Opinião

Campinas, essa desconhecida Bôca Larga

Júlio Nasser

Publicado em 19 de abril de 2017 às 03:14 | Atualizado há 8 anos

Acaso seria Bôca Larga, na historiografia de Campinas, um tipo patibular para o qual parece até débil e galante o qualificativo de lombrosiano? Foi, não há dúvida, uma figura idealizada e modelada a partir de um personagem histórico do que ele foi e não foi. Não se trata de comentar demasiadamente um anedotário, mas de articulá-lo em nova percepção. O tema tem sido uma constante na literatura de Campinas, desde as suas origens e suponho que seguirá sendo. É compreensível porque ele foi a única personagem mitológica que esse bairro-mãe produziu e seu ciclo está longe de esgotar. Não lhe exalto os ânimos. Faço-lhe, na verdade, a defesa contra as paixões que cobriram a sua recordação. Farei a sua sinalização – é um projeto literário em curso – à luz da verdade histórica como expressão de uma época que preparou Campinas para ser o que ela foi e que ainda tem na sua natureza social agreste o mesmo selo personal portentoso de sua mais verdadeira perscpectiva existencial. Resumindo, a quadra de sua história, quero dizer, de Boca Larga, não poderia ser desenvolvida em Goiânia e o simplificado de Bôca – breve, forte, harmonioso – passa à posteridade como que destinado a perpetuar-se na mente popular de toda a cidade, de modo especial, em Campinas. Serão páginas que aspirarão a reivindicação não de sua reabilitação virtual, mas da história de uma personalidade senão simpática, mas grandiosa, velada no claro-escuro de uma lenda aterradora.
A máquina da propaganda espalhava-se e as mulheres da Zona davam o tom: só há um Bôca. Ele vem aí e está bebendo! As portas se fechavam às pressas e até as ruas pareciam encolher-se um pouco. A zona do meretrício permanecia petrificada ante à ideia de provocá-lo. Com certa justificativa, podia-se compará-la, naqueles momentos, a uma lebre hipnotizada pela cobra. Quando de sua morte, a 10 de junho de 1962, a neurose se agravou e Campinas ficou entre sorrisos furtivos e lenços para enxugar lágrimas. Assassino, brigão, bêbado, não esgotam as definições infamantes que mereceu naqueles tempos. Os finca-pés a seu respeito, como bandido temido e cruel, fizeram a lenda negra surgida em torno de seu nome. Suas proezas corriam como o vento e lapidadas pelo burburinho de rua, o elevaram à condição de mito. Não alcançou Bôca Larga, os seus primeiros e tão negativos prestígios graças à fama de sua valentia, pois a época carecia de dotes capazes de impedirem a propagação de tão desventurosos sucessos, devendo mais a si próprio tais méritos, à novidade da fatura ou método de apresentação e à soberba implacável com que andava por Campinas de mãos enfiadas bolsos das calças, camizona de mangas compridas, limpo e sem o cheiro das graxas de um andarilho qualquer, tirando-lhe as medidas rua por rua, casa por casa. Era meio acobreado, basta cabeleira cacheada, e quando embriagado, entrava em catarse de paixões violentas e emoções profundas, ameaçando quebrar tudo se as cafetinas não lhe comprassem as correntinhas que vendia para sustentar-se. Sua cara pouco ovalada se perdia num bosque de pêlos e uma barba igualmente crespa e avermelhada, que subia até os pômulos bastante salientes, denunciava uma vontade firme e tenaz. O apelido Bôca Larga, impregnou-se de tal forma no imaginário do povo de Campinas, sem rádio, sem televisão, sem jornal, na base do burburinho do cordel, impresso ao pé do ouvido, e ninguém tentou a loucura de uzurpar-lhe o lugar de ser o maior tira-teima e arruaceiro. Por inveja de uns, por velhos rancores de outros, de lapidação em lapidação, criaram-lhe uma atmosfera muito densa e uma lenda deprimente. Inventaram defeitos que não tinha e ações que não praticou e o caluniaram com tamanha pertinácia que pegou fama do que não foi. E Campinas fez praça disso, obrigando-o a defender-se à sua moda. A mediania de sua personalidade deixava transparecer que se tratava de um indivíduo com um processo de dor monstruoso, que fizera dele um inquieto fugitivus errans, que vagueava por Campinas a tirar as suas medidas, rua por rua, casa por casa e – tremenda catapulta, lançava-lhe pedaços de montanha a esmo. Ali era o herói do filme seriado, com sua velocíssima variação de cenas, embora sua figura de ator devesse permanecer a mesma de sempre. Neurótico mórbido, os obstáculos que tinha de suplantar para viver, matar leões diários, despertavam-lhe sentimentos constrangedores e penosos, mais terríveis que qualquer mutilação ao corpo físico.
