Célia Coutinho Seixo de Britto, a mulher na história de Goiás
Diário da Manhã
Publicado em 20 de fevereiro de 2018 às 23:17 | Atualizado há 7 anosNo mês de fevereiro, a cada ano, a enternecida lembrança de uma mulher muito especial na história goiana, Célia Coutinho Seixo de Britto. Não se fala em Célia sem lembrar-se de Hélio de Britto. Eram almas irmãs, infinitamente ligadas pelo indissolúvel laço do amor e do respeito.
Hélio Seixo de Britto e Célia Coutinho Seixo de Britto foram dois goianos admiráveis que tiveram importância fundamental para o crescimento de nossa história cultural e social, não só em Goiânia, mas, em diferentes outras cidades como Goiás, Anicuns, Leopoldo de Bulhões e Trindade. Mas a bela história de amor de ambos, verdadeiro exemplo de bem vier, começou muito antes e merece esse registro.
O ambiente não poderia deixar de ser a velha cidade do Anhanguera nos primórdios desse século. Na acidentada Rua 13 de Maio nasceu à menina Célia Coutinho, filha de João Jose Coutinho, titular do Cartório do 1º Oficio da velha capital, político e fazendeiro, e de Alice Augusta de Santana Coutinho, ativa jornalista do velho A Rosa editado por Heitor de Morais Fleury em 1908 e depois Voz do Povo, de inflamadas manchetes do período mudancista.
Era o dia 7 de fevereiro de 1914 e ali na velha casa que dava fundos para o velho cais do Rio Vermelho havia uma alegria diferente com a chegada de mais uma filha, a segunda do casal, antecedida apenas por Cici, nascida em 1911. Mais tarde nasceu Jorge, que foi casado com Olandira de Castro Santomé, também já falecido.
A infância de Célia foi passada ali naquela rua torta, calçada de pedras irregulares e antigas. Os vizinhos Octávio Monteiro e Hermógenes Coelho significavam a continuidade da família pela afinidade dos pais e dos filhos que cresciam juntos naquela ditosa quadra.
Célia Coutinho, moça extrovertida, bela e sensível carregava um afeto no seu coração: o jovem estudante Hélio Seixo de Britto que, postado sobre a ponte do Carmo, ficava admirando-a por meio da janela dos fundos do velho casarão que se abria para o cais do Rio Vermelho. Era um sonho, um idílio de duas almas ternas, sinceras, num tempo de tantas dificuldades.
Hélio Seixo de Britto também nasceu na antiga capital do Estado em 7 de novembro de 1909, filho de Amâncio Seixo de Britto e Maria Bárbara do Couto Britto, parente da imortal poeta Cora Coralina.
Estudou no tradicional Lyceu de Goyaz e pretendia cursar Medicina no Rio de Janeiro. Nesse tempo, os namoros eram dificílimos e os pais não consentiam logo de imediato em certas uniões. Mas o amor foi o limite de tudo.
No ano de 1935, Hélio Seixo de Britto diplomou-se pela faculdade da Praia Vermelha tomando-se médico, sendo, também de pronto, convidado a permanecer ali como assistente pelos renomados médicos Fernando Magalhães e Henrique Roxo. No entanto, o amor por Goiás falou mais alto, entendeu que seria mais útil servindo à terra que foi seu berço, retomando à antiga capital de Goiás.
Ali, o clima de agitação mudancista chegara ao ápice. O fim da oligarquia caiadista já havia se verificado. Nos agitados palanques políticos, aos altos brados, a força se impunha: … “A capital de qualquer forma, será mudada, que Goiás fique para pasto dos Caiados!” Esse era o lema predileto.
Célia Coutinho por essa época diplomou-se pelo Colégio Santana e exercia a função de suboficial do Cartório de 3a Zona Imobiliária de Goiânia, colaborando também com o jornal Antenas, de Goiás do Couto, e a página literária do Correio Oficial e Jornal do Povo.
Nesse agitado período Hélio Seixo de Britto e Célia Coutinho uniram-se pelo matrimônio. Era o dia 16 de novembro de 1937 e a cerimônia civil foi realizada na antiga residência da noiva, na Rua 13 de Maio, assim como a religiosa oficiada pela cura da Catedral da Santana de Goiás, Domingos Pinto de Figueiredo. Foram testemunhas Raul Coutinho. Elza Seixo de Britto, Odete da Anunciação Serradourada, Jorge Coutinho, Maria Martins Vieira e Indalícia Guedes de Amorim Coelho (Zitinha).
Por essa época, Hélio de Britto já militava na oposição e quando transferiu-se para Anicuns, encontrou terreno fértil para as suas aspirações. Ali residia Ary Ribeiro Valadão que, entusiasmado com a queda do Estado Novo e com a proposta política do brigadeiro Eduardo Gomes, aliou-se ao idealismo de Hélio de Britto e juntos fundaram o diretório da UDN de Anicuns, onde Hélio passou a presidir por instâncias dos amigos correligionários e tendo sempre o firme apoio da companheira Célia Coutinho.
