As cidades que sofremos
Diário da Manhã
Publicado em 19 de março de 2018 às 23:09 | Atualizado há 7 anosO psicanalista José Ângelo Gaiarsa foi um que sofreu e amou a família como poucos. Conforme confissão dele mesmo. Conclui-se disto que o tema família deveria estar sempre cercado de aplauso unânime, um vez que em tal ambiente não há discórdia ou conflito, somente paz e amorosidade.
É mais do que sabido de que, fora dos discursos bonitos, e das ocasiões festivas, em que todos cantam, com verdadeira ou falsa alegria o tradicional “parabéns pra você”, nem sempre é tudo amor, fraternidade, compaixão mútua e lirismo, no seio da que chamam de célula mater da sociedade.Isto não só entre os patuléicos e remediados, mas também (e talvez muito mais) entre os ricos e milionários.
Daí que Gaiarsa escreveu: “A família de que se sofre não é a família de que se fala”. Em minhas vivências e leituras estou convicto de que a frase do psicanalista Gaiarsa também aplica-se às cidades.
As cidades que louvamos, sua honra defendemos com unhas e dentes, e em público e em nossas postagens, exaltamos e falamos bem, não é em nada parecida com as cidades em que vivemos – e em que sofremos agruras de sobreviventes, sempre em clima de “salve-se quem puder”.
Devemos sofrer as cidades com a resignação com que sofremos a amizade de certos amigos. Sem reclamar muito, até porque não adianta mesmo. Cada cidade tem sua alma e sua palma, seu território de paz, e suas áreas conflagradas, as zonas despudoradas e as zonas de altas sacanagens.
Toda cidade tem suas ruas de trabalho e divertimento. Toda cidade tem seus becos do mijo, e seus lugares esplêndidos, que enchem vista, e nos fazem entrar no crediário em prazo a perder de vista a vida. Toda cidade tem seus lugares inconfessáveis, e seus requintes de luxo, onde só entram os “ bafejados pela sorte”.
Nas horas noturnas surgem vultos fantasmagóricos, que nunca aparecem à luz do dia bancário. E se aparecem, para pagar e receber contas, ou mesmo fazer compras, que isto até mesmo os vampiros o fazem, não mostram seus rostos reais – só são vistos usando as máscaras gerais da falsa normalidade.
Mas que ninguém, dentre os outros mascarados, se espante com isto – com um jeito, digamos, mais “ socialmente aceito”, todos usamos nossas máscaras, para sair no campo minado das cidades conflagradas.:
A situação das cidades vertiginosas tornou-se tão parecida com o caos e os conflitos em que se embrenha a “sagrada família” que hoje tornou-se comum perguntar: Qual é a cidade que lhe causa mais sofrimento? Ou, perguntando de outros modos:
Qual é a cidade em que você sofre, ou se alegra? Qual é o seu espaço neurótico? Onde o erário mais o tosquia? Onde você é vítima do mais votado de todos os tempos? Onde mais o torturam os salvadores da pátria?
Atrás de todo grande mentecapto sempre vem um que se julga menos inapto. Quanto mais a família é destrambelhada mais a música de seus embates festivos é apaixonada.
Muita ilusão combinada conduz a grandes destemperos vivenciais. Quanto mais a música é alta mais baixa é a sua qualidade. Quanto menos neurônios ativos mais pose de inteligência vasta.
Quando mais queremos ser vivaldinos mais nos tomam por espertinhos. Quanto mais impomos “obras canônicas” no público externo mais batem palmas nossos amigos diletos. Quanto mais “ chegam lá” os que sufragamos, mais nos enganam com sua arenga populista de quem bebeu fogo paulista e vomita uísque dezoito anos.
P.S. Na Quarta parte da nova história os parvos espertalhões tosquiam e escalpelam o povo. E se mais parvoíce houvesse, lá chegariam.
(Brasigóis Felício, jornalista e escritor. Membro da Academia Goiana de Letras e de outras instituições culturais)
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