A vida secreta dos meus gatos
Diário da Manhã
Publicado em 26 de março de 2018 às 23:29 | Atualizado há 7 anosSempre que chego das madrugadas de partos e felicidades, eles estão acordados. Saltando e correndo pelo apartamento. Se a longa comunicação entre a varanda da sala de estar e a janela da sala de televisão (existe isso ainda?) está aberta pela porta de vidro, invariavelmente estarão lá.
Não são como cães que alegremente vem me saudar. O gato mia. Ele se enrosca todo, curvado como o habitante mais famoso de Notre Dame, e prende minhas mãos não deixando que eu leia ou faça algo além de carinho. Ele – diferente da gata – é permissível. Podemos tocá-lo em seu pelo preto, com alguns tons de branco, por toda a extensão de seu corpo. Inclusive a sagrada barriga. A felina jamais permite tais intimidades.
Ela age como a Rainha de Sabá. Desfila impunemente a minha frente, com a cauda levantada em arco. Seu pelo é bem mais vasto do que o do macho, porém seco e pleno de plumas. É um casal, mas não agem como um casal. Raramente os vejo juntos. Até que um dia resolvi colocar câmeras de infravermelho, ou câmeras termais (fiquei entre uma Flir e uma Fluke, mas não vou dizer qual para não fazer propaganda) distribuídas pela casa toda.
Totalmente politicamente incorreto. Decidi vigiar os bichanos impiedosamente, tal e qual o cônjuge traído vasculha um celular, sem pudor. E quais não foram as surpresas encontradas! A primeira delas: ele implica com a gata a noite inteira.
Ficam se mirando a uma distância de um salto. Os movimentos corporais são quase imperceptíveis, mas estão lá. Uma abaixada de orelha, um meneio de cabeça, ou um balanço discreto na cauda e… voilá! O rapaz pula em cima dela dando-lhe um afetuoso tapa nos bigodes. Ela se arrepia toda e solta aquele característico “fsssst”, mas parece que gosta, pois sai correndo e deixa ser capturada para rolarem sobre o querido sofá de couro de minha esposa.
Depois disso, eles se separam, mas não muito. Ele vai para os tapetes de borracha estrategicamente colocados na sala e os arranha com vigor, sem deixar de olhar para ela um segundo sequer. Ela salta sobre a nossa longa mesa de jantar e empurra cada castiçal, cada vaso de flor, sem derrubar. Como se soubesse que está sendo filmada. E depois desce e… pasmem, vai mexer na minha mochila de ataque. Cheira, se esfrega, cheira de novo, arranha e explora cada reentrância vermelha da minha Deuter de 30 litros. Só falta beber a água da garrafinha laranja que fica de fora.
Um pouco mais de trocas de olhares cúmplices e concupiscentes e saem caminhando lentos para a área de serviço. Bebem água com sofreguidão. Ela na vasilha e ele na torneira. Comem um pouco da ração e algo os faz paralisarem e se miram com a profundeza misteriosa que só os felinos carregam.
Disparam em correria de obstáculos, saindo do chão para lavadora de roupas, o tanque e a janela num movimento praticamente único. De lá aterrissam deslizando, passam pela cozinha e na curva para o corredor derrapam. Derrapagem controlada, com garras expostas e rabo totalmente esticado como um leme. Como são enormes, fazem barulho, mas ninguém acorda. O ponto cego do corredor para o quarto vazio da filha – ela mora fora – não mostra se eles saem do chão para a cômoda e depois para a cama ou o contrário. Pois eles repetem a perseguição – a gata na frente – nos dois sentidos.
Aí, do nada, desaceleram. Chegam à sala de estar e deitam-se lado a lado como se nada houvesse acontecido. Ele suavemente coloca a pata esquerda sobre o rosto dela. Ela tira como quem diz: gosto, mas não quero. Ele insiste e ela deixa. Acredito que os vejo fechar os olhos – na câmera eles brilham diabolicamente – por uns breves instantes e rolam no longo sofá de tecido.
Umas lambidinhas mútuas marotas, e ele vai deitar-se na cama de casal do casal. E ela se refestelar nas pernas do gigante que dorme no quarto ao lado. Ressonam um pouco, eu diria até que sorriem. E como num casamento humano que dá certo, tenho certeza de que depois das estripulias noturnas, sonham com os anjos.
(JB Alencastro, médico)
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