A força de um olhar
Diário da Manhã
Publicado em 21 de outubro de 2018 às 00:35 | Atualizado há 6 anosDescia, de manhã, por volta das 9 horas, de casa para o escritório, a pé, como faço algumas vezes, num esforço para diminuir um pouco as cobranças da consciência com referência aos exercícios físicos.
Passava por aquele rua logo abaixo da rua 3, e ao lado da Caixa Econômica Federal, no centro, com seu imponente edifício sede.
Ia distraído, segurando minha pasta, e sem telefone celular na mão. Detesto ver quem anda com o celular na mão, pelas ruas, ou, pior ainda, conversando tresloucadamente enquanto atravessa rua ou entra em loja para fazer compras, tudo num convite aberto e ousado ao roubo.
Tinha dado os primeiros passos na rua, quando passei por uma jovem mulher por volta dos 30 anos, com um filho pequeno apertado junto ao colo e uma filha de uns cinco anos.
Embora estivesse com razoável pressa para chegar ao escritório, na Anhanguera, não pude deixar de ouvir que a mulher, estendendo timidamente a mão, disse: moço, o senhor pode me pagar um lanche?
A poucos metros à frente estava um destes quiosques de rua que servem lanches ( salgados, refrigerantes, café, leite etc ), Meu gesto foi automático e sem emoção. Enfiei a mão no bolso da calça, buscando alguma cédula de dinheiro para me livrar do encargo.
Observando que eu ia lhe dar algum dinheiro a mulher obtemperou: moço, eu não quero o dinheiro… quero um lanche. Falava fraca mas firmemente.
Parei. Do alto de minha insensibilidade gerada e reforçada pela visão diária de pessoas nas ruas pedindo esmola, senti que algo diferente estava acontecendo. Aquela mulher recusara o dinheiro e insistia na comida. Caí fundo na minha sensibilidade e vi que a situação era diferenciada. Olhei agora mais demoradamente aquela mulher. Vi que era nova, mas os cabelos desgrenhados e certamente a dureza de ter que cuidar daquelas duas crianças sem ter como lhe roubara todo o viço da juventude substituindo-o pelo macerado da face.
Não comi nada ontem, murmurou.
A criança no colo dormia o sono da fome;
A outra, de pezinhos descalços., olhava com esperança a possibilidade de comer alguma coisa.
Encarei a mulher e a cena.
Os olhos dela pareciam ter uma película que lhes escondia o brilho vital, como uma névoa, mas, estranhamente, uma luz que parecia lhes vir do fundo, como que uma energia, sei lá, uma força, uma fonte, isto me atravessava impiedosamente o coração.
Pensei na dor daquela mãe.
A dor da fome é algo indescritível, indecifrável, impenetrável por nossa curiosidade. A dor e especialmente a da fome tem que ser sentida para ser compreendida. E como em meus idos da infância passei pela experiência de alimento apenas uma vez no dia ( quando não acontecia de passar um dia sem comida alguma ) pude aquilatar o que estava sentindo aquela mulher.
Então pedi que nos aproximássemos do quiosque onde o dono, muito reverentemente (as pessoas na rua tem uma reverência especial por homem de terno…) me perguntou: o que o senhor deseja?
Apontei-lhe a mulher e esta olhando para vitrine de salgados apontou logo dois dos maiores, que lhe foram prontamente entregues se a latinha de refrigerante. A criança, na sua inocência e espontaneidade, não pediu a sua mãe que lhe desse do salgados que escolhera, mas apontou ao vendedor aqueles que ela queria comer e o que queria beber. Assentaram-se numa das mesinhas em volta do quiosque e puseram-se a devorar os alimentos…
Assisti só os primeiros momentos e depois de pagar as despesas fui saindo à francesa, silenciosamente.
A mulher balbuciou, com os olhos molhados: Deus lhe pague…
E me olhou com aquele olhar que atravessa o infinito e depois volta ao nosso mundinho de miséria deixando-nos sem palavras e quase sem movimento.
Fui saindo meio de lado, até poder dar as costas àquela família e virar na esquina na direção de meu local de trabalho, envergonhado.
Primeiro, por querer ter dado logo qualquer dinheirinho para a mulher e me livrar da cena. Segundo, por reconhecer o quanto fiz e faço muito pouco, quase nada, em prol de tantos necessitados, famintos e sedentos da vida…
Refugiei-me nas imensas alamedas de minha profissão e agradeci a Deus por me haver concedido algumas oportunidades de sentir o prazer de servir o ideal de justiça e ver também nos olhos dos agraciados aquela felicidade que nenhum discurso ou poema ou oração pode descrever.
E só me conformei um pouco quando me lembrei que Jesus, no sermão da montanha, disse: Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos…
Só assim para enfrentarmos uma sociedade tão desigual, tão inclemente e tão insensível.
E não tem jeito: acordo, à noite, sentindo no peito a forças daquele olhar profundo de uma mulher e seus dois filhos famintos…
(Getulio Targino Lima: Advogado,professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro da ANE e da AGL; Email: gtargino@hotmail.com)
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