Tendo sido engravidado por todas as paixões, valentão, desordeiro, marreteiro, vendedor de objetos falsos, arrombador e de representar verdadeiro perigo para as famílias, ficou preso entre essas paixões num papel da maior personagem alinhada na galeria dos criminosos do Bairro. Seu caso sempre foi tratado dentro da estreita faixa do maniqueísmo com as suas duas extremas: o santo na redoma de cristal e o monstro no poste, à vista de uma plateia equipada de nervos que sabiam saborear com voluptuosidade o espetáculo das dores, de imaginação fecunda em descobrir os mais agudos e psicológicos suplícios. Conheceu todas as maldições sociais, o abastardamento, a indigência, a delinquência, o aprisionamento e passou por tudo isso assumindo até o fim ao enfrentar a nêmesis campineira por todos os lados a partir de suas próprias margens. Acabou infenso às normas, ao escárnio, às sanções, não desenvolvendo um corpo caloso que pudesse unir os dois hemisférios cerebrais. Criou-se à parte, completamente independente, sem filiar-se a nada, à religião, ao emprego, à política, um renegado de peito aberto e com nome sempre pronunciado em voz baixa, numa Campinas geminada, mas separada por uma parede. Queriam, sem saber, atitudes e expressões novas, um mito vivo – reflexo do inconsciente coletivo – que lhes assegurassem a primasia de um mundo de sonhos e que lhe fizessem voltar à magia da infância e do homem primitivo. O debuxo do seu retrato perde-se em poucos traços, com os braços tintos de sangue até os cotovelos. Não era um animal que identifica o valor das coisas pelo cheiro, pelo qual aceita, rejeita, acolhe, repele, ataca ou foge. Pelo contrário, dizia sim ao prazer e não à dor. Não procurou beneficiar-se de sua fama, vendendo proteção ou obrigando as mulheres a aceitá-lo e, ao que parece, o seu código de honra ressentia-se da falta de integração social com a Campinas branca e asséptica, que se postava na calçada do lado direito da Avenida. Passava, preferencialmente, do lado contrário e aí os seus sentimentos de culpa, já aguçados pelas aglomerações da porta do Cine Campinas e do Bar do Alceu, confundiam-se numa amálgama de medo e desprezo.
Condenado pelo crime de arrogância aquisitiva, mas sem enriquecer-se e de viver à larga sem trabalhar, de não ajoelhar-se aos pés dos poderosos, por um conselho de sentença formado pela heterogeneidade do próprio meio social, composto de peças díspares, baralhado, justaposto, verdadeira Torre de Babel, onde acudiam homens de todas as idades da História, autocratas orientais, tonzurados inquisitores, clãs centenários, substabeleceu-se com seu próprio sistema de valores, onde a anomia social valia menos ou nada. A consciência não é um problema metafísico. É um dado e é o coroamento do esforço de adaptação do indivíduo às circunstâncias, evolui primeiramente cega, inconsciente, acidental, até a uma forma nova, diferenciada, mais eficiente, qual seja a adaptação final que vale por uma resposta a qualquer provocação. Em Bôca Larga havia uma necessidade premente em desenvolver forças e ele se comprazia em mostrar-se forte e de David, enfrentando todas aquelas adversidades, transformou-se em Sansão, ao tentar aluir, pela indiferença com que voava pelas ruas como um pássaro livre e acompromissado, as colunas em que se assentava aquela imensa e lânguida Campinas – igualmente grávida pelos vícios de seus maiorais – verdadeiro labirinto onde não lhe foi possível encontrar o fio condutor de Ariadne. Retocado e desfigurado pelo pecado, seu retrato teve um destino bem diferente da obra criada por Wilde, oculta na mansão para não indignar os olhos das visitas. Sem sótão e sem moldura nenhuma, sua imagem viu-se exposta no museu de horrores.

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