Hélio Seixo de Britto foi convidado, por seus inestimáveis méritos, a ser o secretário de Educação e Saúde no governo oposicionista. Foi ferrenho lutador na conturbada aquisição do terreno que constituiu o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, lançou a ideia da fundação da Universidade do Brasil Central, deu firme apoio para a publicação da conceituada Revista de Educação de Goiás dirigida pela eficiente professora Amália Hermano Teixeira, criou, regulou e reformou escolas como Pedro Gomes, Nhanhá do Couto, Murilo Braga, Duque de Caxias e o Instituto de Educação de Goiás; assim como criou e instalou outras diversas no interior do Estado como em Trindade, quando inaugurou o então Grupo Escolar Dom Prudêncio, em 1949, um dos melhores do interior goiano.
Célia Coutinho Seixo de Britto não foi apenas a corajosa e eficiente mãe e esposa. Arregaçou as mangas e se dedicou ao trabalho social, fundando em 1948, ao lado de outras abnegadas senhoras, o Clube Social Feminino, hoje conceituado espaço social e cultural de Goiânia. Artista das telas e pincéis estudou na conceituada Escola Goiana de Belas Artes, que foi fundada em 1 de dezembro de 1955.
Essa escola teve o seu decreto de autorização de funcionamento em maio de 1953, porém, somente em 1954 foram realizados os primeiros ‘exames vestibulares, obedecendo à execução de 3 cursos: pintura, escultura e desenho aplicado. Sob a direção do competente e saudoso professor Luiz Augusto do Carmo Curado, a escola cumpriu satisfatoriamente a sua finalidade específica, ao realizar, durante o primeiro congresso de intelectuais, uma exposição no ano de 1954, nos amplos salões da Boate Lisita, fato pioneiro em Goiânia.
Cumprindo sua finalidade educativa com afinco, a Escola Goiana de Belas Artes promovia ainda palestras, destacando-se as de Luiz Augusto do Carmo Curado, José Lopes Rodrigues e Hening Gustav Ritter. Célia Coutinho participou da primeira turma da conceituada escola e fez ainda o segundo ciclo de estudos da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra.
No ano de 1960, Hélio Seixo de Britto foi eleito Prefeito Municipal de Goiânia numa esmagadora vitória e, também, marcando na história do município de Goiânia, o primeiro prefeito eleito pela oposição. Em janeiro de 1961 assumiu o poder enfrentando de início o sério problema da falta de autonomia para o município que via-se tolhido de executar seus misteres por estar ligado, acorrentado aos burocráticos elos estaduais.
Depois de sua administração segura e honesta, Hélio Seixo de Britto exerceu ainda o cargo de superintendente da Osego, continuando sempre fiel aos seus ideais políticos, num autêntico exercício de coragem e coerência. Ao lado de sua admirável esposa, Célia Coutinho, manteve acesa a chama do amor pelo trabalho comunitário, exemplo que passou aos filhos, sendo que destes, Ronaldo e Hélio, palmilharam pelas veredas da política e Helinho de Britto foi vereador na Câmara Municipal de Goiânia, com louvável esforço advindo de sua sólida educação e formação moral e política.
Mulher de invejável inteligência e grande capacidade criadora, Célia Coutinho Seixo de Britto dedicou grande parte de sua existência ao trabalho intelectual. Membro fundador da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás em 1969, auxiliou no sonho de Rosarita Fleury, Ana Braga e Nelly Alves de Almeida. Colaborou com os anuários da Aflag e proferiu diversas palestras sobre vultos da história de Goiás.
Foi sócia da UBE de Goiás e da Ordem Nacional dos Bandeirantes em São Paulo, além da Academia Trindadense de Letras. Recebeu várias homenagens, placas, diplomas, comendas, referências e criticas elogiosas ao seu trabalho de real valor.
Como companheira da Academia Trindadense de Letras, Ciências e Artes, dedicou grande parte de seu tempo às coisas relacionadas à cultura trindadense proferiu palestras, participou de eventos e marcou a sua presença em Trindade com o seu admirável esposo e companheiro.
Em 1973, deu publicidade a seu primeiro livro de merecido êxito: A Mulher, A História e Goiás que enfeixa 32 biografias de mulheres goianas do século passado e o trabalho maravilhoso de cada uma delas dentro do cenário da cultura goiana.
Suas biografias, além do trabalho artístico das ilustrações, apresentam uma linguagem carinhosa, viva, latente, distanciando-se do modelo formal desse gênero.
Algumas de suas biografadas foram mulheres altamente notáveis, destacando-se Donana Tocantins, Augusta de Faro Fleury Curado, Sinhá Cupertino, Rosita Fleury, Jacinta Caldas, Zefinha Pinhciro, Maria Péclat, Mestra lnhola, Yaiá Perillo, Nhanhá do Couto, Oscarlina Alves Pinto, Arminda Prattes, Tetê Caiado e tantas outras, nos ideais e lutas que auxiliaram no transcorrer da história de Goiás.
