As narrativas regionais e jocosas do inesquecível Maximiano da Mata Teixeira
Diário da Manhã
Publicado em 23 de janeiro de 2018 às 21:52 | Atualizado há 7 anosMaximiano da Mata Teixeira, professor, jurista, escritor, orquidófilo, nasceu em Natividade, antigo norte goiano e hoje Estado do Tocantins em 1910 e faleceu em Goiânia, em 1984, aos 74 anos de idade. Estudou na Bahia, onde foi colega de Jorge Amado. Depois, cursou Direito e se tornou Juiz de Direito, eficiente magistrado, Desembargador e Presidente do Tribunal de justiça de Goiás, com grande responsabilidade.
Como escritor, porém, extravasava sua competência literária e jocosa, em contos, causas e lendas de Goiás, que se frutificaram em muitos trabalhos na imprensa e nos dois livros Estórias de Goias e Outras Estórias de Goiás. Foi casado com a inesquecível Amália Hermano.
Do primeiro, retiramos o conto “Presente para Naná” em que o magistrado e escritor destaca sua verve cômica, numa doce e engraçada narrativa no interior do Estado.
Nesse pequeno conto, uma mostra da capacidade argumentativa e narrativa do magistrado, nome que jamais pode ser esquecido na história goiana:
“O episódio teve por palco a casa do chefe político da situação local, Totó Vicente, forte comerciante e fazendeiro de Pirapitinga.
Via ele agora realizado um de seus sonhos de pai, casando sua filha única com um bacharel.
– Benvinda – dizia ele vezes sem conta à sua mulher – Naná é um bom partido e merece um bom casamento. Não foi para outra coisa que educamos ela. Naná, minha velha, tem de se casar com um dê-erre, nem que seja doutor farmacêutico. O anelão é que voga, a cor da pedra não importa.
E seu desejo acabava de ser satisfeito: Mariana se casara com um advogado. Advogado de fora. Não qualquer legue-lhé de jaqueta de Goiás.
– Dizem – cochichavam antes as mexeriqueiras, e os mexeriqueiros também – que o dr. Expedito fez mal à moça, que ele passou Naná no queixo.
– Qual mal, qual nada – comentavam outros – o que ele fez foi bem a ela. Garanto que ela gostou.
Silenciando a maledicência, o casamento acabava de se realizar com toda pompa, a noiva marchando para o altar com véu, grinalda, vestido de cauda e seu avolumado ventre.
– Espia só a sirigaita – murmuravam as despeitadas – tá parecendo jararaca quando engole sapo.
– Só se aquilo for barriga d’água ou ficar encroado – disse bem baixinho Tônica Sapeca quando o padre, em suas recomendações, aconselhava aos noivos que, se tivessem filho, que o educassem de acordo com os ensinamentos da Igreja.
O estranho presente é que veio estragar a recepção.
No meio de tanta coisa bonita e valiosa aparecera aquilo, justamente quando os convidados atacavam os salgadinhos, as bebidas, devorando doces entre os quais não podia faltar o indefectível “olho-de-sogra”, uma coisa simbólica a significar que o tal da dita devia estar presente em tudo.
Para o brilhantismo da festa só estava faltando o foguetório.
– Besteira da grossa – reclamava a cada instante Juca Fogueteiro. Não me deixaram soltar os foguetes. Dona Benvinda disse que fogos só em casamento de velho, para animar o bicho. Onde já se viu isso?
O noivo é que estava um tanto ou quanto ressabiado. E com razão.
O dr. Expedito de Oliveira aportara ali fazia pouco mais de ano e tirara a sorte grande se casando com a moça mais rica do lugar.
Quando se diplomara ele em Ciências Jurídicas e Sociais, seu tio e pai de criação, Manoel de Oliveira, Tineco, ao lhe oferecer o anel de grau, lhe deu uma série de conselhos.
– Meu filho, para triunfar siga minhas instruções. Pena que a mana e o cunhado tenham sido chamados tão cedo para o céu. Como estariam contentes hoje. Fiz, porém, por você o que pude.
– Tineco, ninguém faria mais que o senhor, que tem sido pai e mãe para mim. Eu lhe devo tudo o que sou hoje.
