A tragédia do homem contemporâneo sob a forma da negação do outro
Diário da Manhã
Publicado em 1 de fevereiro de 2016 às 21:29 | Atualizado há 9 anosJá na criação, o primeiro sentimento ou necessidade que pesou sobre o homem foi a ausência do outro que fosse semelhante a si. Pois a absoluta solidão existencial não corresponde à natureza íntima do homem, e recai sobre ele como uma tragédia. Pois sem referência ao tu o eu não tem significância nenhuma, como diria Martin Buber, para quem a relação intersubjetiva eu-tu é a ponte da vivenciação humana.
Por esta razão, já na origem, Deus quis arrancar o homem da sua solidão “Não é bom que o homem esteja só; vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2, 18). Pois um homem absolutamente só já não se reconhece como tal. Somente um outro semelhante pode revelar ao homem a sua natureza humana. De modo que o tu é fundamental para a humanização do eu.
Porém, há momentos na história nos quais o homem, levado por uma falsa ideia de autonomia e liberdade, entorpece a sua natureza e consciência para torna-las capazes de não sentir a ausência do outro. Esta é a grande tragédia do homem contemporâneo, que nega o outro com uma avidez e ferocidade absurdas por considerá-lo uma ameaça. O que constitui uma contradição gritante, uma vez que estamos na era da mais absoluta afirmação do indivíduo. Mas não podemos nos esquecer de que ninguém é indivíduo para si mesmo: sem o outro o eu não passa de uma unidade solitária.
Quando o homem chega a esse ponto no qual a ausência do outro não é mais sentida, a humanidade está arruinada, desumanizada. Porque este é o sinal da incapacidade e do desinteresse em responder à pergunta bíblica: “Onde está o seu irmão Abel?” (Gn 4, 8). Pergunta esta que pode assumir outras faces de acordo com as circunstâncias: “Onde está a tua esposa ou teu esposo que tu abandonaste? Onde está o teu filho que tu abandonaste antes mesmo de nascer? Onde estão teu pai, tua mãe, teus irmãos, que tu abandonaste na hora da enfermidade, na velhice, na dificuldade? Onde está aquela família assolada pela pobreza porque tu a roubaste? Onde está aquela mãe que chora o seu filho morto, porque tu o mataste ou o envenenaste com o câncer das drogas? Onde está o teu colega de trabalho sofrido, porque tu o perseguiste? Onde está o povo que vos confiei para cuidar como governantes, mas vós o ignorastes: por que vos deixastes levar pela corrupção? Onde está o povo que vos confiei para pastorear e vós o explorastes?”
Que diante dessas perguntas, não as respondamos com o cinismo de Caim: “Não sei! Sou porventura eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4, 8-9). Pois quando a ausência do outro não é mais sentida, o homem, como foi pensado por Deus não existe mais. Quantos substituem a presença do outro por um cão, sob o pretexto de que o cão o ama, e o compreende, não lhe causa problema. Enquanto o outro é incompreensível, egoísta, não respeita a sua liberdade.
Essa postura revela a nossa incapacidade de descer do falso trono do bem-estar, do individualismo, do egoísmo e de falsa liberdade, para assumir o que realmente somos, simplesmente humanos. Com virtudes e limitações, só seremos capazes de crescer nos dispondo a ser com o nosso semelhante. Por essa e por outras situações é que escutamos notícias como a que circulou recentemente nos noticiários de Roma: “Senhora é encontrada morta em seu apartamento dois anos depois de sua morte”, o que se verificou somente porque um oficial de justiça arrombou a porta do seu apartamento para requerer judicialmente o pagamento de um débito.
Não nos cabe julgar de quem é a culpa. Mas esse fato serve para nos ajudar a entender que precisamos mudar nosso modo de conviver. Procurando um maior empenho na busca da sociabilidade, na superação de nossos limites, irresponsabilidades, manias, vícios e apegos que tantas vezes nos tornam insensíveis demais ou pesados demais para os outros, assim como os defeitos e limites dos outros os tornam pesados demais para nós, dificultando o amor, a solidariedade.
Não pode amar verdadeiramente o ser humano de forma completa e desinteressada, quem não está realmente próximo de Deus. Assim resume Jesus o princípio fundamental da vida cristã: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Ele respondeu: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22, 36-40).
Não desistamos do caminho da humanização ao qual somos chamados, que passa por uma proximidade sincera com Deus e com os outros. Não pode estar perto de Deus quem é incapaz de amar seus semelhantes. Essa a tragédia do homem contemporâneo que sucumbe em si mesmo pela negação do outro.
(Pe. Hélio Cordeiro, especial para o Diário da Manhã. De Roma, via e-mail, [email protected])
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