“A saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu” (Chico Buarque)
Diário da Manhã
Publicado em 4 de janeiro de 2016 às 22:05 | Atualizado há 9 anosÉ Dia de Natal. A metrópole acorda menos desvairada. Há pouco, as famílias brindavam a chegada do Menino Jesus. Em volta de uma mesa aconteceu a comunhão dos bons sentimentos. A sua vida, meu querido, está mansa e segue menos acelerada hoje, com ressaca de bom vinho. Seus netos abrem os presentes, trazendo em você a melancolia de outros natais jogados lá no passado, quase esquecidos em sua simplicidade de menino pobre, quando ganhar uma bola era um acontecimento.
Então, chega a notícia da morte do seu filho, de apenas 34 anos. É um nocaute, uma catástrofe que lhe é servida crua. Assimilá-la é, naturalmente, impossível. A sua cabeça e a sua vida se tornam um rodamoinho. Giram alucinadamente e uma máquina do tempo traz o nascimento do menino, a primeira vez em que o viu, um corpinho tão frágil, tão lindo, tão filho seu.
Nascer para viver pouco, desarrumando a ordem o deixa louco, mas é preciso providenciar, definir funeral, arrumar o corpo, velá-lo como bom cristão. Ver seu filho no caixão, entre flores, seu menino lindo, inteligente, amado, querido. Não, não e não! Quanto suplício! É uma aberração enterrar um filho. Os maus sentimentos invadem cada célula do seu corpo e rompem com cada uma delas. Uma falta de chão, um vazio, uma cabeça oca, numa desordem que altera sua percepção do universo, enquanto uma dor profunda rasga seu peito, divide seu corpo ao meio, dilacera sua alma. O sangue corre com dor e agonia, pois “se enganou de veia e se perdeu”. Os órgãos são esmagados e você se contorce. Sensações pavorosas lhe torturam e num susto vem a convicção do nunca mais.
Nada pode lhe consolar, mas ter cumprido seu papel, sendo um pai em letras maiúsculas, amigo compreensivo e de mãos dadas nas precisões, acalma. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” (Renato Russo), e este amanhã não existirá. Você amou.
Os dias passam, o pensamento chega (na verdade ele não lhe sai da mente), e lhe dá um baque no peito, sendo urgente chorar. Chore até se sentir saciado, não segure nada, e então, farto de chorar, chore por mais meia hora. Entornar lágrimas limpa o corpo e a alma, depura o espírito, especialmente para quem pensa no infinito e acredita no eterno.
Algum remédio o conduz ao sono, mas é preciso acordar. A luz do sol traz você dos sonhos para sua realidade rasgada. Então, lhe vem a imagem dele, do menino amado, na primeira e última cena de todos os momentos do seu dia. É preciso manter a lucidez e aceitar as palavras de conforto, acumulando coragem, força e fé. Tudo já está feito.
Eu sinto muito, mas não me atrevo a imaginar a dor que sente. Assim como encontrar uma peça de roupa ou outro objeto do filho querido, dar de cara com uma lembrança dilacera o peito mais uma vez. A sua fé, que eu sei, é grande, o ajudará a transpor os maus tempos. Viva sem limites cada estágio desse luto. Não se esconda de nenhuma etapa. Grite, esperneie, questione, maldiga e traga cada fase da vida do seu menino para sua frente. Fale tudo que precisar falar.
A dor é insuportável porque seu filho não é a sua melhor parte. Ele é você inteiro. Mas um dia, que você acredita que não chegará, uma saudade suave ocupará seu coração. Nisso eu creio.
(Mara Narciso, médica e articulista)
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