– Mas o diploma só não basta, Dito. Viver é uma arte difícil. Ouça, pois: nossa terra está cheia de bacharéis, doutor por tudo quanto é canto. Procure outras paragens. Vá para Goiás, um novo mundo que surge. Pegue seu diploma e seus livros e siga para lá. Anote: para se vencer não basta arrojo. É preciso um ponto de apoio para com seu canudo remover todas as dificuldades. E o melhor ponto de apoio é o casamento. Bem entendido – um bom casamento. A melhor profissão do mundo é a de genro. Você deve ser genro-bacharel. Genro é o substantivo e bacharel é o adjetivo. Deviam até criar a Ordem da Genrateira, como existe a da Jarreteira e tantas outras. Casamento, filho meu, é negócio. Não se fala em sociedade, atente bem, so-ci-e-da-de conjugal?
– E o amor, Tineco?
– Amor, paixão v palavras sem sentido. A paixão, meu filho, tem a duração da lua-de-mel. Cupido é um zangão que morre no voo nupcial. Depois, tudo deve ser substituído pela amizade. Preste atenção: nem o amor nem a amizade mora na mesma casa com a necessidade. Não diziam os antigos que quando a precisão bate à porta o amor foge pela janela? Não existe paz no casamento sem base econômica. E sem paz a vida conjugal é um inferno. O que manda em tudo é o ouro, o vil metal. Sabemos que pode haver dinheiro sem felicidade. Eu pergunto: poderá haver felicidade sem dinheiro?
Muitos foram os conselhos dados pelo velho solteirão.
– Dito, meu filho – concluiu ele – se o casamento é uma sociedade, procure moça rica para desposar. Você é inteligente, bem apessoado, jovem, de família tradicional. Escolha em Goiás a filha de um fazendeiro rico ou, pelo menos, a de um juiz, embora o magistrado seja quase sempre pobre. Mas ele tem posição e posição abre todas as portas, conquista empregos. A moça deve entrar com o capital, em dinheiro ou prestígio, e você entra como sócio de indústria, com seu título.
Armado de canudo e tantas recomendações, o dr. Expedito viu chegada o dia de sua partida para Goiás.
– Meu filho, disse-lhe Tineco na hora da despedida – não estivesse preso a esta cadeira, eu acompanharia você. Não se esqueça de minhas recomendações. Também não se esqueça de mim. Sei que as goianas dão boas esposas, mas elas são extremamente absorventes, possessivas. Elas se apoderam egoisticamente dos maridos e eu não quero que a sua me separe de você. Não desejo que suceda o que aconteceu com um colega seu pobre que, se casando em Goiás com uma viúva ricaça, renunciou ao nome de sua própria família e adotou o sobrenome da esposa.
– Camarada sem personalidade, Tineco.
– E por falar em viúva, Dito, se conseguir viúva rica, sem filhos, em bom estado de conservação, não vacile. Você estará feito. Muita gente não gosta daquilo que se costuma chamar sobejo de defunto, escrúpulo tolo, porque uma boa mobília de segunda mão tem às vezes mais valor que uma nova, desde que a usada seja mais cômoda, mais anatômica, com bom molejo. Resto de defunto coisa nenhuma. Fruto sazonado com cheiro de mistério e gosto do além, isto sim.
Era de Tineco que o dr. Expedito estava se lembrando naqueles momentos festivos, vendo concretizado seu plano, organizada a promissora sociedade, ligando-se a Naná, uma criaturinha desgraciosa mas meiga, pobre de carnes mas rica em terras e gado, o dote representado por duas fazendas, quase três mil alqueires goianos e mil e quinhentas reses, não se falando no cheque para a viagem de núpcias. E a herança quando os sogros batessem a caçoleta?
Sócio de indústria, ele entrara com o diploma, uma boa carcaça e aquela criaturinha indiscreta, seu herdeiro, que estava dando tanto que falar.
Participara seu noivado e próximo casamento ao tio, escondendo que se tratava de caso urgente. No final de sua resposta de parabéns o velho concluiu com um sugestivo – “avante, bandeirante audaz!”
Demorando em Goiânia, chegou a sonhar em ser genro do Governador, de logo desistindo do intento porque a primogênita do governante de então só contava doze anos e, ao atingir a idade de se casar, o pai já não seria mais dirigente. Negócio mesmo de verdade era ser genro de governador.
O caminho acertado fora o seguido, o de marchar para o interior de Goiás, para Pirapitinga, “florescente cidade goiana que pretendo tomar de assalto”, comunicara ao tio.
E ali estava ele casado e bem casado.
Na comarca, sua estreia como advogado fora espetacular. Aquele júri, sua consagração.
Apesar de os jurados terem sido antecipadamente conversados e convencidos, tratava-se de crime bárbaro cometido por conhecido pistoleiro, réu confesso.
