Opinião

Confesso que vivi as tensões e as emoções de ser médico

Diário da Manhã

Publicado em 24 de fevereiro de 2016 às 00:42 | Atualizado há 9 anos

Vou iniciar este texto por onde devia estar encerrando, pois transcrevo a ultima carta que enviei ao meu pranteado cliente e, sobretudo, amigo “Dr. Sérgio”.

 

Goiânia, 10 de abril de 2000

Prezado amigo “Dr. Sérgio”

O tempo passa muito mais depressa do que desejamos ou podemos aquilatar. Deixei o ontem para hoje, o hoje para amanhã e quando me dei conta, verifico que estou faltando com o comezinho dever de urbanidade: agradecer a gentileza do envio da madeira!

Embora não tenha me manifestado em tempo hábil, você sabe do meu bem querer com você; tenho me lembrado diuturnamente da sua presença amiga e sobretudo da sua personalidade franca e decidida.

De vez em quando dou asas à imaginação e volto meu pensamento para alguns anos atrás e relembro de algumas dificuldades existenciais que enfrentamos juntos. Vejo-o ultrapassando as armadilhas que a vida lhe preparou e colocou no seu caminho, com uma força interior inacreditável.

À medida que vamos envelhecendo, vamos gradativamente selecionando as pessoas que gostamos de relacionar, algumas são das primeiras horas; estas o tempero do tempo permitiu sedimentar uma amizade que à medida que nossos cabelos perdem a cor do nascimento e são substituídos pela alvura da senescência, mais solidifica.

Outras amizades, aí você está incluído, são de aquisição mais recente. É muito difícil iniciar uma amizade verdadeira e sincera na idade madura, normalmente a razão sobrepõe aos desígnios do coração; somos mais pragmáticos!

Porém, quando surge a oportunidade de aproximação, permeada pela empatia inicial, desaparece a resistência e surge a amizade.

Goethe, famoso literato alemão, certa feita assim se expressou ao tornar-se amigo de outro famoso poeta de nome Schiller:

“Os últimos companheiros de uma longa jornada, sempre tem mais a dizer um ao outro.”

Esperando  reencontrá-lo em breve, despeço-me enviando-lhe meu sincero abraço de agradecimento.

Recomende-me à sua família

Seu, sempre seu!

Seu prontuário na clínica me informa que a primeira vez que nos encontramos foi no dia 6 de março de 1980, lembro-me como se fosse hoje, naquele dia, já no final do expediente do consultório, minha secretária avisa-me que um “senhor” precisava falar comigo, pois era portador de uma carta que precisava ser entregue pessoalmente.

Embora extenuado (havia feito duas cirurgias naquele dia, uma delas de grande porte), mandei que este “senhor” entrasse. Foi a minha sorte, nasceu naquele dia uma amizade que ultrapassou os limites da relação médico-paciente.

Este “senhor” entrou no consultório com passos decididos, sua indumentária era branca (calça e camisa de linhos); após as apresentações, sentou-se à minha frente e entregou-me a dita citada carta; seu médico cardiologista me solicitava um parecer a respeito do seu problema intestinal. Antes que eu falasse qualquer coisa, disse-me com voz impositiva:

– Não paguei a consulta porque, quando vendo gado para o frigorífico, nunca recebo adiantado, após a consulta irei pagar!

Pareceu-me ser uma pessoa afável no trato, respeitoso no relacionamento, porém, com personalidade  muito forte, não aceitando, com facilidade, as “verdades” do médico.

– Gostaria de saber se este problema pode ser resolvido com cirurgia , não tenho tempo para ficar indo e voltando ao seu consultório; acho difícil seguir qualquer dieta, como você está me sugerindo, sou homem da roça e dificilmente tenho horário para alimentar, aliás, na maioria das vezes, “alimento com os peões”, principalmente se estamos tocando uma boiada pelo sertão afora!

Senti, de imediato, que se instalou uma empatia entre nós dois, até pelas nossas origens, ambos mineiros, nascidos na mesma região do sul de Minas Gerais; de uma certa altura em diante da consulta, falamos de tudo (seus cafezais, suas boiadas, suas fazendas, nossas famílias, sua amizade com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, a quem ele hospedou em uma das suas fazendas), menos na sua doença.

Pelo relatório do colega cardiologista soube que “Dr. Sérgio” já havia sido submetido à implante de mamária no coração, devido a um enfarte do miocárdio, acontecido há menos de um ano; sua história clínica levou-me a pensar na possibilidade de ser uma doença diverticular do intestino, cujos exames  (radiológico e endoscópico), confirmaram a minha hipótese, mostrando tratar-se de um caso grave de diverticulite de repetição que, inexoravelmente, se persistisse a evolução, levaria à indicação de cirurgia.