Célia Coutinho Seixo de Britto foi, ao lado de Hélio Seixo de Britto, o mais digno exemplo de vida equilibrada, harmoniosa, produtiva para o bem da família e de toda a comunidade. Foram 56 anos de união e hoje 80 anos de comunhão espiritual, elevando bem alto a glória do amor e da convivência, extrapolando mesmo os limites do próprio tempo.
Vitimada por pertinaz enfermidade, Célia Coutinho teve uma longa agonia. Sofreu resignada os revezes do destino e teve ao seu lado, sempre, o marido, filhos, netos e amigos. Soube amar, sorrir, compreender, soube até mesmo sofrer e partiu sem máculas ou revoltas no dia 21 de janeiro de 1994. Levou muita saudade e deixou um exemplo de dignidade, cultura e honradez até hoje no coração dos que a conheceram.
Com o seu desaparecimento aos 79 anos de idade restou o seu trabalho, a sua mensagem, a essência de sua existência pautada pelo talento. O doutor Hélio Seixo de Britto para a alegria dos filhos, netos, bisnetos foi firme, altaneiro, confiante, marcando sua vida pelo signo da bondade, do bom viver e da fé inabalável em Deus que levou até o fim, com mais de 90 anos.
De sua verve literária um trecho de crônica sobre o tempo em que conheceu e esperou o seu amado esposo, enquanto estudante no Rio de Janeiro:
“Foi naquela quadra angustiosa de minha vida que Deus predestinou que o Hélio e eu nos descobríssemos. Eu ainda novinha e o Hélio, estudante secundário, com projeto de ser médico.
O apagado colorido dos meus dias foi então tomando cores novas e o meu interesse pelo amanhã, renascendo.
Com equilibrado senso, ele passou a ser um estímulo na minha amargurada adolescência. E a densa névoa que sombreava minha alma, foi se desfazendo.
Nas novenas das nossas igrejas da Cidade de Goiás, no jardim cercado da Praça da Matriz, nos trajetos para as casas de vovó Bita e tia Franklina e no retorno do Colégio Sant’ana, onde eu estudava, davam-se os nossos encontros, quase sempre rápidos e com apressadas trocas de palavras.
Sua imagem tornou-se permanente em meu espírito!
No entanto, nova fase de tristeza viria desbotar as cores que, agora, enfeitavam os meus dias: o Hélio teria que partir para longe… E partiu para o Rio de Janeiro, onde, na famosa e histórica Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, faria o curso médico.
Resoluto e consciente deixou entre nós um pacto de amor, confiança e fidelidade, que um dia uniria os nossos destinos, apesar de haver muitos dias, muitos meses, muitos anos à nossa frente.
Pura e sincera, a nossa jura! Mas longa e indefinida interrogação bailava desdenhosa, sobre o nosso porvir…
Mais de seis anos de ausência, com apenas reencontros em duas férias universitárias. O Hélio quando não vinha nessas ocasiões, com grande pesar para nós dois, o fazia para melhor aproveitar a prática nos hospitais do Rio: ele tinha pressa!
O seu maior desejo era formar-se preparado e já com boa experiência para ingressar imediatamente no exercício da sua nobre, humana e espinhosa profissão, para podermos realizar, sem mais demora, os nossos sonhos.
Minha mocidade esgotava-se naquele compromisso afetivo assumido conscientemente. Conselheiros experimentados, baseados em exemplos, alertavam-me: – As moças daqui que esperaram, confiantes nas promessas do bem-amado, ficaram sempre a esperar… Se o seu regressar com as mesmas ideias, será o primeiro.
Aquilo vinha como uma seta ferir-me a sensibilidade! Queria crer, confiava em nosso juramento; porém, pertinazes conjecturas afloravam-me ao espírito a cada instante: – o sentimento humano é mutável e sujeito a inesperadas transformações; intempéries incontornáveis poderiam surgir do acaso, destruindo arrasando, consumindo o nosso recíproco compromisso.
Naquela angustiosa luta – misto de confiança e incerteza -, eu ia vivendo a lenta monotonia do tempo na minha velha Goiás, conservando, contudo, a “fé” que remove montanha”.
O Hélio, antes de partir para os seus estudos superiores, ofereceu-me o belo livro Nós, do poeta Guilherme de Almeida, certamente querendo reafirmar sua solene, conscienciosa e responsável promessa de amor.
Festas e ambientes sociais eram incompatíveis com “guardar constância pelo namorado ausente”.
Sendo meu pai destacado político e amplo o nosso relacionamento na Cidade, isto nos obrigava a frequentes comparecimentos a solenes festividades sociais e políticas. Mas, não palestrar com rapazes, ficar em casa retraída, curtindo tristemente as saudades do predileto distante, deveria ser a conduta correta de urna moça comprometida; de outra forma, haveria assunto para maliciosos comentários”.
Assim eram os amores antigos, da eterna Cidade de Goiás!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. Pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com)
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