– Que tribuno! Que orador! Nem Rui! – era o comentário geral.
Em sua peça começou por invocar “os manes de Roma e de Atenas, suas olímpicas, ciclópicas e hiperbólicas figuras”.
— “Montado no corcel da imaginação, guiado pelas musas, penetro no glorioso passado da humanidade para, em prol de meu patrocinado, evocar, em doces lucubrações, Licurgo, Homero e Solon, Cícero e Virgílio, para que eles iluminem vosso veredictum.”
Recitou frases latinas, não deixando de lado, com muitas silabadas, trechos das Catilinárias que decorara nos bancos ginasiais. O auditório caiu em transe verborrágico. Não se esqueceu de Camões e Castro Alves, declamando estrofes dos Lusíadas e do Navio Negreiro.
O recinto do júri estava repleto, reunindo a população local para aquela espécie de festa da curiosidade gerada pela natureza do crime e pela pessoa do novo orador.
O dr. Expedito terminou por pedir a absolvição do acusado pela justificativa da legítima defesa, embora o crime tivesse sido praticado à traição, de tocaia.
– Suplico e imploro que os senhores jurados reconheçam em favor do meu constituinte a ocorrência da legítima defesa putativa. Insisto: pu-ta-ti-va.
Nessa altura, amenizando a seriedade do ambiente, uma vozinha se fez ouvir:
– Paiê! o sinhô num mim bate prumode eu num falá nome feio? Cuma é qui o dotô tá falano nomão?
A defesa foi uma coisa nunca vista nem ouvida. A assistência só faltou aplaudir o causídico.
O próprio presidente do júri seguidamente meneava a cabeça em sinal de aprovação.
Os jurados ficaram boquiabertos diante de tanta eloquência. Somente um deles, Pedro Santana, alfaiate, escutou tudo aquilo com um sorriso permanente e irônico, sorriso matreiro, sorriso de Gioconda cabocla, sorriso de jumento quando vê espiga de milho. Porque, com sua tenda vizinha do cômodo habitado pelo advogado, quase sabia de cor a peça oratória que o dr. Expedito vinha improvisando desde muito tempo. De sua oficina – a Tesoura Moderna – acompanhara dias seguidos o longo treinamento do defensor, ouvindo suas palavras, vendo sua gesticulação, sua postura quando ele se colocava diante do espelho do guarda-roupa, o dr. Expedito ensaiando até o tirar e repor dos óculos, o retirar do lenço da algibeira e o enxugar de hipotético suor na testa, a dar pulinhos de eloquência como milho pipocando, a fazer paradas para beber água em copo seco. Uma encenação e tanto. Só que no momento seu espelho eram os jurados e a assistência, o copo estava cheio e o suor era de verdade”.
A decisão foi unânime na absolvição de ‘‘Dedo Ligeiro”. O acusado, que confessara friamente o crime, ficou tão convencido de sua inocência que, ao deixar o plenário com o alvará de soltura, já falava em vingança.
– Destá – disse ele, passando a palma da mão direita no rosto e voltando-a para o forum – este promotozinho vai me pagá. Ele riscô sua sepurtura. Me chamano de réu, hein?
A justificativa invocada, a lembrar nome feio, sugeriu o título que os pirapitinguenses outorgaram desde então ao dr. Expedito: – a patativa de Pirapitinga.
Nesse tempo estava ele caído pela filha do juiz, normalista que tirara o curso na capital.
– Mulher, o tal advogado está arrastando a asa à nossa filha. Mariazinha está ficando madura e precisa se casar. Não quero moça velha em casa, moça no barricão, beata rezadeira, dando gritinhos de noite, sonhando com cobra. O dr. Expedito é um bom partido – dizia constantemente à mulher o magistrado, juiz íntegro, mas homem despachado.
– O que que você quer que eu faça, José?
– Sinhana, ensine a menina a conquistar marido. A pequena é muito esquiva, desengonçada, não deixa os modos do colégio das freiras. Ensine ela a se vestir, a andar, a sacudir as ancas. Homem gosta de movimentos de quadris, de bamboleio, de remelexos. Até os peixes de categoria, como o tucunaré, a matrinchã e o dourado só avançam nas iscas movimentadas. Mariazinha caminha dura como uma tábua, dando guinada como se estivesse com nojo do traseiro. Mande vir para ela aquele livro, como é mesmo o nome? Parece que é “Agarre seu Macho”.
