A execução de Marielle e os indignados de Mineiros-GO
Diário da Manhã
Publicado em 20 de março de 2018 às 22:26 | Atualizado há 7 anosA execução epigrafada é a que ocorreu com as mortes da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do seu motorista Anderson Pedro Gomes (por “tabela” da irresponsabilidade pública), no dia 14 de março corrente no Rio de Janeiro. Este fato cruel mostra que todo dia se pode matar e executar pobre, negro e homossexual no Brasil. Somos essa trágica realidade, secularizada, disfarçada pelas mentiras da história oficial e da tal democracia racial, vetustos esconderijos do ódio e do racismo, ora muito em voga, tendo Marielle como uma das “encomendas”, a ser morta pelo Estado do Crime ou criminoso, certamente por ser militante de direitos humanos. Defensora de direitos de negros e de favelados onde as execuções estão banalizadas, são assunto insignificante até da mídia venal, contudo, cada dia mais motivando e aprofundando o nosso sentimento de revolta e indignação pública, algumas vezes aflorada no Brasil, como ocorreu em 2013, ainda sem o resultado esperado, que não pode ser mera astúcia ou engodo maquiavélico. Chega de opinião ou juízo de elite escravocrata.
No ano de 2013 manifestamos a nossa indignação, publicada em jornal, mostrando que o significado desse substantivo feminino, domicílio da raiva, do desprezo e da frustração, está na junção de suas mais torpes e abjetas categorias: cólera, fúria, frustração, ódio, ira, descontentamento, aversão, agastamento, rancor, enfurecimento, enraivecimento, irritação, revolta e zanga. Eis o que aconteceu, repetindo-se em todas as diásporas. À época, escrevíamos, sem aspas. Assim como pelo Brasil e o mundo afora, em Mineiros, extremo Sudoeste Goiano, também existem indignados, insurgindo-se contra os desmandos públicos no país, na região e demais “desumanidades” do Universo, mostrando que por aqui o povo não está dormindo em berço esplêndido. O velho desejo latente aflorou, tornou-se impactante e agitado, avisando às autoridades e ao país, que agora a manifestação pública é pra valer, não tem retorno ou intuito de causar somente um susto, já que todos os meios polidos de buscar soluções estão esgotados, viraram paroxismo, fazendo-me lembrar, à guisa de ilustrar, a oportuna sabedoria deixada por Bertolt Brecht, em “No Caminho com Maiakovski”, advertindo aos que abusam da paciência do povo:
“Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim: não dizemos nada. Na segunda, já não se escondem. Pisam as flores, matam o nosso cão e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa rouba-nos a luz e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos fazer nada”.
Certamente, os indignados de Mineiros chegaram ao fundo do poço; notando-se que não são apenas as mil pessoas que ousaram participar de uma manifestação política no dia 20 de junho do ano de 2013, liderada pelo acadêmico de direito Felipe Silva Magro, Laís Quadro, Márcia, Igor Lucaroni e alguns poucos que nem apareceram com receio de serem retaliados pelas sombras do coronelismo ainda de plantão na cidade, sem omitir o moralismo da classe média, sempre presente, sem revelar com limpidez a quem serve. Os outros irados, ainda mais injustiçados, mais vezes silenciados e até esquecidos, estão, sobretudo nos bairros distantes e mais pobres da urbe mineirense: Taninho, Perobeira, Cedro, a irônica Vila da Paz, inadequados casebres à beira de córregos, exibindo o indiscutível racismo ecológico e os dos assentamentos públicos, maltratados, sem poder esquecer – dentre outros, os deslembrados nos descaminhos da saúde pública, na peregrinação intolerável por um teto pra morar e os parentes dos que morrem por acidente, de trânsito, por exemplo, enquanto aguardam, horas a fio, a perícia técnica que vem de fora, ora um tanto aliviada, sendo assim que todos estão indignados quando suicidam ou quando morrem por doenças que não tiveram tratamento, no momento adequado, assunto só um tanto aperfeiçoado. E os das filas sinuosas? Por que Mineiros é uma cidade com tantos suicídios, ainda dependendo de aprofundados estudos, mais vezes de indignação silenciada? Ou somente preconceito?
