Carro de bois
Diário da Manhã
Publicado em 10 de julho de 2016 às 02:07 | Atualizado há 9 anos“Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois”
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
A festa de Trindade movimenta uma multidão de pessoas, neste ano tivemos dois milhões e setecentos mil fiéis, segundo a Associação Filhos do Pai Eterno (Afipe). A festa e romaria teve origem por volta de 1870 quando Constantino Xavier foi a Pirenópolis, para encomendar a Veiga Valle uma réplica do medalhão encontrado, porém, o artista fez uma imagem de uns 30cm, bem maior que o medalhão, como estava sem dinheiro para pagar a encomenda, Constantino trocou seu cavalo pela imagem, assim voltando a pé para Trindade. Tendo nesse ato a origem das romarias pelas graças recebidas. Vemos romeiros saírem de várias cidades com seus carros de bois, que vão lentamente percorrendo o caminho até o Divino Pai Eterno. Na fazenda Barro Branco no município de Trindade tive a oportunidade de conhecer uma comitiva de carreiros que há mais de setenta anos vem para a festa do Divino, eles saem de Mossâmedes cerca de 125km de Trindade e levam seis dias para fazerem o trajeto. Conversei com a Dalva que propicia abrigo para esses carreiros.
Como começou essa festa para os carreiros na fazenda? Dalva Severina de Aguiar – “Quando comprei a fazenda veio um amigo, primo do meu enteado Paulo, então, esse amigo falou assim: “sou casado com a neta do seu Tóta, você deixa ele trazer a comitiva pra cá?” Com maior prazer Respondi. Eu sou neta de violeiro e carreiro de boi. No começo eles chegaram muito acanhados, isso já tem doze anos. Na primeira e segunda vez eles estavam tímidos, então, falei quer saber de um coisa vou fazer esse povo ficar mais alegre, comecei a fazer um almoço para eles, assim não precisam de fazer comida e sentem que estão sendo bem recebidos e não apenas pousando. Aqui é um ponto histórico dos carreiros em Trindade, no sentido de ver a tradição goiana, porque nós somos goianos do pé rachado, então, tem que conservar.’
Esses carreiros que vêm aqui fazem isso há muito tempo? – Dalva Severina – “Há mais de setenta anos, é muito tradicional de família, cada um tem o sangue legítimo de carreiro, nasce, vindo com a mãe, cresce, casa e continua vindo, é uma sequência histórica. Tem neto que já vem dentro da barriga e depois vem a pé. É uma tradição religiosa que eles gostam e nós apoiamos.”
De que forma acontece esse apoio? – Dalva Severina – “Eles chegam, almoçam, arrumam o acampamento dormem, de manhã fazem um roda rezam todo mundo e depois vão desfilar no carreiródromo com os carros de boi. No final do dia voltam os bois aqui para a fazenda, porque também dou pasto para eles durante cinco dias, sempre deixo reservado o pasto para eles, não deixo nem meu bois comerem nesse pasto. Os refazem, porque eles vêm cansados, porque, não tem o que comer na estrada, mas aqui tem. Eles recuperam toda força para voltar.’
Qual o seu sentimento ao proporcionar esse acolhimento aos carreiros? – Dalva Severina – “Eu tenho o sentimento de entender porque nasci filha de violeiro e carreiro, é como se fosse eu ter a presença dos meus antepassados através deles, porque é a sequência dos meus avós, isso me faz ver a minha origem, de onde era o meu povo. E o meu pai mudou para Goiânia, depois de vim pagar uma promessa em Trindade, foi em 1951, aí gostou de Goiânia, nós somos mineiros, mudamos para cá. Meu mundo é esse, mineiro gosta do carro de boi e da viola.’
Assim como os carreiros passam de pai para filho, você também está passando para a nova geração esse gostinho de receber, de acolher os romeiros? Já tem uma sucessora? – Dalva Severina – “Acredito que vai nascer nesses dois ou três anos essa vontade, porque eu não posso nem dizer que vai ser meu sucessor, porque não deixa eu fazer do jeito que eu quero. Vou plantar tudo e aí vou deixar, não tira daqui não, isso aqui é tradição goiana.”
É interessante que eu vejo almoço com moda de viola. – Dalva Severina – “É pra deixar eles a vontade, eles se emocionam, aí que ferve a festa, porque os carreiros emocionam, tudo isso para eles sentirem que estão sendo recebidos. Eles esperam um ano para chegar aqui e irem no Divino Pai Eterno, vão felizes.’