O advogado chegara até a gozar de certa intimidade na casa do magistrado, sendo surpreendido duas vezes, quando de simples bicotas, passara ao período de beijos prolongados, em medição de beiços com Mariazinha toda suspiros, parecendo nortista chupando tutano de osso de vaca curraleira. Incentivando o namoro e procurando evitar novas situações embaraçosas, o dr. Zezinho e dona Sinhana, antes de penetrarem na sala de visitas onde os dois pombinhos se encontravam, emitia ele um pigarro diplomático e ela uma tossinha pouco convincente, mas alertadora.
Para sua própria desdita, Mariazinha continuara a andar sem rebolar a chandanca, parecendo que tinha engolido a espada da Justiça, enojada do setor sul.
Além do mais o juiz era pobre e não prometia fazer carreira.
De repente, inexplicavelmente, ou muito explicavelmente, o dr. Expedito começou a se interessar por Naná, menina rica, portanto com mais atrativos. Seu coração – coração mesmo? – passou a viver em conflito. Qual das duas? Naná ou Mariazinha?
O dinheiro ou o prestígio?
Consultado, Tineco em longa carta lhe apontou seguro rumo, a meta do bandeirante.
– “Filho – escreveu ele – quer saber de uma coisa? – em seu lugar eu escolheria Naná. Mariazinha oferece melhor posição, sendo filha de juiz. Com o prestígio dele você faria sem dúvida carreira facilmente. Mas, para que trabalho se Naná poderá trazer para você de imediato a fortuna que a posição só lhe dará com o tempo?”
Estava, enfim, casado com Naná.
Pouco antes da cerimônia escrevera ao tio, enfaticamente concluindo sua carta:
– “Jamais o esquecerei. Manterei o nome de nossa honrada família. Estou duplamente pronto para atravessar meu Rubicão. Alea jacta est – minha sorte está no Oeste. Missão cumprida. Obrigado, titio”.
Depois de se partir o bolo é que a coisa aconteceu.
– Cum licência! Cum licência! Incumenda qui mandaro pra noiva – foi dizendo um molecote, com dificuldade entrando no salão, conduzindo na cabeça um grande embrulho, sem dúvida relativamente leve, via-se logo, pela facilidade com que o carregava.
– De quem será? Que será?
Curiosidade geral.
– Leva para o quarto dos presentes – comandou dona Benvinda, enquanto o portador desaparecia apressadamente. Naná! mais uma lembrança, minha filha. Deixa o bolo e venha abrir – gritou ela para Mariana.
Naná, seguida do noivo, dos padrinhos, de um mundo de curiosos, se dirigiu para o quarto onde os presentes estavam expostos, pressurosa passando a desatar a fita, ato contínuo desfazendo o invólucro do último chegado.
Seguiram-se momentos de perplexidade. O presente era um berço de vime. Berço com enxoval completo. Até cueiros! Não era só: lá estava também a mamadeira, mamadeira com leite! Junto um bilhete: “Querida Naná, – para expediente adiantado, próximo berro do cabrito. De sua sempre admiradora.”
– Aquela descarada… – só o que pôde dizer Naná, ao desabar desmaiada nos braços do noivo.
Defronte, onde morava, através de uma persiana, Mariazinha acompanhou exultante a chegada do presente e o reboliço que ele provocou.
– Estou vingada! Estou vingada! Ele era meu!
Correndo para o quarto, onde se trancou, ela se atirou na cama e começou a chorar, a dar pinotes, sofrendo longo chilique de amarga frustração.
Está aí no que dá não se vestir ou despir a moça de acordo com a moda, não se locomover ela com radar sedutor, estimulante, não saracotear pelas ruas o corpo em ondulações trepidantes, em gingados tremelicantes. Está principalmente aí no que dá a gente ser pobre, que pobreza é feiura, fealdade de amargar, de doer.
Muitos anos são decorridos. Totó Vicente e dona Benvinda de há muito cortaram o talão. Manoel de Oliveira Sobrinho já está no Grupo Escolar, serviu até de pajem num casamento, por sinal que uma vez só, pelos comentários ao fácil compreensíveis que despertou. Porque, até hoje, em Pirapitinga, quando uma noiva se aproxima do altar disfarçando, com muitas dobras do vestido, o ventre intumescido, o comentário é um só, das que ainda não se alimentaram, que ainda não comeram pelo menos uma pererequinha:
– A noiva ganhou o presente de Naná.
Maravilhosa narrativa, jocosa e alegre, dos tempos goianos, da pena magistral de Maximiano da Mata Teixeira, o Maci, de Amália, grande goiano de imorredoura saudade!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG, pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com)
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