Opinião

A fome tem cara de herege, pois ela é o melhor tempero

Diário da Manhã

Publicado em 14 de maio de 2017 às 02:17 | Atualizado há 8 anos

Aqui na capital, nos fins de semana, os restaurantes ditos grã-finos ficam atopetados de fregueses, querendo fugir um pouco da comida caseira, enquanto, paradoxalmente, os próprios restaurantes tentam atrair a freguesia com o chamariz convidativo: “Tome suas refeições aqui, onde você experimenta a deliciosa comida caseira”.

Na hora do almoço ou da janta, os meninos de hoje inventam vontades, refugando o bife, a salada e o feijão, fazendo cara feia para empurrar garganta abaixo mirradas colheradas, como se a comida fosse até purgante.  Deve de ser a diversificação de guloseimas que existem em tudo quanto é biboca, só pra subtrair o apetite da meninada, principalmente na cidade evoluída, pois no interior fica mais fácil de cevar os meninos.

No meu tempo, era a rapadura que nos enganava o estômago, e assim mesmo, sendo ela o tempero do café, não ficava tão à vontade da voraz criançada.  Hoje estão come¬çando a aparecer as porqueiras da cidade grande para atrapalhar e eliminar aos poucos a fama de voraz que a meninada tinha.  Sim, voraz: gosto de ver, por exemplo, ali no sertão, os filhos dos roceiros enfrentando um prato de pirão de osso ou uma tigela de leite gordo; após comer, lambem os beiços e nada sentem.  Fosse um eu, que já perdi o costume de ter bucho de ema, logo-logo estaria de andadeira, que o estômago já fraquejou.

O apetite do nosso sertanejo é simplesmente assombroso, pois nem sempre há o que comer.  No tempo da manga, a meninada vive de cara amarela, breada de manga; no tempo de pequi, basta se ter o sal e a farinha, pois o pirão, além de gostoso, é forte e cheio de sustança, que a gordura o pequi já tem.  Na hora do de comer, quando têm, os meninos comem ao redor de uma gamela, traçando linhas de domínio (“Daqui prali é meu; dali pracolá, é seu”), dividindo o bolo em porções mais ou menos iguais, e não raro a invasão do domínio alheio gera poucas e boas colheradas na cabeça do in¬vasor. Enquanto na cidade grande os pais adulam os filhos pra comer, o sertanejo, de quando em vez, precisa é tomar à força o prato do seu:

– Cê vai é empanzinar de tanto comer, seu porqueira! Ainda faltam os outros!

Deve ser o clima, deve ser a natureza, deve ser a fome crônica, que traz tanta disposição ao sertanejo, que come de um tudo, come coisa de nos repunar o estômago.  Ninguém, por certo, desperta o apetite vendo o sertanejo devorar com ganância um prato de feijão com rapadura, como se estivesse a comer um suculento filé à francesa.

Passando ali pelo sertão do Duro, muitos anos atrás, um médico itinerante aboletou-se num casebre muito miserável, onde o roceiro, sabendo-lhe a condição de “dotô”, desdobrou ainda mais sua já natural gentileza para tentar atendê-lo, e desculpou-se por não ter o que dar de comer a tão ilustre hóspede, que ali estava cambaleante de fome:

– Se vossemecê num s’importá, dotô, nóis aqui só temo canja mode o sinhô cumê.

Bambo de fome, disposto a comer até pedra, se o estômago aceitasse, o médico clareou os olhos, nem esperando reforço do convite:

– Canja?  Ora, lá em casa eu sempre gostei de canja; minha patroa, de vez em quando, faz canja pra mim e não deixo nem uma isca no prato.  Para ser franco, prefiro canja a qualquer outra iguaria.

O roceiro e a mulher se entreolharam num misto de satisfação e perplexidade, e a mulher foi à cozinha preparar a canja para o doutor, que, diante da iniciativa, já amolava os queixos satisfeito.

Quando a roceira entrou com o prato fumegante e o pôs na bancada de aroeira que servia de mesa, o médico quis refugar, mas como a fome tem cara de herege, co¬meu tudo, mas não pediu repetição.

Enquanto a canja da cidade grande é uma deliciosa sopa de arroz e galinha, bem temperada e às vezes com uma pitada de açafrão, no sertão é arroz branco, sem gordura e sem sal, cozido só na água, que o sertanejo inteira com qualquer coisa: um pedaço de carne seca assada um pouco de feijão e às vezes com rapadura raspada, o que aliás, era uma delícia (não sei se agora dá pra descer, pois com tantos anos de au¬sência, certamente meu estômago já se adaptou às frescuras da cidade grande).

Mas como disse: “A fome tem cara de herege”, e na hora do aperto qualquer coisa desce.

Lá nos gerais do Jatobazinho, que era refrigério do gado de meu pai no tempo da seca, um conhecido, campeando uma rês esguaritada, passou o dia sem comer, e, para inteirar as medidas, perdeu-se.  E variado foi dar com os costados numa cabana, onde pediu pelo amor do que era de mais sagrado que lhe dessem qualquer coisa pra comer, que estava em jejum: fosse farinha seca, tosse rapadura, fosse o que fosse, que do jeito que estava comia até pirão de areia, se o estômago aceitasse.

A velha que morava no rancho, veio de lá com um prato de canja (a canja nossa) fria e uma porção de fava roxa, daquelas grandonas que amargam até dizer chega. Ele foi à pimenteira e amassou algumas malaguetas para dar um sabor melhor.

Trespassado de fome, ele comeu tudinho e ainda lambeu o prato, dizendo que fora a melhor iguaria que comera até então.

Quando voltou pra casa, encomendou um litro de fava e mandou a mulher fazer, bem temperadinha, para, ajuntado a um arroz bem feito, também lamber o prato.  Não agüentou a segunda colherada.

E como se diz: “A fome tem cara de herege, e é ela o melhor tempero”.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI -, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

]]>

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias