Asas às Cobras
Diário da Manhã
Publicado em 30 de janeiro de 2018 às 21:15 | Atualizado há 7 anosHá algum tempo, escrevi sobre a importância de as guardas municipais serem inseridas nas estruturas das forças de segurança por considerá-las essenciais no auxílio ao enfrentamento da criminalidade. A minha avaliação partiu da experiência que as grandes metrópoles vivenciaram. Uma força urbana, sem a cultura do enfrentamento, voltada para a preservação do patrimônio público, próxima da população civil, inegavelmente conquistou, naquela época, a confiança, principalmente porque atuava mais próxima das pessoas, conhecendo os moradores pelos nomes, tal qual ocorria com os chamados “guardas de quarteirão”.
A instalação do regime militar foi nociva para essa experiência de segurança pública humanizada. As guardas municipais, ou guardas civis ou guardas metropolitanas, foram extintas para dar lugar à militarização das policiais estaduais que passaram a ser as responsáveis pelo patrulhamento ostensivo. Com a Constituição de 1988, devolve-se aos municípios a possibilidade de instituir-se a guarda municipal, conforme artigo 144, § 8º, com a finalidade de proteger seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Hoje, reconheço que incorri em um grave equívoco quando defendi que as guardas municipais passassem a efetuar ronda ostensiva e que agisse de forma preventiva e repressiva, pois, acreditei, tratar-se-ia de mais um reforço ao crescente índice de criminalidade e à deficiência quanto ao efetivo humano e do serviço de inteligência das forças policiais tradicionais dos estados.
Primeiro, não é pelo aprimoramento e expansão das forças repressivas que se combaterá a violência. Pelo contrário. A violência é aumentada na mesma proporção que o implemento de políticas de segurança pública fundada apenas em maior repressão. Por outro lado, e em consequência disso, a mentalidade de uma considerável parcela da sociedade brasileira é sedimentada na cultura da violência. Os instintos mais primitivos ainda são os principais motivadores das escolhas de grande parte dos candidatos que ambicionam ingressar em alguma instituição do sistema de segurança pública. Não por acaso, o distintivo para dar “carteirada” e o porte de arma de fogo são uma espécie de fetiche, quase uma libido, o objeto da quase unanimidade de cada novo agente que ingressa nessas instituições. Ainda nas academias de formação percebe-se um abissal distanciamento nas predileções dos alunos entre as aulas de noções básicas de Direitos Humanos e a de armamento e tiro e de defesa pessoal. Falar de Direitos Humanos nas academias de polícias no Brasil é um fardo maçante que se fazem apenas para cumprir currículo.
A luta reivindicatória das guardas municipais pelo direito de portar arma de fogo, ainda que fora de serviço, é o reflexo inegável dessa mentalidade voltada para a agressividade, para o “sabes com quem estás falando?”, o “teje preso!”. O discurso de que a arma de fogo é “para proteger o guarda” é só um pretexto para escamotear os verdadeiros desideratos. A prova está nas infindáveis ocorrências que denunciam os gravíssimos casos de violência praticada por guardas municipais contra civis indefesos, principalmente os que envolvem a população em situação de vulnerabilidade social.
Com o advento da lei 13.022/2014, conhecida como Estatuto dos Guardas Municipais (EGM), os guardas civis passaram a ter o direito de portar arma de fogo. Todavia, por contra própria e ao arrepio da lei, os guardas atuam como se fossem policiais e, claro, assimilando a mesma cultura do enfrentamento e, consequentemente, da violência, tão arraigada nas polícias tradicionais, instala-se um novo protagonismo de abusos e covardias contra a população. Desta forma, os guardas civis, que deveriam despontar como um novo paradigma de segurança pública voltados para a humanização nas relações entre os agentes de segurança e a sociedade, passam a atuar como imitadores do que há de mais cronicamente odioso nas forças policiais tradicionais dos estados. O desrespeito, o sadismo, a arrogância, a escolha do cidadão como um inimigo a ser combatido, enfaticamente os moradores de regiões periféricas, tornam-se no “modus operandi”, absolutamente desvirtuado dos princípios mínimos de atuação das guardas municipais, conforme previsto no artigo 3º, como a proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania, das liberdades públicas, preservação da vida, redução do sofrimento, diminuição das perdas, compromisso com a evolução social da comunidade, conforme enuncia o artigo 3º, do EGM.
Na cidade de Goiânia, por exemplo, alguns comportamentos que ilustram bem o desvirtuamento dos objetivos da Constituição e do EGM oscilam entre o risivelmente ridículo e o criminoso. São inúmeros os casos de tortura contra a população, em especial a população de rua. O sadismo ou a psicopatia de alguns guardas leva a utilizar a arma de descarga elétrica, conhecida por “Tazer”, contra jovens indefesos que não esboçam nenhuma reação durante uma abordagem, cuja violência, desprezível e covarde, serve apenas para satisfazer ao prazer do algoz.
Uma das cenas mais ridículas que a população sente asco ao presenciar é a que os guardas municipais para as motos em um semáforo e se postam em posição de combate, cada um voltado para direções opostas, como se estivessem em uma zona de conflito bélico e na iminência de um ataque surpresa ou uma emboscada do exército inimigo. Alguns guardas não têm a menor vergonha de usar vestimentas camufladas, de uso militar em combate, contrariando, frontalmente, o que dispõe o artigo 21 do EGM, que diz que as guardas municipais utilizarão uniforme padronizado, preferencialmente, na cor azul-marinho. Daí se percebe que esse tipo de agente, se não passa de um completo idiota, substituiu o cérebro por fezes. Trata-se, inegavelmente, de uma espécie de idiotice por imitação. Estão importando para as guardas municipais o que há de mais abominável nas polícias, principalmente aquilo que caracteriza a falência da polícia militar como força de segurança pública.
Como a bizarrice parece ser infinita, outro absurdo partiu de um coordenador da Guarda Municipal de Goiânia (GO) que, durante um protesto de servidores municipais por aumento de salário, de posse de uma máquina fotográfica, comentou que havia se “infiltrado” junto aos manifestantes para fazer um “serviço de G2”. Não resisti e o indaguei: Que diabo é isso? Segundo ele, “G2” é uma espécie de imitação barata do desvio de função ou do crime de usurpação de função que há tempos se instalou nas polícias militares. É o que internamente – e pretensiosamente – se chama de “serviço de inteligência”.
Realmente, é preciso ser rediscutido o papel das guardas municipais no Brasil, deixando muito bem clara a sua delimitação funcional, de atuação, e a mais imediata e inadiável providência passa pelo estrito cumprimento do que preceitua o artigo 144, § 8º, da Constituição Federal, antes que seja tarde demais.
A prudência recomenda que não se deve dar asas às cobras, pois corremos o risco que elas voem e mordam a gente.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])
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