Devido aos seus antecedentes cardiológicos, esclareci que os riscos de uma cirurgia do intestino seriam muito grande, tendo em vista o seu biótipo (obeso e brevilineo); verifiquei que “Dr. Sérgio” ficou preocupado e, repentinamente, disse-me:

– Quando tenho que enfrentar um boi nelore que debandou cerrado afora, minha tática é diferente se fosse um boi holandês, portanto o problema, daqui para frente passa a ser seu, posso até aguardar um pouco, porém sua fama de cirurgião me permite “exigir” que você resolva meu problema, completou com uma sonora gargalhada.

Após alguns quadros de repetição da diverticulite, achei prudente indicar a cirurgia e o operamos no Hospital São Salvador, sem nenhuma complicação intra operatória e as primeiras 72 horas de evolução foi extraordinária, porém o cliente era o “Dr. Sérgio”, homem irrequieto que não gostava de ser dirigido por ninguém.

– Hélio Moreira, preciso me levantar da cama, não quero que minhas necessidades fisiológicas sejam atendidas por enfermeiras; escuta “Dr. Sérgio” seu abdome é muito volumoso e se você se levantar, poderão soltar alguns pontos da sutura e ai teremos um desastre. Achei que o convenci!

Estava no consultório quando recebi telefonema do hospital chamando-me com urgência, pois o paciente “Dr. Sérgio” estava muito grave. Atravessei a rua que separava meu consultório do hospital em um átimo e ao chegar ao quarto deparei-me com uma cena inusitada e incrível:

– “Dr. Sérgio” estava de pé, em frente ao vaso sanitário, com uma toalha que ele pegou naquele ambiente, “segurando as tripas” para que elas não caíssem, literalmente, no vaso, disse-me ele, com o rosto coberto de suor. Estava quase que entrando em choque circulatório!

Gritei para o enfermeiro que estava por perto:

– Traga, com urgência, a maca e vamos levá-lo para o centro cirúrgico, enquanto escorava-o nos passos rumo ao seu leito.

– Espere um pouco, disse-me ele, preciso fazer um telefonema inte-rurbano (naquela época dependendo da telefonista); não acredito no que você está me dizendo, deixe isto para depois, homem de Deus!

– Alô “fulano”, aqui quem fala é o “Dr. Sérgio”, gostaria que você soubesse que estou muito grave e existe chance de não sair desta, porém, gostaria que você  soubesse que um dos meus filhos conhece todos os detalhes da nossa sociedade e se você tentar passar minha mulher para trás, ele resolverá o problema com você do jeito que o orientei. Não se arrisque!

O Tempo passava e “Dr. Sérgio” grudado no telefone; corremos com a maca rumo ao centro cirúrgico e, felizmente, tudo correu como desejávamos, com um único inconveniente: tive que fazer uma colostomia  (desvio das fezes do seu trajeto normal para uma bolsa plástica que foi colocada no abdome).

“Dr. Sérgio” enfrentou esta situação com uma galhardia inacreditável, circulava por toda parte com sua indumentária característica: calça branca e camisa branca de linhos, meias brancas e sapatos preto; sua camisa, esvoaçante por sobre a calça, deixava perceber um volume no lado esquerdo do abdome e quando alguma pessoa ficava curiosa, ele levantava a camisa e mostrava a bolsa de colostomia aderida ao seu abdome.

O mais interessante é que meu amigo “Dr. Sérgio” continuou sua rotina de trabalho, apesar daquele “apêndice” que seria suficiente para imobilizar muitas outras pessoas; frequentava os currais das suas fazendas (quase uma dezena), andava a cavalo, tomava seus “drinks” como se não tivesse nenhum problema; de vez em quando ele ainda “namorava” e principalmente participava de serestas na sua casa.

Nestas ocasiões, a que tive a oportunidade de estar presente inúmeras vezes, ele reunia suas filhas e filhos (todos cantores) e com o violão nas mãos e com sua voz maviosa, entoava canções, principalmente as sertanejas e encerrava o show com o indefectível – Berrante de Ouro – que ele exigia que a sua esposa, minha querida sra. Tamisa, cantasse juntamente com ele e no final da canção, os dois choravam juntos (Esta casinha junto ao estradão, faz muito tempo que eu parei aqui; venha minha velha, vamos recordar, quantas boiadas eu já conduzi. Fui berranteiro e ao me ver passar, você surgia acenando a mão, até que um dia eu aqui fiquei…).

Em algumas oportunidades ele aparecia na Fazenda Santa Tereza na companhia da sua “trupe familiar” (esposa, filhos e filhas) e improvisava uma seresta, segundo ele, em minha homenagem.

“Um dia a gente aprende a construir todas as nossas estradas no hoje; Porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, E o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.”

William Shakespeare

Como tenho saudade daquele tempo! Como tenho saudade do “Dr. Sergio”! Confesso que terminei este texto aos prantos!

Obs: – Este relato não acaba aqui, acho que precisaria escrever um livro para contar meu relacionamento com o “Dr. Sérgio”.

 

(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

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