De todo modo, a manifestação política de Mineiros é importante, histórica, filosófica, vislumbrando o futuro, ainda se repetindo. Mineiros ajudou a acordar o gigante, dizendo que vem pra rua combater a corrupção e outras mazelas públicas do Brasil, locais e do mundo. Foi assim que chegou às ruas, postulando seus direitos, alguns ainda meio confusos ou difusos. As emissoras, Verde Vale e Eldorado, além de noticiar o fato, fizeram entrevistas através das repórteres Erô e Tatiane e Plantão Policial. As redes sociais divulgaram. O povo viu e aplaudiu. O jornal local, Folha do Planalto, Ano II, edição 21, junho de 2013, direção da jornalista Adriane Steinmetz, registrou o fato, com destaque de primeira página: “Em Mineiros a população também saiu de casa e cerca de mil pessoas participaram da manifestação”, descrevendo alguns resultados que já começavam a ser vistos no Brasil, prosseguindo o jornal:
“O representante da manifestação no município, o acadêmico de direito Felipe Silva Magro, comentou sobre a quantidade de pessoas no movimento. De acordo com a polícia militar, estiveram presentes cerca de mil manifestantes, entretanto em conversa com várias pessoas que observaram o manifesto, acredito terem comparecido cerca de 1.400 pessoas no decorrer da caminhada. Vale ressaltar que tivemos aproximadamente 2.000 pessoas confirmadas no facebook, e cerca de 600 que talvez compareceriam”. No depoimento feito à jornalista, Felipe informa que “as reivindicações da manifestação foram pelas melhorias nas diversas esferas públicas. Ou seja, ao município de Mineiros, ao estado de Goiás e ao Governo Nacional”, acrescentando que a principal reivindicação é uma mudança de postura da classe política como um todo, o povo anseia por uma maior seriedade na gestão do patrimônio público, queremos que os governantes lutem pelos anseios da sociedade, pois atualmente não nos sentimos realmente representados, chega de governantes trabalhando por interesses pessoais ou de terceiros. Um basta na impunidade, o brasileiro está cansado de tanta corrupção! “Queremos que os nossos impostos retornem como benefícios, o brasileiro precisa urgentemente de saúde, educação, segurança, estamos cansados de viver em um país que aparenta ser o que não é”, finalizando:
“Nossos governantes tem que entender que é direito do povo fiscalizar e cobrar sempre que for necessário. Tenho certeza que a partir de agora, os políticos vão pensar duas vezes antes de tomar uma decisão, pois sabem que o povo está de olho! No âmbito municipal foi muito importante demonstrar que os mineirenses podem se unir independentemente de partido político, e sem festa! Presenciamos pessoas de várias opções partidárias unidas por uma só causa, um futuro melhor para a nossa cidade!”
O movimento era considerado apartidário, havendo pessoas que tentaram desvirtuá-lo ou dele se aproveitar, querendo “crescer” politicamente, fato repudiado, difícil de ser compreendido na sua essência pelos mineirenses e a própria sociedade brasileira, onde ainda são muitos os conservadores, de mente colonizada, alienados, néscios, achando que são donos do pedaço. Cidade extremamente partidária, tradicional, Mineiros precisa deixar para trás décadas e décadas de rixas políticas. Queremos uma cidade de todos para todos. Chegou a hora de amadurecer. O cosmopolitismo, inclusive político, está por aqui. As velhas rixas político-partidárias prejudicam sobremodo a cidade. Será que ninguém percebe? A “nossa revolta não se resume ao partido X ou Y”, já foi dito. “Queremos seriedade e eficiência, seja lá quem esteja investido no cargo político”, adverte Felipe. Mostrando toda ironia da indignação, transcrevo as frases que se seguem:
“Enquanto a bola rola, falta saúde e falta escola. Saúde pública faz mal à saúde. Nós vibramos noutra frequência. Japão, eu troco o nosso futebol pela sua educação. O povo unido, não precisa de partido”. A última frase precisa ser explicada pois, só em parte, retrata a realidade. O fato dos partidos políticos brasileiros, com ênfase os de aluguel, estarem defasados, anacrônicos e desacreditados, por falta de ideologia, fundamento programático e outros requisitos essenciais, não significa que não são imprescindíveis à democracia, ao Estado Democrático de Direito, como aliás, exige o Direito Constitucional em vigor. Assim, ou se reciclam ou desaparecem, na emergência de outros. Seus dirigentes, se continuarem como seus “donos”, confundindo liderança com chefia, também tem morte anunciada.
Manifestação noturna, pacífica, sem incidente, bafafá e ninguém pousar nu, típica de classe média, representada pela grande maioria da mocidade e só uns gatos pingados dos mais velhos. Trata-se de geração sequiosa, com certo status econômico-social, exigindo urgente melhoria no serviço público, de Mineiros e do país, quase sempre distribuído aos aliados de quem está investido no poder político, aí se vendo um dos piores vícios da práxis política brasileira, que o movimento dos indignados cá da urbe também quer erradicar. Foi assim que se articulou e se reuniu na Praça do Bauhaus, Avenida José Joaquim de Rezende, apelidada “Jardim”, onde não admitia a presença de político, hipocrisia e cinismo, ali começando o seu protesto na entoação do Hino Nacional, na reza do Pai Nosso, na suspensão da Bandeira Brasileira e no deboche e desabafo de cartazes e fachas carregados por moças e mulheres do rosto pintado; dali descendo pela Sexta Avenida, antiga Rua Goiânia, até a Praça José de Assis, na Câmara Municipal, onde o destaque foi uma forte vaia contra o descaso dos políticos; seguindo para a Prefeitura, na Praça Coronel Joaquim Carrijo, onde o realce foi outra vaia, verdadeiramente bararé, com o mesmo objetivo, a ponto do prefeito Agenor Rezende, dois dias depois, ter ido a uma emissora de rádio local fazer explicações; retornando pela Avenida citada, até a esquina com Avenida Antônio Carlos Paniago, na Rotatória da “India América”, monumental relíquia artístico-histórica do artista plástico Sinval de Carvalho, de onde se dispersou, ainda revoltada, prometendo mais protestos, os que vêm se repetindo dois anos e meio depois.
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado – MNU, da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – martinianojsilva@yahoo.com.br)
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