Opinião

Abençoadas águas

Diário da Manhã

Publicado em 5 de dezembro de 2017 às 00:46 | Atualizado há 7 anos

Aqui no cerrado, dezembro é mês de muita chuva – abençoadas águas que os céus vertem no verão, depois de longa e sofrida estiagem. Os antigos diziam que nos meses com a letra “r” haveria chu­va, e que a seca se resumiria, portanto, a maio, junho, julho e agosto. Só que, de ano para ano, diminui o “tempo das águas”, que em 2017 começou para valer somente em novembro.

E veio com força. As plantas estão lava­das e verdejantes; as frutas amadurecem, a grama cresce depressa, as flores brotam por toda a parte. Cada árvore, cada cantei­ro tem sua historinha que a memória re­gistrou: os manacás me foram dados em pequenas mudas por uma tia muito que­rida; o jasmim do cabo chegou-me pelas mãos de minha irmã; a bacabeira – linda palmeira do Maranhão – foi presente de uma colega de infância; as orquídeas lem­bram muitos amigos, em diferentes mo­mentos festivos; os jasmins Cayena (ou manga) eu os comprei em uma floricultu­ra, nas cores branca, vermelha e mesclada de amarelo e rosa.

Dos espécimes do cerrado, neste ano colhemos pequi e jatobá; o tamarineiro não foi muito generoso, nem os cajueiros deram carga total. Culpa das chuvas tar­dias? Talvez o seja, e também a florada di­minuta do jacarandá mimoso.

Em compensação, as alamandas – ditas dedais de ouro – estão carregadas, assim como a respectiva versão em vermelho­-rubro. As buganvílias carregaram: a cor­-de-rosa está um espetáculo, entremeada com tímidos tons de ocre.

Colhemos jacas, mangas, jambotas, la­ranjas-lima, algumas poucas pitangas, que vieram pequeninas. A jabuticabei­ra produziu, mas os passarinhos não de­ram trégua, fizeram a festa e pouco sobrou para nós; já as romãzeiras estão carrega­das e as ateiras prometem boa safra.

Lembro-me de quando construímos nossa casa – no cerrado havia somente capim agreste e pés de mamona. Come­çamos com as palmeiras imperiais: cada neto plantou um pé. A ideia era que se sen­tissem donos do pedaço e a ele se afeiçoas­sem por toda a vida.

Afinal, nossas raízes são rurais – ou me­lhor, as minhas raízes. Elas estão fincadas em gerações de fazendeiros e criadores de gado, gente disposta e empreendedora que extraiu da terra seu sustento e de sua família, desbravando terras, trabalhando e produzindo em lugares remotos, aonde mal chegavam estradas carroçáveis. E le­vando consigo padrões de educação do­méstica, de religião cristã, de civilidade e de apreço pela educação que, pela graça de Deus, nunca nos faltou.

Aqui morando há quase vinte anos, nes­se espaço de tempo vieram mais plantas, mais cuidados, mais investimento finan­ceiro e afetivo na terra. Fomos recompen­sados a cem por um. Temos nossas flores e frutos, além da nossa própria orquestra de pássaros que gorjeiam do amanhecer ao entardecer. Vez por outra, assistimos a bandos deles pousando nos galhos e se deliciando com os mamões, disputando as uvas, saqueando canteiros da horta e do jardim. Avezinhas de Deus que nos ale­gram as manhãs e os crepúsculos, além dos beija-flores que adentram a casa e não fazem cerimônia.

Conversando como uma amiga em São Paulo – urbanoide de quatro costados – contei-lhe da nossa vida de descobertas e prazeres que vêm da terra, e o quanto tudo nos parece gratificante. Um pouco para provocá-la, falei-lhe também da outra face do mundo rural: os mosquitos, os perni­longos, os sapos que entram em casa sem pedir licença, as abelhas que nos assusta­ram invadindo a capelinha. Até as cobras que tivemos de enfrentar: duas cascavéis, uma jararacuçu, uma coral. Além de ratos e morcegos que vêm do mato e é preciso combater sem trégua.

Minha amiga me olhava entre assus­tada e incrédula, mas não fez comentá­rio de imediato. Bebemos vinho, conver­samos outros assuntos, falamos de livros, porquanto ela forma também no time das leitoras vorazes. Ao despedir-me, reiterei o convite para que nos visitassem, teríamos o maior prazer em recebê-los, a ela e ao marido, pessoas a quem queremos bem.

Entre constrangida e séria, respondeu:

– Desculpe, mas depois do que você nos contou não me animo a ir vê-los em Goiás. Te­nho pavor de cobra, de mosquitos, de sapos, de ratos, de morcegos… Me desculpe – prefiro encontrá-los aqui em São Paulo mesmo.

E mais não disse, nem lhe foi perguntado.

(Lena Castello Branco, escritora. E-mail: [email protected])

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