A dupla Guto & Leo, foram uns dos cantores que animarem o dia, eles comentaram sobre a festa para os carreiros. – Leo: “É uma festa perfeita, está trabalhando bastante a cultura do carreiro.” – “É bastante importante a gente está misturado com essa cultura de Goiás, por que não dizer de todo o Brasil, essa cultura que esse pessoal vem trazendo de longa data, podemos observar tradições centenárias, pessoal que desloca de várias partes do país, trazendo os carros de boi aqui para a terra santa né? A Capital da fé que é Trindade. A nossa música só tem raiz, porque nós nascemos num berço caipira, somos filhos do João Veloso do programa na Beira da Mata, que há quarenta anos vem defendendo a cultura da música sertaneja raiz em Goiás. Que é uma terra que muito tem exportado música para o mundo inteiro e temos grande satisfação de estar cantando essa música que é a mandioca da música sertaneja aqui para os carreiro. Entre os carreiros estava o filho do seu Tóta, o Pedro Carlos, ou melhor Pedro Tóta, como ele é conhecido.
O que motiva vir na festa de Trindade? Pedro Carlos: – ‘Vixe é tanta coisa né, na verdade nós fomos criados nessa estrada, minha mãe quando … Desde que a gente nascia, que tinha idade pra vim, depois que ela curasse o resguardo já participava da romaria e até hoje graças a Deus, eu faço isso há quarenta e oito anos, sou de março e em junho do mesmo ano eu vim.”
Você tem algum agradecimento? Pedro Carlos: – ‘muitos, meu pai já morreu e viveu muitas vezes nessa romaria, né. As vezes saia muito doente de casa e sarava na estrada. Outro dia aqui em Trindade mesmo, ele morreu praticamente, levou ele pro médico, chegou lá o médico disse que ele já tinha falecido, aí eu falei: O Divino Pai Eterno não deixa meu pai ir dessa vez não, deixa ele mais um tempo com nóis, aí o médico fez uma massagem nele e Deus abençoou que ele foi voltando e melhorou, nós levamos ele em Goiânia, fez uns exames lá e “num” teve nada, voltou pra traz de novo, viveu com nóis muitos anos depois disso, uns dez anos.
Fale da sua participação como carreiro. Valdivino Horácio: – “Eu tenho quarenta e três anos participando, meu pai me ensinou a puxar os carros de boi, eu comando os carreiros, porque meu pai vinha na frente, pois o romeiro mais velho é que vem na frente, aí eu continuei, venho seguindo o que o meu pai ensinou. Já recebi dádivas; teve uma vez que eu não “durmia”, não tinha sono de jeito nenhum, minha mãe fez voto eu vim puxando um bezerro e graças a Deus eu sarei.”
Estar na estrada Sonia:- “É uma graça muito grande, é uma alegria, é muito bom participar, porque a gente tem a família reunida, os amigos todos juntos com um só objetivo que é a fé ao Divino Pai Eterno. Para as mulheres é mais incomodo a estrada, mas a gente supera, preparamos as carnes bem antes da viagem, matamos vaca fazemos carne de lata, carne de sol, quitandas para quinze dias fora de casa. Outra coisa interessante é que nossa comitiva faz doações para a Vila São Cotolengo, de arroz, feijão, pode olhar que tem tudo isso nos carros de boi, quem começou com isso há setenta anos foi meu sogro seu Tóta. Isso é uma grande graça e também de ser acolhidos por pessoas como a Dalva que acolhe a gente por cinco dias, assim de todo coração, doando seus pastos, sua casa, sua comida pra todos nós os carreiros que vem aqui para casa dela, então, isso é uma graça muito grande que a gente tem, por que se não tivesse esse acolhimento, não teríamos essa romaria de carro de boi, só na nossa comitiva já tivemos 40 carros de bois nessa romaria. A gente prepara o ano inteiro pra tá fazendo essa romaria.”
A força da fé impulsionando vidas e nos dando lições para o nosso caminhar; enquanto uns se devotam em romarias, outros fazem acolhimentos doando comida abrigo e acima de tudo seu tempo em prol do próximo.
(Edson Barbosa, escritor, fotógrafo, educador, produtor cultural, articulista do Diário da Manhã, editor-geral do Portal Santa Dica, diretor da EBN Produções Artísticas. [email protected])
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