida continua como herança genética, por que não continuaria no plano espiritual, como energia cósmica? Se a existência de um organismo depende de uma perfeita organização de formas, como antes ou depois dessas formas a vida não existe? Quando as formas se desintegram o corpo morre, mas o que dá forma às formas que criam o corpo vivo? Essas interrogações levam a acreditar no espírito como energia pura, que circula nas formas como eletricidade que, canalizada, se transforma em luz.
A morte não é o fim
Segundo Varella, ninguém discorda de que a morte é um alívio do sofrimento humano quando se trata de pessoas que enfrentam graves padecimentos físicos, dores incontroláveis e que restam decrépitas sem o domínio das faculdades mentais. De supor-se que nem por isso defenderia ele o aborto ou a eutanásia por considerar a vida apenas um fenômeno biológico.
Varella conta que em certa visita médica, deparou com a esposa e duas filhas do paciente a cuidar dele. Então lhes disse, em tom de brincadeira, que se sentiria realizado se um dia recebesse de sua mulher e de suas filhas o amor que as dele lhe dedicavam. Surpreendeu-se com a seguinte revelação: “Não é difícil, é só o senhor ser para elas o marido e o pai que ele tem sido para nós – respondeu a mais velha.” Após o socorro final, médico e familiares postaram-se ao lado do enfermo, até seu último suspiro, todos silentes e resignados. Conclui o médico que “nunca havia imaginado que a morte pudesse trazer tamanha paz”.
Mas uma coisa é a morte natural, outra coisa é a morte provocada, por exemplo, por infecção contraída em um hospital, onde o doente asilou-se em busca de redenção. Não há golpe pior para a família. Aliviar o sofrimento humano é também propiciar conforto espiritual sob a crença de quem parte, não sob o olhar de quem fica. Essa é uma das lições deixadas por Mãezinha. Não hesitou, certa vez em chamar um padre para dar a bênção sacramental a um primo falecido em 1974, conforme lemos em uma de suas cartas. “Ele me olhou com os olhos piedosos e elevou a mão como se estivesse pedindo um socorro do céu.” – Foi assim que morreu em paz.
Anoitecer e amanhecer
Doutor Drauzio Varella fala da morte apenas no sentido físico e não espiritual. Da morte como fim definitivo. Mas alguma coisa transcende: isso é que une a vida à morte como se une o dia à noite no processo natural. Viver e morrer faz parte de um ciclo intercorrente de anoitecer e amanhecer. Há questões metafísicas que subsistem após a morte e que constituem a angústia de quem vive. Se a morte é o fim último do ser humano, não teria sentido nascer para morrer. Se a vida em si não tem sentido, não haveria razão para evitar a morte.
Muitos desconhecem a lei civil que obriga a assistência aos doentes e idosos, como dever moral de solidariedade humana. E pouquíssimos conhecem a lei divina do retorno e do carma, como dever espiritual de contínuo aperfeiçoamento do próprio ser. O que é a imagem virtual, se não projeção da imagem real? A vida humana é, pois, reflexo de uma essência que preexiste à existência.
Sócrates já afirmava que vivemos em um mundo de formas e aparência em relação ao verdadeiro mundo das idéias ou da essência. Por desafiar o politeismo grego, foi julgado e condenado à morte pelo tribunal de Atenas. Por sua vez, Cristo foi julgado e condenado a morrer na cruz pelo tribunal de Roma, por proclamar o reino de Deus e a vida eterna. Ambos aceitaram serenamente a morte: o primeiro por acreditar na imortalidade do ser, o segundo para salvar o ser da humanidade.
(Texto publicado originalmente no livro de Emílio Vieira, DOSSIÊ DE UMA PROFESSORA, Goiânia/Kelps, 2009).
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])
]]>